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rastros de batom

26/10/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 25/10/2013

“Esta explosão foi provocada por grupos em revolta contra a moderna sociedade de consumo e tecnológica, seja comunista no Leste ou capitalista do Ocidente. São grupos, ademais, que não têm nenhuma ideia sobre o que querem colocar no lugar disso, mas que se deleitam com negação, destruição, violência, anarquia, e brandem a bandeira negra!” Trata-se de governante atual condenando manifestações em Istambul, em Nova York ou no Rio de Janeiro? Que nada. Essas palavras foram proferidas há 45 anos, por um General De Gaulle comemorando, com discurso na TV francesa, a reconquista do poder depois do susto de Maio 68. Muitos analistas já enumeraram as diferenças entre aquele momento e o que vivemos hoje. Concordo. Mas sempre me espanto com semelhanças. Pergunto: empacamos no eterno retorno do mesmo impasse?

Compare fotos do Quartier Latin em 1968 e da Cinelândia em 2013. Fumaça de bombas, carros virados, saques, porrada, pichações apocalípticas. Tudo bem, os “enragés” que ocupavam a Sorbonne não tinham smartphones. Fazia falta? As convocações para os protestos, que desencadearam greves gerais e tomadas de fábricas, percorriam a cidade e o resto do país com rapidez impressionante, sem depender da internet. Não se falava em neoliberalismo, mas em “sociedade do espetáculo”. Não havia black blocs, mas os “blousons noirs” (turmas de jovens de periferia, surgidos com o iê-iê-iê francês dos anos 50 e uniformizados com couro negro) botavam pra quebrar.

O jornal L’Aurore de 7 de Maio de 1968 descrevia assim os acontecimentos da noite anterior (a primeira a ter pancadaria): “Juntamente com os manifestantes podiam ser vistas turmas de blousons noirs armados com barras de aço, vindos dos arredores de Paris para ajudar os estudantes.” Mesmo a palavra “vândalo” ganhou enorme popularidade em notícias da imprensa. E foi recuperada (termo caro para o situacionismo, “movimento” que formulou várias das ideias que ganharam as ruas e o mundo naquele Maio) pelo protesto, de maneira irônica, como no Comitê de Segurança Pública dos Vândalos, de Bordeaux, conhecido por um panfleto que anunciava o “verdadeiro” significado de várias palavras (“sociedade” era “extorsão”, “diálogo” era “masturbação” e assim por diante). Curiosidade: nos anos 2000, a banda nova-iorquina Panthers lançou disco que continha a faixa “Vandalist Committee of Public Safety” – seu primeiro verso: “não somos uma banda, somos um conluio de terroristas.”

Estou me perdendo em detalhes pitorescos sem importância. Na verdade, escrevo este texto só para clamar por tradução brasileira de “Lipstick traces” (no qual encontrei o discurso do De Gaulle citado acima), livro de Greil Marcus (cujo pensamento precisa ser mais conhecido no debate cultural nacional), lançado em 1989. Seu subtítulo é “a história secreta do Século XX”. Fala de punk, situacionismo e dadaísmo, mas se fosse escrito hoje poderia incluir perfeitamente divagações sobre o Occupy Wall Street. Sua concepção de história não é nada linear: “resultado de momentos que parecem não ter deixado nada após, nada além do mistério de conexões espectrais entre pessoas bem separadas por lugar e tempo, mas de alguma maneira falando a mesma linguagem?” Assim o alfinete na boca da figura que aparece no cartaz do Atelier Populaire no Maio parisiense vai reaparecer na boca da Rainha Elizabeth na capa de disco dos Sex Pistols. Tudo culpa da “revolta do inconsciente social”, não capturando a história, mas atuando – ao mesmo tempo – como dádiva e maldição para seu desenrolo. Os eventos efêmeros passam a servir de julgamento para tudo que vai acontecer depois, e isso também é o significado do “no future”.

O livro de Greil Marcus é uma enxurrada de interpretações desconcertantes para fatos emblemáticos e radicais da modernidade. Fica claro que os situacionistas não pensavam a nova rebelião popular como consequência da escassez. Eles escreveram: “Pela primeira vez não é a pobreza, mas a abundância material que tem que ser dominada.” Por isso podiam fazer “demandas ilimitadas”. Marcus escreve em outros tempos: “Foi como se Thatcher e Reagan tivessem adotado uma teoria situacionista chave: abundância é perigosa para o poder, e privação, se gerida cuidadosamente, é segura.” Tentaram fazer aquilo que já era considerado direito de todos voltar a ser privilégio do 1%. Bolhas após: conseguiram?

Como já escrevi por aqui: abundância pede mais abundância. É erro tentar justificar ou enaltecer o que acontece em nossas ruas hoje com discursos antigos da ditadura da penúria. Precisamos inventar teorias/práticas pós-punk-funk-ostentação. Para começar: lutemos por um hackerspace em cada praça.

tudo punk-dominado

06/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 24-09-2010

Duas semanas atrás, em  Londres. Tudo punk-dominado: impossível, com olhar atento/”antenado”, circular pelos arredores chiques de New/Old Bond Street sem encontrar algum vestígio da influência cada vez mais consolidada que Vivienne Westwood exerce em certa cultura contemporânea. Os folders de suas novas coleções ordenavam em letras garrafais: “Compre menos”. Havia uma exposição de seus sapatos na loja de departamentos Selfridges. As vitrines da Lee traziam o lançamento de jeans com sua assinatura. E dentro do Palácio de St. James, residência real, na Garden Party organizada pelo príncipe Charles, Vivienne Westwood era a curadora de moda. Apenas Vivienne Westwood não. O material de divulgação do evento a tratava por Dame Vivienne Westwood, título ainda de alguma nobreza que recebeu em 2006.

Nada mal para alguém que inventou, junto com seu marido Malcolm McLaren e o designer situacionista Jamie Reid, o estilo visual e indumentário dos punks. Ou que, ainda no início dos anos 80, dizia fazer “moda de confrontação” e declarava: “Tenho uma visão política da moda: é uma maneira de contestar o sistema.” Interessante encontrá-la agora no núcleo duro do “sistema”, entronizada nas lojas mais comerciais e aliada de um príncipe que não esconde uma visão artística tradicionalista, vide seus ataques a toda tentativa de construção de edifícios de arquitetura (pós)moderna em Londres. Mudou o sistema ou mudou Vivienne Westwood?

A Garden Party do príncipe Charles não era uma festa qualquer, sem causa. Havia uma isca: os jardins cheios de História dos palácios Clarence House, St. James, Marlborough House e Lancaster House, geralmente cercados por forte aparato de segurança, estavam abertos para a população plebéia. Claro, era preciso pagar as libras da entrada, mas, repetindo a propaganda, por uma boa causa: o dinheiro arrecadado seria aplicado em alguma iniciativa ecologicamente correta de Sua Alteza. Muitos debates, shows, exposições de projetos que nos incentivavam a poupar energia, deixar de viajar, não desperdiçar nada e até plantar a própria comida seguindo o exemplo da horta orgânica cultivada ali mesmo pelo Príncipe de Gales.

Confesso que fico sempre meio apavorado nesses ambientes verdes, achando que sou culpado pelo fim do mundo. Também tenho implicância com a idéia de que a Natureza é boazinha e que tudo que é artificial faz mal. Mesmo assim consegui me divertir nos jardins reais, descobrindo gente bem maluquinha, não apenas velhinhas fazendo bolsas com o tecido das cortinas velhas dos palácios. Como o  pessoal de moda reunido pela curadoria da Dame Vivienne Westwood. Tenho certeza que suas criações vão ser cada vez mais presentes em qualquer passarela: o pessoal do coletivo Noki House of Sustainability, a atriz Emma Watson (Hermione nos filmes de Harry Potter) agora também eco-designer, ou a estilista Orsola de Castro, líder do movimento do “upcycling”, o termo fashionista para reciclagem.  Mas em nenhum momento deixava de causar estranheza a presença de idéias até bem extremistas em local tão “estabelecido”.

O ar estranho dos tempos, onde está tudo – conservadores e vanguardas – junto e misturado, ficou mais denso quando entrei, bem do lado dos palácios, no prédio do Institute of Contemporary Arts (ICA), ocupado pelos russos do Chto Delat?, coletivo ou “plataforma” formado por artistas, filósofos, críticos e escritores que tentam fundir teoria política, arte e ativismo. (E quando lembramos do poder que magnatas pós-Perestroika, como Roman Abramovich, exercem hoje em Londres – do futebol do Chelsea ao circuito de arte, isso para falar só na “superestrutura”… – tudo fica ainda mais pesado e animado.) Chto Delat? pode ser traduzido como Que Fazer?, título do livro de Lênin, que trata das “questões palpitantes  do nosso movimento”. O pessoal do Chto Delat? faz muitas coisas bem palpitantes: vídeos, instalações, performances, um jornal, seminários etc. Para Londres prepararam várias ações diferentes que poderão ser acompanhadas online até 24 de outubro.

Assisti o final de um seminário que durou 48 horas. Os participantes tinham mesmo que ficar 48 horas juntos, inclusive comendo e dormindo juntos nas galerias do ICA. Terminou com uma performance brechtiana. O tema era “Que lutas temos em comum?”, tudo comandado por Olga Egorova, artista que cria umas roupas filosóficas (a que mais gostei era um vestido com a seguinte declaração bordada, estilo Leonilson, no peito: “acordo às 6 para ler Hegel”). No palco, divididos, dois grupos: os artistas e os ativistas. Atrás deles um coro cantando hinos comunistas. Os artistas recebem convite para exposição patrocinada por uma grande corporação, os ativistas fazem campanha contra a aceitação do convite. Na platéia, a Liga dos Trabalhadores Culturais Revolucionários protesta: tudo aqui seria uma farsa ingênua, promovida com dinheiro público inglês.

No final, palmas, risos – obviamente nenhuma conclusão. Sigo dali para a festa de 16 anos da Rinse FM, rádio que era pirata e comemorava sua oficialização recente no dial londrino. A programação era também extremista: dubstep, UK funky, grime. Muito subgrave esquisito. Na fila da entrada, mais de três mil garotos normais, nada esquisitos. De volta à contradição dominante: a contestação no poder, o choque e o banal de mãos dadas. Mundo complexo este “nosso”.


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