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samba francês

22/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/11/2014

A tradução francesa de “O mistério do samba” acaba de ser publicada pela Riveneuve, editora parisiense. É boa maneira de comemorar os vinte anos da minha defesa da tese que deu origem a esse livro. Já havia edições em inglês, italiano e japonês, mas fiquei todo este tempo torcendo pelo lançamento na França. Afinal, em suas páginas descrevo processo de construção de identidade nacional-popular brasileira que não teria acontecido, com toda sua originalidade moderna, sem a influência de Paris.

Sorte: meu tradutor foi o antropólogo Jérôme Souty, autor de “Pierre Verger – do olhar livre ai conhecimento iniciático” (editora Terceiro Nome), obra que já analisa invenções franco-brasileiras. Quem fez nossa apresentação foi Milena Duchiade, através do telefone fixo da sua livraria, a Leonardo da Vinci, um dos mais importantes pontos de encontro de ideias do Rio de Janeiro. Sempre que aparecia por lá, ela me incentivava a batalhar pela divulgação internacional dos meus livros. Como constatava minha inabilidade nesse território, Milena tomou a iniciativa generosa de me colocar em contato com Jérôme, que por sua vez conhecia os editores da Riveneuve e o programa para traduções da Fundação Biblioteca Nacional. Para nossa surpresa, a partir dali tudo aconteceu bem rápido, como nos encontros França/Brasil descritos em “O mistério do samba”.

Escrevi pequeno “avant-propos” para a nova publicação. São apenas cinco parágrafos (um deles lamentando a impossibilidade de Gilberto Velho folhear esta versão da tese que orientou), mas consegui citar novamente lista muito parcial de convidados que provaram feijoada (e compotas de bacuri) no apartamento parisiense de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade em 1923: Cocteau, Léger, Brancusi, Satie e, claro, Cendrars. Quando me deparo com esses nomes, o que mais me intriga é outro mistério, paralelo ao do samba: quem cozinhava? Oswald? Tarsila? E as compotas de bacuri (logo bacuri!), hoje ainda difíceis de serem encontradas no Rio de Janeiro? Eram bagagens de viagens em navios transatlânticos?

O “avant-propos” também inclui uma brincadeira que aqui transformo em pergunta implicante: como Woody Allen não incluiu essas feijoadas em “Midnight in Paris”? Há negros no filme “Manhattan”? Em “Midnight to Paris” eles aparecem em papéis secundários e cenas rápidas. Mas tudo ali se passa como se a gênese da era das vanguardas fosse resultado de “affair” privado entre artistas dos EUA e europeus, narrativa estabelecida como oficial nas histórias do modernismo (que apenas recentemente estão sendo reescritas para incluir mais diversidade), até outro dia percebido como criação daquilo que depois apelidamos de Primeiro Mundo. Perdemos assim a noção do grau extremo de multiculturalismo nas encruzilhadas artísticas da Paris do início do século XX.

Fico curioso para saber se os artistas brasileiros ou cubanos, entre muitas outras nacionalidades, que viviam em Paris naquela época eram vistos por europeus como mais exóticos ou periféricos do que os americanos do norte. Lembrando: só mesmo depois da Segunda Guerra é que os EUA se transformaram em Império, vendendo também sua arte como fenômeno global (por exemplo, e sem juízo de valor, fazendo com que Gertrude Stein tenha ficado mais conhecida mundo afora do que Oswald de Andrade). Mas qual era o lugar do “resto do mundo” em torno dos anos 1920? Eram tempos em que a “descoberta” da estética africana por Picasso já deixava de ser um choque e virava modismo que tornou possível que movimentos intelectuais em outras partes do mundo valorizassem aspectos “negros” de suas culturais locais. Sim, o jazz fez sucesso em clubes parisienses. Mas fez mais sucesso do que a infinidade de ritmos apresentados por bandas cubanas?

O choque vanguardista de Paris foi impulso decisivo para que os modernistas brasileiros descobrissem também a riqueza do nascente samba e das tradições africanas neste nosso lado do Atlântico. Um dia pretendo comparar melhor o que aconteceu por aqui com situações muito semelhantes em países da América do Sul e do Caribe. Tenho mais informações sobre o exemplo cubano. Um livro como “Nacionalizando a negritude – afrocubanismo e revolução artística em Havana, 1920-1940”, de Robin D. Moore (University of Pittsburgh Press, ainda não lançado no Brasil), revela a importância que a estadia parisiense teve para a geração de Alejo Carpentier voltar para Cuba valorizando uma cultura negra que era ainda percebida com vergonha ou preconceito pela elite local, até então encantada pela imaginária pureza branca da alta cultura europeia. Assunto de sobra para a próxima coluna.

Cícero Dias

02/12/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 25/11/2011

Na coluna passada escrevi sobre meu espanto ao descobrir o fel antimodernista na deliciosa prosa infantil de Monteiro Lobato. Fiquei contente ao perceber que escapei da doutrinação careta, mesmo me considerando neto de Dona Benta. Não seria quem sou se não fosse a influência decisiva da turma do Sítio do Picapau Amarelo, mas mesmo assim me considero carnavalescamente o mais modernista dos homens, hoje me interessando muito pouco por tudo que vem antes de Malevich, Oswald ou Russolo. Ainda mais agora, depois que li o maravilhoso “Eu vi o mundo”, recém-lançado pela Cosac Naify, que fez meu mundo se dividir em antes e depois de Cícero Dias. Afinal, como não se apaixonar por autor de livro autobiográfico que declara: “minha memória não obedece a leis, mas à saudade dos doces de caju em calda.” Sei que sou suspeito, pois – já escrevi isso por aqui (estou sendo didaticamente nordestino) – também considero doce de caju bem feito uma das melhores coisas da vida. Então, como prova dos nove, cito outro momento arrebatador, que para mim vale quase como haiku de Bashô: “Não fui um menino completamente introvertido. Sempre me entendi perfeitamente com o mistério do mundo.” Não é pura iluminação?

É certo: em Cícero Dias, a lembrança saudosa não se confunde com o culto ao passado. Pelo contrário, é motor de futuro cada vez mais futurista: “Antes que a nostalgia me cercasse, a arte ia me jogando para frente.” Parece (e continuo nordestino, e repetitivo) Waly Salomão no texto “Velha cartomante setentona”, escrito para os 70 anos da Semana de 22: ” FUGIR PARA FRENTE, a partir de agora. Sem nostalgia. Buscar o tempo da inocência? Sim. E tendo observado uma vez, observar de novo com uma sempre desafetada, sem preconceitos, insubordinável e destemida INOCÊNCIA. Devemos comer de novo a maçã do bem e do mal para cair na inocência. Aprendi que ser um homem é ser inconformista. AVANTI!” As palavras de Waly poderiam ser a legenda de uma das fotos que abre o “Eu vi o mundo”, com Cícero Dias – no meio do que imagino ser uma pista de dança – pulando de terno e braços levantados. Não pode existir imagem mais explícita de redenção modernista pau-brasil, como se fosse um Gilbert & George (os artistas ingleses – os dois juntos, num só corpo e terno) possuídos pelo espírito do samba ou de Hélio Oiticica.

Por favor, tome alegria: leia esse livro. Muito mais bacana que “Meia-noite em Paris”. A volta no tempo em Cícero Dias  não objetivo de vida, é só um incentivo para tornar o presente mais animado e interessante. Não pensei no filme de Woody Allen a partir de uma colagem dadaísta de ideias. Grande parte da narrativa de “Eu vi o mundo” se passa igualmente na capital francesa dominada por Picasso (e depois pelos nazistas). Ele conviveu com seu compadre Picasso – e com Breton, Léger, Cendrars, Duchamp, Dalí, Max Ernst e até Mário Pedrosa. Comentando a abertura da mítica “Exposition internationale du surréalisme”, da qual quase participou, continua o “name-dropping” e a memória-doce-de-caju-ilha-de-edição-não-linear: “Óscar Domínguez, ébrio, falava sozinho. Arp dizia-me que essa exposição surrealista fazia lembrar o Cabaré Voltaire, em Zurique, onde se encontrou pela primeira vez com Tristan Tzara. Éluard inaugurou a exposição lendo suas palavras claras e poéticas. Bailarina nua, em movimento, às vezes deitada. Odeurs du Brésil, cheiro de café.”

Claro, Paris nessa época tinha seu charme. Porém (e essa é outra repetição de algo que já disse aqui na coluna), fico muito mais encantado, e contraditório-nostálgico-fugindo-para-frente, com as lembranças do modernismo do Rio de Janeiro dos anos 20: é a época para qual eu queria viajar se tivesse um túnel do tempo. O que era aquele triângulo boêmio-artístico-intelectual entre o bar Nacional, o bar Brahma e o bar do Palace Hotel?! Como ninguém fala dele nos livros de história do Ensino Fundamental? E a lista do pessoal que frequentava o ateliê do Cícero Dias? “Manuel Bandeira , Jayme Ovalle e o irmão, Dante Milano, Murilo Mendes, Di Cavalcanti, Dodô Barroso do Amaral, Ismael Nery, Josué de Castro e tantos outros… O que posso dizer é que vivíamos a década de 1920.” Em outras páginas aparecem Mário de Andrade, Graça Aranha, Tristão de Ataíde, Villa-Lobos, Sérgio Buarque de Holanda, Arinda Houston (sogra de Mário Pedrosa, mãe de Elsie e Mary, cuja história familiar merece um outro livro), Heloísa Alberto Torres, Eugênia Álvaro Moreyra, Juliano Moreira e até Blaise Cendrars. A cidade vivia um de seus momentos mais possantes: “Tudo explodia, um vulcão.”

Entre o Rio e Paris, duas passagens são cheias de lições de modernidade descentralizada. A primeira é a exposição em Escada, interior pernambucano. Tudo era curto-circuito: “foi inaugurada ao som de uma viola, folha de canela pelo chão perfumando o ambiente, foguetes explodindo pelos ares, uma festa.” A experiência faz Cícero Dias chegar à seguinte conclusão: “o povo apreciara positivamente minha obra. Ao contrário da burguesia com seus preconceitos invioláveis que mantinha uma posição negativa.” A segunda passagem é a travessia do Atlântico de navio, com parada no Senegal e a revelação: “Tudo de moderno se realizava na África negra.” Outra conclusão esperada para quem afirmou: “Não cultivo a penumbra, mas a resplandecência. Nada é obscuro na minha obra.”


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