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ciberdesbunde – o início do guia

13/12/2014

Texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 12/12/2014

 

1989. Em sebo da Praça Tiradentes, encontrei revista com Sun Ra na capa. Lembro essa descoberta agora para comemorar o centenário de nascimento deste gênio da música vindo – acredito piamente – do espaço sideral. Um dos meus momentos de mais intensa alegria foi provocado por Sun Ra cantando por horas, em palco de Nova York e com acompanhamento pós-free-jazz, sobre passeios pelos anéis de Saturno. Só a descrição desse show já seria material suficiente para a coluna de hoje. Porém, preciso cumprir promessa da semana passada: iniciar guia para as origens do ciberdesbunde. Então, a lembrança da revista garimpada naquele sebo tem outra razão para aparecer por aqui. Seu título espantoso – note bem: isso aconteceu em 1989 – era “Reality hackers”. Deve ter pousado na Praça Tiradentes a bordo de um disco voador psicodélico.

Depois de folhear aquelas páginas, nunca mais fui o mesmo. O fato de mudar de maneira de ver o mundo toda semana (como esta coluna comprova) não banaliza o impacto que a “Reality hackers” teve em minha vida. O editorial ainda me deixa zonzo. Tentando traduzir o idioma californiano: “‘Reality hackers’ conspira ativamente com holográficos, vídeo-artistas, músicos, designers de software, cartunistas, místicos, Mestres Ocultos, Amantes Ocultas e musas concubinas. Nós formamos uma Casa de Mídia para bombardear a desprevenida América com canal banda larga de parasitas mentais e memes estridentes. A Casa de Mídia Reality Hackers é um vórtice de plágio e tradução simultânea, onde agentes da Fronteira em eterna expansão se encontram para crospolinizar, ascender, e transferir coisas de uma mídia para outra – uma estação de codificação e descriptografia para predação polisensorial.” Nas páginas seguintes a coisa fica mais punk, com artigos de Hakim Bey, Timothy Leary, Terence McKeena, entrevista com Brian Eno, reflexões sobre ciberterrorismo, heavy metal, paganismo high-tech e MDMA.

Tudo editado pelo casal R. U. Sirius e Queen Mu (seu crédito era “domineditrix”), que depois lançou a “Mondo 2000”, revista obrigatória para a turma que transformou a internet em cultura de massas (para além da massificação da cultura). O número de assinantes era pequeno, mas influente. Tanto que, em fevereiro de 1993, o pessoal alternativo da Mondo fez o design da capa da revista – mais mainstream impossível – “Time” sobre o movimento cyberpunk. R. U. Sirius e Queen Mu, junto com Rudy Rucker (outro ídolo desta coluna), tinham acabado de lançar um “Guia do usuário para a nova fronteira”, cheio de verbetes pitorescos como “sexo virtual”, “música do DNA”, “nomadismo” e “hipertexto”. Parece de época, e é, mas só hoje algumas promessas daquele momento se transformaram em produtos no mercado. Como a realidade virtual, vide o Oculus Rift.

A “Reality hackers” começou como fanzine chamado “High frontiers”, dedicado principalmente ao debate sobre alterações da consciência por meio de substâncias psicoativas. O encontro de R. U. Sirius e Queen Mu com o pessoal – Stewart Brand e Kevin Kelly, entre outros – que produzia o Whole Earth Catalog foi decisivo para o reconhecimento do papel cada vez mais central da tecnologia para qualquer avanço contracultural. O catálogo, que tinha como subtítulo “Acesso a ferramentas e ideias”, facilitava a venda de produtos e publicações que tornavam possível uma vida “faça você mesmo”, tanto em termos cibernéticos quanto ecológicos. Tenho a edição de 1986, que na página 351, sobre “redes de computadores”, traz a seguinte profecia: “Um dia todo mundo vai se comunicar desta maneira.” E acrescenta: “Os editores da ‘Whole Earth” ficaram tão enamorados das redes de computadores que fundamos nossa própria – a WELL (Whole Earth ‘Lectronic Link). Como em todas essas redes, você paga por minuto – no nosso caso US$3/hora mais $8/mês mais (se você não é local) $4 para ligação interurbana.” O que hoje parece caro naquela época era o mais em conta que havia. E quem pagou sabe que viveu no WELL uma experiência mítica. Foi o Woodstock do ciberdesbunde.

Em 1994, a “Time” publicou capa sobre “o estranho novo mundo da internet”. Havia até box com respostas para as perguntas: “o que é a internet?” ou “como me conecto?” Início da matéria: “A maior rede de computadores do mundo, antes um playground de cientistas, hackers e gearheads, está sendo tomada por advogados, mercadores e milhões de novos usuários. Há espaço para todos?” Vinte anos depois a questão permanece aberta. Ainda bem que o Internet Archive desenvolve o “Mondo 2000 history project” que mostra para quem chegou agora na rede o rumo que nossa vida virtual poderia ter tomado, ou ainda pode tomar.