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resgatando o meme

30/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 06-08-2010

Quem ri, superior, dos gerúndios das operadoras de telemarketing não deve observar atentamente os vicios da própria fala ou escrita. É ruim, não é mole, ninguém escapa: grupos diferentes, com mais frequencia do que se pode imaginar, sucumbem a diferentes modismos de linguagem, que aparecem sorrateiramente e conquistam nossos cérebros com a força de uma virose, daquelas que poderiam nos derrubar na cama com febre alta. Porém, sob esses ataques linguísticos, na maioria das vezes, nem percebemos que estamos doentes. Achamos sempre que nossa saúde é inabalável, que temos controle sobre nosso palavreado, que tudo que dizemos é fruto de uma personalidade original, que se exprime como nenhuma outra. Na realidade, macaqueamos uns aos outros o tempo todo, de forma absolutamente incontrolável.

Veja o caso do “resgate”. Uma vez, irritado com o número de vezes que a palavra resgate aparecia nos títulos das matérias de um caderno cultural, mandei email para o editor, pedindo compostura. Na resposta, reconhecendo os exageros, havia a promessa de providências imediatas. Mas nada aconteceu. Toda semana leio, em letras garrafais, que fulano resgatou isso, que tal peça vai resgatar aquilo, que o DVD de sicrano apresentará um resgate importantíssimo. Acho que todo mundo acha chique, ou solene, ou inteligente, dizer que está resgatando alguma coisa. Já fiz até campanha na TV, dizendo que deveríamos voltar a usar resgate apenas em caso de acidentes. Mas não adiantou bulufas. A virose resgateira é bem mais poderosa que meus apelos.

Quando faço a comparação com doença, não estou sendo totalmente imprudente. Lembro de um livro de Dan Sperber, antropólogo francês, intitulado La contagion des idées, que tentava  – de forma ainda tímida e inconclusiva – propor uma teoria para a transmissão e replicação de determinados pensamentos, e formas de exprimir esses pensamentos, entre indivíduos e culturas. Poderia pegar mais pesado, apelando para os fundamentos genéticos do ser humano, e declarando que tudo isso, mesmo o resgate, estaria previsto numa mutação maluca de nosso DNA, ou de nossos genes egoístas que produziram nossos corpos, e todas as espécies vivas, só para se reproduzir mais “viralmente“. Então como Richard Dawkins, o sacerdote dessa religião hardcore do egoismo genético, falaria também dos “memes“, unidades mínimas de informação do mundo das idéias, que também só pensam, não apenas em beijar como no funk do MC Leozinho, mas também, como um gene, em se reproduzir, usando todo tipo de arma tóxica para colonizar novos cérebros humanos. Segundo essa crença sinistra, quando passamos uma idéia adiante estamos apenas sendo seus servos, zumbis hospedeiros do seu exército de reprodução.

Contudo, ao sugerir isso, eu estaria apenas sendo órgão reprodutor do idéia de meme – o meme do meme é uma das epidemias mais poderosas que circula na internet agora, e quando escrevi o parágrafo anterior acabei contaminando os cérebros dos leitores que me acompanharam até aqui, que vão inevitavelmente se transformar em papagaios meméticos, disseminando o vírus em suas conversas, espalhando a moda, mesmo quando a tentativa for atacá-la. E, triste notícia, não existe vacina contra idéias. Para evitar a contaminação teríamos que nos isolar hermeticamente do convívio social. Sem epidemia memética não há vida social, e a vida social pressupõe ataques constantes e ininterruptos de memes monstruosos.

Como disse, ninguém escapa. A vulnerabilidade aos memes não é função de menor ou maior sofisticação intelectual. Gente intelectualmente muito sofisticada também é vítima, o tempo todo, de novos vírus linguistico-fashionistas. Apenas sua propagação é mais sutil e camuflada. Exemplo? Conte o número de vezes que o verbo “operar” aparece em textos recentes de filósofos, cientistas sociais, críticos literários – e não apenas brasileiros: o modismo é totalmente globalizado. “O pensamento de Gilberto Freyre opera o resgate do racismo…” O pior é quando se “opera pela lógica” disso ou daquilo. E não pode haver xingamento mais cruel do que dizer que alguma coisa “opera pela lógica do mercado”. O engraçado é que as pessoas falam isso com seriedade sacerdotal.

E as malditas “questões pontuais”? Quem ainda aguenta ler, em textos de ONGs, que o autor vai “enumerar apenas algumas questões pontuais”? Há também cada vez mais “conceito” no mundo. Essa palavra escapou de debates mais acadêmicos e virou figurinha fácil em qualquer reunião para decidir qualquer coisa: qual o conceito do projeto? Até campanha de publicidade de amaciante de roupa para a Classe D e E tem que ter um conceito. O cliente adora, principalmente se o conceito “empoderar” o consumidor. Ou, obviamente, se “alavancar” as vendas…

As epidemias de memes não operam segundo nenhuma lógica conhecida… Se alguém descobrir essa lógica, ficará mais rico que o Eike Batista. Um novo vírus – por exemplo, a mania de “pontuar” os discursos – pode ter surgido num seminário do Lacan, e depois ter ganhado os corações e mentes do Baixo Gávea. Um verbo, como o “alavancar”, pode ter iniciado sua atividade viral num livro para doutrinar CEOs, foi adotado de forma irônica por uma estrela da FLIP e aí já foi: vamos alavancar nossa relação, meu amor? Ou será melhor, antes, como precaução, desenhar o seu conceito? Eu sei, essa parada de relação é muito “complicada”… Mas tudo é “válido” na vida!