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desenhar

21/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 17/12/2011

Meses atrás, nesta coluna, tentei iniciar minha campanha contra o uso desenfreado do verbo “resgatar”. Não adiantou nada, estou sem moral, ninguém me fortaleceu… Mesmo aqui no Segundo Caderno, toda semana alguém resgata alguma coisa, solenemente, como até as manchetes dos artigos fazem questão de nos anunciar. Entrego minhas armas, já me acostumei. Assim como deixei de me arrepiar ao ouvir outro verbo da moda: “desenhar”. Hoje as pessoas ficam alegres, e se acham refinadas (talvez com razão), ao declarar que estão desenhando projetos ou até relações amorosas. Somos todos designers.

Culpa dos próprios designers. Não há profissão mais “estilosa”. Mesmo suas nítidas tendências expansionistas, ocupando cada vez mais postos no mercado de trabalho, são combustíveis para seu charme. Passamos a viver cercados por production designers, sound designers, landscape designers, lightning designers, fashion designers etc. Ninguém quer ser mais iluminador, produtor, jardineiro, costureiro… O mundo se sofisticou demais para caber na taxonomia profissional “desenhada” num passado pré-Apple.

Os designers mesmo, diante da invasão de sua praia, tiveram que criar novas embalagens para vender seus peixes coloridos com esmalte khaki da Chanel. Poucos deles se contentam com objetos ou arte gráfica. Agora definem o que fazem como o desenho de futuros ou, para ser ainda mais vago, de possibilidades. Diego Rodrigues, da IDEO (empresa de design que tem como lema “ajudamos organizações a inovar”), é um dos pioneiros do design de negócios. Outros, crentes que estão abafando, chegam a declarar que todos os problemas do mundo, inclusive os dos governos, podem ser resolvidos com melhores desenhos. E assim vamos, até o verbo desenhar sumir envergonhado do panorama. Já há designers que se intitulam, com orgulho, “contadores de história”.

Pode parecer que estou sendo apenas irônico, ou ridicularizando a nova onda desenhista. Não é minha intenção. Claro que alguns exageros são ridículos (como as cartas de amor, de Fernando Pessoa…). Porém, mesmo certos exagerados (como Cazuza) são pessoas que admiro muito, autores das idéias mais brilhantes emcirculação na atualidade. Como o Diego Rodriguez, citado acima, um dos cinco designer mais espertos do mundo, segundo a lista da revista Fortune. Os outros quatro: em primeiro lugar, é claro, Jonathan Ive (da Apple, o chefe de criação do iPod, iPhone e iPad); Shigeru Miyamoto (da Nintendo, que foi tema de uma coluna inteira por aqui); Indrani Medhi (pesquisadora da Microsoft, que tenta criar uma interface de computador para analfabetos); e Jan Chipchase, que ficou famoso quando trabalhava na Nokia viajando pelo mundo para observar como pessoas de diferentes culturas usam a tecnologia (principalmente celulares).

Passei a acompanhar, por RSS, o blog Future Perfect de Chipchase desde que li um artigo sobre seu trabalho em Uganda, revelando a forma engenhosa que o pessoal das periferias locais criou para enviar dinheiro para parentes através de créditos de celular (esse mesmo artigo falava de como os celulares ajudam os pescadores pobres do sul da Índia a, ainda no alto mar, descobrir que portos têm as melhores cotações para os peixes que caíram em suas redes, mas isso é material para outro texto). Em suas andanças, e muitas fotos, Chipchase conduz um trabalho que pode ser considerado fast-etnografia (a antropologia também está com tudo), mas muito bem feita, descobrindo futuros em locais perdidos da Terra, como uma beira de estrada afegã, ou uma barraca de um camelô de aldeia tibetana. Hoje, ele vai morar em Xangai. Morar em Xangai é tendência…

Também tento sempre seguir os passos de Anab Jain. Foi a primeira designer que vi se definir, enfaticamente, como contadora de histórias (depois descobri que o “story-telling” é tão tendência quanto Xangai, virando até tema de toda uma edição da revista Volume, lançada por uma das turmas do arquiteto – que acaba de “desenhar” o currículo de um novo curso de design em MoscouRem Koolhaas). A ênfase nas histórias, criada de preferência por muitas vozes, revela sua maior preocupação com o processo e não com o produto acabado. Para acompanhar um desses processos vale a pena ver os posts do “Power of 8”, desde o vídeo de Anab explicando seus objetivos e convocando outras sete pessoas, via web, para imaginar “futuros otimistas”. Foram selecionados de pedagogos a um químico. Gosto especialmente do trabalho do Charlie Tims, que incentiva muita gente a criar o que chama de “nubs”, espécie de vídeo-clipes para expor idéias.

Outro participante do Power of 8 era um especialista em permacultura, método que pretende “desenhar” plantações e até cidades inspirados nos processos naturais. O verbete da Wikipedia em inglês mostra como o design se infiltrou com sua doce e chic tirania em todos os lugares: “A permacultura é uma abordagem para desenhar assentamentos humanos e sistemas agrícolas que são modelados na relações encontradas nas ecologias naturais. A permacultura é o design do uso sustentável da terra.” Sustentável. Outro conceito que tem sido resgatado de forma descontrolada, como uma praga “natural”. Hoje em dia tudo acaba em sustentabilidade, sem explicações, inclusive este texto.

Shigeru Miyamoto

10/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 12/11/2010

Na semana passada, a Microsoft lançou o Kinect para Xbox 360. Foi o terceiro console a seguir a tendência, iniciada pelo Wii da Nintendo, e depois pelo recente Playstation Move da Sony, de tirar os games da tela e misturá-los com o mundo. O Kinect tem câmera, microfone e sensores 3D que captam movimentos e falas. Assim o jogador não precisa mais de controle para interagir com os games: ele está dentro do jogo. A empresa de Bill Gates diz que vai vender 5 milhões de kinects em 2010. A Sony diz que já vendeu 2,5 milhões de moves só nos EUA e Europa. Números impressionantes. Mas ainda merreca se comparados com o 1 bilhão de dólares que a Nintendo arrecadou só com o WiiFit, aquela “balança” de malhação do Wii. Shigeru Miyamoto, o gênio por trás de tudo que a Nintendo lançou nestes últimos 25 anos, continua em outro “level”, muitos pontos à frente nesse jogo feroz que vai determinar o futuro do entretenimento.

25 anos é a idade de Mario, aquele simpático encanador bigodudo que hoje tem imagem tão reconhecivelmente pop quanto Mickey Mouse. Mario foi criação de Miyamoto, primeiro participando do triângulo amoroso de “Donkey Kong”, que é considerado decisivo na história dos games não apenas por ter lançado personagens que hoje são celebridades, mas por sua concepção engenhosa de plataformas e obstáculos, que depois se tornaram elementos triviais em muitos outros jogos.

Além de Mario, Miyamoto é também pai das oníricas personagens da série Zelda, que inclui alguns campeões de lista de melhores games de todos os tempos, influenciando o imaginário de várias gerações de adolescentes. Todas as suas séries reunidas (Mario, Zelda e vários games, entre eles aqueles estrelados pelos fofíssimos nintendogs) venderam mais de 350 milhões de exemplares. Não contente com esse sucesso na criação de jogos, Miyamoto passou também a ser inventor de equipamentos que expandiram em muito a “jogabilidade” de seus universos ficcionais paralelos, lançando novas maneiras de brincar com a informação eletrônica, reinventando a indústria da qual faz parte. Quando eu vi pela primeira vez alguém usando o controle do Wii como se fosse uma raquete de tênis, batendo na bola que era “arremessada” da tela da TV, eu pensei: “Será que tenho mesmo que encarar isso com naturalidade?” Nunca tinha presenciado algo tão parecido com ficção científica maluca. Hoje aquilo é totalmente natural.

Miyamoto é nosso melhor professor para a vida nessa nova natureza, desenvolvida em sua mente e seus laboratórios. Mas quem é esse cara que tem tanto controle sobre nossas vidas? Pouca coisa é realmente interessante na vida dele. Não é como Will Wright, outro gênio dos games, que tem atuação midiática mais “condizente” com artistas de sua estatura. Miyamoto parece trabalhador comum da indústria japonesa, nem considera o que faz uma arte, não dá entrevistas citando filósofos e cientistas, é figura tímida e quase apagada. Até hoje, quando tem 58 anos, fica religiosamente na Nintendo de 9 às 22/24 horas, tendo mesmo se casado com outra funcionária da empresa. Algumas de suas declarações famosas soam simplórias, jogando contra suas invenções, ou contra seu papel nessas invenções. Nos autógrafos para fãs crianças, ele escreve: “em dias de sol, brinque ao ar livre”. Sobre o que busca em novos profissionais: “quando alguém se destaca demais na fase de seleção, geralmente acabamos descobrindo que ele é do tipo que trabalha melhor sozinho e, atualmente, para atuar na criação de jogos, é vital saber trabalhar em equipe.” Tudo bem japonês.

Na realidade, como diz Jesse Schell, “a maioria dos mundos transmídia de sucesso estão enraizados na imaginação e no estilo estético de um único indivíduo. Gente como Walt Disney, Shigeru Miyamoto, L. Frank BaumTajiri Satoshi e George Lucas”. Schell é o pensador “da hora” quando o assunto é game. Foi catapultado para o mundo dos gurus há pouco tempo, através do vídeo de sua conferência na D.I.C.E (Design Innovate Communicate Entertain), encontro fundamental para a indústria dos jogos eletrônicos (em 2011 terá sua décima edição), que acabou tendo mais de um milhão de views nos YouTubes da vida. Uma palestra mais recente, proferida na Long Now Foundation, é uma maratona de boas idéias, um mapa essencial para nos guiar no mundo pós-Miyamoto, pós-Wii. Vale a pena ser assistida na íntegra, apesar de suas duas horas de duração (e uma alma generosa poderia colocar legendas em português no vídeo).

Schell é profeta do “game-apocalípse”, o momento em que estaremos envolvidos em jogos a cada segundo de nossas vidas. Por exemplo: você acorda e vai escovar os dentes, a escova tem sensores conectados via wi-fi à internet, a cada escovada você ganha pontos que poderão significar descontos na próxima ida ao dentista. Ou então: na caixa do sucrilho do café da manhã haverá uma tela através da qual você poderá se comunicar com seus amigos do Orkut que gostam daquela marca de cereais. E assim por diante. Schell diz que os games ainda estão no estágio cinema mudo. Todo mundo achava engraçadinho, mas ninguém levava os filmes muito a sério. Até que surgiu o cinema falado. O que vai ser a “fala” no mundo dos games? Esperemos as próximas invenções de Miyamoto. Quietinho lá em Quioto, ele ainda vai nos surpreender muito, e mudar nossas vidas várias vezes.


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