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Paul Virilio

24/01/2015

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 23/01/2015

 

Tenho o costume bem estranho, talvez compartilhado por outros viciados em informação, de periodicamente – mas cada vez mais raramente – zapear um por um todos os canais do cabo, esperando que algo chame realmente minha atenção. Na maioria das vezes chego ao final sem parar em nada. Porém, nas duas últimas tentativas, ainda em 2014, empaquei no canal “Curta!”. Fui seduzido pelo rosto redondo – e sua fala mansa apesar de transmissora de mensagens totalmente apocalípticas – do pensador francês Paul Virilio. Nunca esperei encontrá-lo na tela do cabo brasileiro. Ainda mais duas vezes seguidas. Considerei que era ordem do Destino para escrever novamente sobre Virilio na coluna. Estou aqui obedecendo.

Era um documentário de 2012, e se chamava “Paul Virilo, pensar a velocidade”. Dá para ver no YouTube, com legendas em espanhol (não sei se é publicação pirata que pode ser retirada do ar a qualquer momento). Está à venda na loja do canal francês “Arte”. Mas tomara que continue a passar sempre no “Curta!”, quase como uma reza cotidiana (o pensamento de Virilio nunca escondeu suas raízes cristãs).

Na primeira zapeada peguei o documentário no final. Na segunda vez estava exatamente no início. Fiquei mais impressionado ainda com a quantidade de gente que admiro, por uma diversidade alucinante de motivos, em cena: Jacques Attali (preciso escrever sobre sua vasta obra aqui), Dominique Wolton (analista interessante das transformações da mídia pré e pós-internet), Jean Nouvel (o arquiteto, que trabalhou com Virilio). Há também o ministro da Defesa do governo francês da época.

Para o seu amigo criador de histórias em quadrinhos Enki Bilal, Virilio diz a frase que mais me incentivou a recomendar o documentário: “Bilal, somos trágicos, mas não tristes, o que falamos é excitante, como em ‘Antígona’.” (E “Antígona” é peça que também anda me perseguindo.) Mas adiante, a mesma coisa ainda mais resumida: “pensar não é triste”. Preciso acordar repetindo isso todos os dias.

Também foi impactante ver a obra mais escandalosa de outro amigo de Virilio, o arquiteto Claude Parent, classificado pela revista “032c” como supermodernista. É a igreja de Santa Bernadete de Banlay, edificada entre os anos 1963-1966 na cidade de Nevers. Antes eu só conhecia fotos, mas no documentário, Virilio dá entrevista em seu interior. Agora posso entender a razão para as pessoas se recusarem a se casar lá dentro. Parent e Virilio são fascinados pelos bunkers que os alemães construíram na França durante a Segunda Guerra Mundial, principalmente aqueles que protegiam a costa do Atlântico e hoje desceram ribanceiras impulsionados pelas tempestades de inverno, ficando tortos e assim impedindo distinção entre chão, paredes e teto (o que deu outra ideia-provocação para Parent, que passou a inclinar o solo de seus edifícios). Pois bem (ou pois mal): a arquitetura da igreja tem essa inspiração catastrófica. (Parent depois projetará shopping centers e usinas nucleares.)

Tudo tem a ver com a filosofia ou a maneira de ver o mundo contemporâneo proposta por Virilio. Trágica-alegre, mas não pessimista. Ponto de partida: todo desenvolvimento tecnológico inventa também um novo acidente. Por exemplo: Santos Dumont, sem ter sido esta sua intenção (ele só queria fazer o homem voar), poderia ser pensado igualmente como pai do acidente na aviação. Agora, com a aceleração do ritmo das invenções, a aparição de acidentes para os quais temos inevitavelmente menos controle se torna cada vez mais veloz. O que seria o equivalente de uma queda de avião para totalidade da internet, com sua troca de “big data” (cada vez mais big), em velocidades tão altas que se tornam próximas da instantaneidade,  colocando tudo em conexão com tudo em tempo real? Daí a sensação constante de claustrofobia, como se estivéssemos dentro de um bunker, esperando o próximo ataque.

Virilio cita Churchill: otimismo é ver oportunidade na calamidade. Como vamos sair desta: desacelerar radicalmente ou acelerar ainda mais? Dominique Wolton declara, no documentário, que o ser humano vive tentando equilibrar dois impulsos contraditórios: adora a instantaneidade, mas vive na duração. Hoje a alternativa gera novas tendências comportamentais, que devem se multiplicar nos próximos anos, imagino que girando em torno de dois movimentos: de um lado tudo o que é slow (food, design etc.), do outro o aceleracionismo (para o qual o único antídoto para os problemas atuais é mais do mesmo, muito mais). Provavelmente este seja o debate mais importante travado atualmente. O decrescimento é desejável? Uma outra ciência é possível? Qual o sentido do progresso? Explorações animadas para as próximas sextas-feiras.

velocidade

27/07/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 26/07/2013

Beto Villares tem ouvido bom. Ele é produtor de vários discos que sempre nos apresentam tratamentos sonoros originais. Por exemplo: “São Mateus não é um lugar assim tão longe”, de Rodrigo Campos; “Vagarosa”, da Céu; “Siba e a Fuloresta”. Outro de seus talentos é captar invenções poéticas na fala cotidiana. Se não me engano foi uma criança tentando oferecer serviço informal de guia turístico no litoral nordestino que lhe deu a ideia para o título do seu único CD até agora: “Excelentes lugares bonitos”. De um agricultor pós-caipira com bem mais idade, convidando-o para outro café ao lado de seu roçado, guardou frase que virou bordão em nossas conversas: “bobagem pressa”. Adotamos, eu e Beto, essas palavras, como ideal de vida.

Por isso os recados que se dizem urgentes são os que eu mais demoro a responder. Aprendi que não requerem ação imediata. Quando ligo dias depois, as coisas já se resolveram ou ainda estão lá paradonas, sem prejuízo algum. A urgência foi banalizada de tal modo que precisamos usar “urgente mesmo!” ou “urgentíssimo!” quando o bicho está pegando. Porém, mesmo nesses casos, há controvérsias sobre a necessidade da pressa. Já vivi situações realmente graves na vida – dentro da sala de emergência de hospitais é onde descobrimos com sofrimento: só podemos ficar esperando, ninguém sabe dizer ao certo quanto vai demorar. Até que uma decisão (geralmente coletiva) seja tomada, ajuda manter a calma.

Volto então ao assunto iniciado seis colunas atrás. Parece que foi há uma eternidade. Quando comecei a escrever sobre o poder do Google, o mundo era diferente. Nunca tinha ouvido falar de Edward Snowden ou do projeto de ciberespionagem do governo americano (que deve ser classificado como urgentíssimo, e isso seria “desculpa” para furar a fila do processo legislativo comum). Também o gás lacrimogêneo e o coquetel molotov não tinham voltado com tudo nas ruas de todo o Brasil. A impressão é de atividade frenética, de nada será como antes, mais uma vez. As multidões estão tão ansiosas e apressadas como Larry Page, o cara do Google que reclamou da lentidão e das imperfeições do mundo real, querendo outro lugar – com outras leis que ninguém sabe ao certo como serão criadas: plebiscito? democracia direta? sábio ciberplatônico? – para “experimentar coisas novas e descobrir o efeito sobre a sociedade e as pessoas”.

Recomendo a todos a leitura vagarosa de livro fininho de entrevistas com autor que a velocidade das modas intelectuais parece ter transformado em relíquia dos anos 1980: “A administração do medo”, de Paul Virilio. Interessante como começa usando a palavra “ocupação” com sentido diferente do atual “occupy” (Virilio viveu na França ocupada pelos nazistas): “o medo é um ambiente, um meio, um mundo. Ele nos ocupa e nos preocupa.” O ataque atinge ponto central do discurso da pressa: “o medo e sua administração estão hoje fundamentados na incrível difusão do tempo real” ou na “ditadura do tempo real”. Hannah Arendt vem a seu socorro com palavras sombrias: “o terror é o consumação da lei do movimento.”

Virilio é pensador apocalíptico. Mas seu lema não é “pare o mundo que eu quero descer”. Ele sabe que não é possível parar – sua proposta é a diversificação de ritmos (a cronodiversidade), pois nossas sociedades ficaram arrítmicas, ou melhor, “elas só conhecem um ritmo, aquele da aceleração contínua. Até o crash, e ao crash sistêmico.” Não há mais tempo para pensar, debater: acelerando tudo, acabamos sendo obrigados a transferir o poder de decisão para mecanismos que podem “funcionar na velocidade imóvel da instantaneidade.”

O crash de 1987, por exemplo, foi resultado também da conexão quase instantânea de bolsas de todos os continentes, revelando a “impossibilidade de gestão dessa velocidade” por simples seres humanos. Já que os Estados não podem mais controlar a economia, o que lhes resta é “convencer os cidadãos que podem lhes assegurar sua segurança corporal”. Correria e trapalhada. Já descobrimos: num trem bala, é impossível enxergar qualquer coisa se olharmos diretamente para os lados. Sem a visão lateral ficamos cada vez mais perdidos. Virilio repete aquilo que um onceiro de Guimarães Rosa já sabia: “a sobrevivência está ligada à antecipação da surpresa; e a surpresa nunca é frontal.”

Em qualquer situação, só com tempo podemos escolher bem entre várias soluções possíveis, todas elas com vantagens e desvantagens. Democracia é arte lenta e muitas vezes chatérrima. Confiança não pode ser construída, ou ser merecida, na instantaneidade, na velocidade dopada. Virilio arremata: “o direito do mais rápido é a fonte do direito do mais forte. Hoje, o direito está submetido a um estado de urgência permanente.” Em resumo: além de “bobagem pressa” devemos aprender a dizer “perigo pressa”.


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