Posts Tagged ‘Tim Berners-Lee’

programadores

02/02/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 01/02/2013

Muita gente retuitou minha coluna da semana passada.  Isso me deixou animado para reafirmar, com petulância: então está combinado, os programadores de cibercódigos são mesmo os novos heróis culturais.  Sendo assim, onde estão os heróis programadores brasileiros? Li outro dia, na Folha, entrevista na qual Salim Ismail (um dos fundadores da Universidade da Singularidade, “encravada em um campus da Nasa, a agência espacial dos EUA, no Vale do Silício”) afirma que “o próximo Facebook deve nascer no Brasil ou em outro país emergente.” Alguém vê sinais desse nascimento por aí?

Quem já trabalhou com internet em território nacional deve compartilhar meu diagnóstico: bons programadores são cada vez mais raros e, portanto, disputados a tapa num congestionamento de serviços geralmente mal pagos (ficou convencionado que tudo no mundo on-line tem que ser barato). Temos muitos artistas e boas ideias, mas pouca gente para colocar a mão na massa do “desenvolvimento”, traduzido em bom código. Muitos projetos precisam comprar ciber-mão-de-obra na Índia ou outra terra com bom desempenho em lógica matemática.

Acabo de escrever orelha para o livro “Reflexões: ativismo, redes sociais e educação” – a ser publicado pela editora da UFBA – que reúne artigos e entrevistas de Nelson Pretto, um dos pioneiros dos estudos tecnoculturais que acontecem na Bahia desde quando a sigla WWW não havia sido criada. Concordo com proposta que reaparece em várias de suas páginas: as escolas brasileiras precisam urgentemente oferecer linguagem de programação digital como disciplina. Não estamos pirando: sabemos os problemas com tabuada ou conjugação são gigantescos. Mas não dá para esperar resolver isso e depois atacar o resto. Tudo precisa ser feito ao mesmo tempo agora.

Brasileiros já formam a segunda maior população no Facebook. Também somos vanguarda no Instagram, no Pinterest, no What’s Up. Maravilha. Só não podemos nos contentar apenas com consumo, por mais ativo que seja. O melhor dessa ciberbrincadeira é encontrar um jeito de fazer nossas próprias ferramentas (de buscas, de socialização, de comércio) e transformá-las em padrões mundiais, eternas enquanto durem. Para que ser campeão no Facebook dos outros se somos (assim esperamos) capazes de desenvolver uma rede social melhor, mais livre e tropicalista (como anunciou Gilberto Gil)?

Um Vale do Silício não aparece do nada. É resultado de anos de investimentos pesados em educação, produção científica e até mesmo criatividade anárquica (os hackers são herdeiros da contracultura hippie). O Brasil pode produzir algo parecido? O que estamos fazendo para que isso aconteça rápido? Não devemos pensar pequeno: temos que criar logo a escola do presente (nem falo em futuro). Devemos alfabetizar todas as crianças em português e C++ (repare bem: não escrevi HTML, que seria somente o mais básico dos básicos), aguçando suas curiosidades para que encarem as máquinas não como objetos fechados, que só podem ser concebidos em lugares distantes (não quero o “assembled in China”, quero o “designed in California”), e sim como instrumentos que podem ser fuçados e remixados no caminho para a invenção de outras máquinas, mais poderosas e necessárias.

O livro de Nelson Pretto me apresentou ao Plano Ceibal, do Uruguai (sou fã do presidente José “Pepe” Mujica, mas esse plano é herança do governo anterior), que caminha a passos bem largos para um ensino público onde todos os alunos e professores têm computadores conectados à internet, e são incentivados a se apropriar das máquinas e da rede de maneira crítica, “programadora”. Podemos aprender muito com a experiência corajosa de nosso pequeno e querido vizinho do Sul.

Tim Berners-Lee, um dos mais valentes heróis culturais que a Humanidade já teve, fez palestra sexta-feira passada no Fórum Econômico Mundial de Davos, ali pertinho dos laboratórios do CERN onde criou a arquitetura livre da web. Cito trecho que é resumo dos parágrafos anteriores. Clamando por mais e melhor educação computacional, Sir Tim lembrou o óbvio: “Eu não estou falando de um curso para lhe dizer que botões apertar. Quando você aprende a programar um computador, está […] se juntando a um grupo de pessoas que fazem coisas incríveis.” É isto: a escola deveria servir para estimular todo mundo a fazer coisas incríveis.

Para terminar, ou começar: desejo sucesso para o incrível Ginásio Experimental de Novas Tecnologias, na escola municipal André Urani, que começa a funcionar nas próximas semanas na Rocinha. Sucesso também para o Digitália, evento de música e cultura digital (programação incrível em digitalia.com.br) que começa hoje na CiberBahia.

muros

06/08/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29-07-2011

Na semana passada, a seção Digital & Mídia deste jornal publicou página inteira sobre a migração da internet “tradicional” para as redes sociais. Talvez não haja fenômeno cultural mais importante acontecendo atualmente no mundo. Muitas pessoas embarcaram na onda e até já abandonaram seus emails, forma de correspondência que passou a ser considerada tão antiga quanto cartas de papel. Por isso esses migrantes são apontados como pioneiros das novas tendências bacanas. Mas podem ser vistos igualmente como garotos propaganda – não-remunerados – de uma reação poderosa contra a liberdade na rede, que faz tudo para transformar nossa vida virtual (já a parte mais decisiva de nossas vidas?) em propriedade de meia dúzia de megacorporações.

Uma capa recente do Segundo Caderno também mostrou pessoas que passaram a usar o Facebook “para compartilhar seu conhecimento”, construindo excelentes guias culturais – que “antigamente” teriam lugar em blogs e sites pessoais – dentro do território do Mark Zuckerberg. Não sei se todos pensam, ao fazer essa opção de publicação numa rede social específica, que só outras pessoas inscritas no Facebook, tendo portanto aceitado os Termos de Uso do Facebook (permitindo que essa empresa utilize seus conteúdos com finalidades comerciais), terão acesso a seu valioso conhecimento. Não posso deixar de comparar: é como deixar as ruas comuns de uma cidade e passar a viver num condomínio cercado por muros e seguranças, com serviços “públicos” próprios e onde todas as casas são propriedade de uma única empresa e não de quem mora nelas.

Redes sociais como o Facebook são conhecidas justamente como “walled gardens”, ou – tradução apressada – “jardins murados”, que não possuem canais livres de trocas de informações com o resto da rede (e que fazem inúmeras restrições técnicas para impedir a “portabilidade” dos dados que criamos por lá – tente, por exemplo, transferir a sua lista de “amigos” do Facebook para uma outra rede social – é praticamente impossível). A mudança da internet “tradicional” para dentro do muro é uma mudança radical de “estilo de vida”. Não sei se todo mundo tem consciência do que está fazendo ao trocar o “tradicional” pelo “novo”.

Não são só as redes sociais os vilões desta minha fábula moral. Perigosas também são todas essas apps que a Apple, com auxílio luxuoso de nossos impulsos consumistas e design genial, transformou em moda obrigatória para smartphones e tablets. Elas quase sempre nada mais são do que interfaces bonitinhas entre o usuário e a internet “tradicional”, tornando nossa vida on-line muito mais facilmente controlável pelas empresas. Tudo que uma app faz, um browser “antigão” poderia ser desenvolvido para fazer, com muito mais compatibilidade entre sistemas operacionais e aparelhos. Agora não: se quisermos que o público tenha acesso às informações que desejamos compartilhar, precisamos de apps diferentes para o iPhone, o iPad, o Android, o sistema-sei-lá-qual-é-o-nome da Nokia e assim por diante. Desenvolver todas essas apps custa caro e precisamos ser aprovados pelas várias lojas – da Apple, do Google etc. – que passaram a ter o poder de aprovar tudo que entra em suas redes. Labirintos de jardins, com muralhas cada vez mais altas.

O exemplo da Apple é seguido por milhares de outras empresas, como as fabricantes de televisão, que estão criando seus mundos fechados de comércio, onde só poderemos acessar apps específicas. Por exemplo: se isso vingar, numa TV da Sony só poderemos comprar vídeos na loja A, ou fazer ligações pela empresa Y, ou participar da rede social Z. Claro, tudo rodará por cima da internet, e um browser poderá ser o caminho secreto para fora do muro. Mas pouca gente saberá o que vem a ser um browser, e muitos dos novos serviços serão desenvolvidos somente para essa nova realidade pós-browser.

Os browsers foram criados nos tempos pioneiros da internet, quando surgiu a própria web, desenvolvida nos laboratórios do CERN, com dinheiro público europeu, pelo santo Tim Berners-Lee, que fez questão de manter sua invenção livre e gratuita. Naquele tempo, as grandes empresas, mesmo a Microsoft, não prestavam tanta atenção para qualquer rede que não fosse corporativa. Só embarcaram na grande aventura virtual depois, junto com outras empresas nascidas no mundo on-line, buscando fechar o que era aberto, para enquadrá-lo em seu “modelo de negócio”. Várias tentativas de transformar a internet em shopping center totalitário explodiram como bolhas. A estratégia atual parece ser a mais difícil de combater. As pessoas estão interessadas em máquinas e não nos conteúdos que elas podem apresentar (não há mais filas para lançamentos de discos – há filas para lançamento do iPhone 4). Compramos, e só depois vamos inventar um uso para os objetos comprados. Uma app colorida (sai dessa, Bjork!) nos transmite a sensação de que não jogamos dinheiro fora.

Quando vou ficando pessimista, penso na Microsoft, que parecia invencível pré-internet, controlando cada vez mais áreas importantes de nossa vida. Hoje tem que correr atrás do Facebook, da Apple e do Google. Esperemos novos corredores, que vão surgir distantes da prisão divertida das apps e redes sociais que querem ser nossas únicas portas de entrada para a verdadeira riqueza das redes. Ainda acredito que a abertura é a única forma de aumentar essa riqueza. O resto vira bolha.

Gov 2.0

23/02/2011

texto publicado em minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/01/2011

Na coluna da semana passada, apenas para introduzir o debate sobre classificação indicativa, falei de Gov 2.0. O assunto merece mais atenção do que aquele parágrafo introdutório. Tudo bem, o Segundo Caderno não é lugar para falar de política sem ligação clara com o mundo da cultura. Porém, não tenho nem dúvida: por trás do Gov 2.0 está acontecendo uma das transformações culturais mais interessantes deste novo século, que redefine o lugar da política em nossas vidas. O fato de ter o onipresente 2.0 na sigla é apenas mais uma evidência de suas conexões para além do Estado, para além da política convencional.

Hoje tudo é 2.0. Há medicina 2.0, educação 2.0, marketing 2.0 etc. Isso tem a ver com a utilização da internet em todos esses ambientes, mas não é só a tecnologia que importa, ou o que mais importa. A mudança principal acontece no relacionamento entre as pessoas, sendo praticamente irrelevante se estão em contato para fazer publicidade, política ou tratamento médico. Cada uma dessas áreas, mesmo com a resistência de antigos detentores do poder, tem agora que se abrir para a colaboração de todos. Não são mais caminhos de mão única, do centro para a periferia dos vários saberes e práticas. São redes, de muitos para muitos, sem distinção precisa entre quem fala e quem escuta, quem produz o “conteúdo” e quem o consome, quem manda e quem obedece.

2.0, em muitos contextos, é quase sinônimo de aberto, seguindo o modelo informático do “código aberto” (ou “open source”, em inglês, que por sua vez é quase sinônimo de “free software“, mas não há espaço aqui para abordar as sutis – e não tão sutis assim – diferenças políticas nas quais essas denominações se fundamentam). Gov 2.0 pode ser traduzido por governo aberto, ou “open government”. Tem gente que diz que hoje a abertura da internet está ameaçada (ou “a web está morta“) por causa de fatores tão díspares quanto o modelo de negócios do iPad, as “apps” de celulares, a reação anti-ou-pró-wikileaks, ou o cada vez mais poderoso combate reacionário contra a “neutralidade da rede“. Talvez tenham razão, se olharmos só para a rede. Mas se considerarmos a maneira como os princípios “libertários” da abertura da rede se “infiltraram” no mundo “off-line” (será que ainda dá para separar on-line de off-line?), o panorama é mais favorável a ambições democráticas. Um dos elementos dessa “expansão” aberta é bem visível: os pensamentos de muitos governos estão cada vez mais parecidos com os dos hackers.

As experiências do governo brasileiro felizmente não são únicas. Há países em que a “abertura” do modo de se governar acontece de forma mais planejada e consistente. A Casa Branca, por exemplo, criou a Open Government Initiative, que tem como lema “transparência, participação, colaboração”. São palavras do presidente Obama: “A abertura vai fortalecer nossa democracia e promover eficiência e eficácia no governo.” Já os australianos criaram um termo mais viril: não fizeram uma iniciativa e sim uma Government 2.0 Taskforce, que busca “promover transparência, inovação e agregar valor à informação governamental.”

Acompanho com mais atenção as experiência do governo do Reino Unido, até porque muitas delas são lideradas por Tim Berners-Lee, o inventor da web 1.0, que já promete a 3.0 (ou web semântica, em que os dados poderão “conversar” entre si, produzindo novos usos para as informações, sem interferência humana). Na “Spending challenge“, a Secretaria do Tesouro de Sua Majestade organizou uma elaborada consulta para que todos os cidadãos pudessem sugerir cortes de orçamento. Em “YouFreedom“, os súditos da Rainha podiam dizer que leis queriam ver abolidas.

Na semana passada, o site O’Reilly Radar (capitaneado por Tim O’Reilly, o inventor do termo “web 2.0” e o organizador do Gov 2.0 Summit que aconteceu em Washington em 2011) publicou uma lista de organizações de “inovação cívica” cujos trabalhos devem ser acompanhados de perto em 2011. Só ideias extremamente bacanas. Como a da organização “Code for America“, que tem como objetivo criar aplicações que ajudarão o governo a oferecer melhores serviços para os cidadãos. Ou a “Civic Commons“, que inventa sistemas para que prefeituras possam compartilhar softwares, não precisando pagar para criar programas que já foram desenvolvidos em outras cidades, ou mesmo em outras secretarias da mesma cidade.

Claro que nada disso significa a conquista da utopia. O motor da democracia é a crise, e maiores liberdades são conquistadas em meio a crises constantes. Como diz o historiador Pierre Rosanvallon, do Collège de France, em debate recente promovido pela revista “Le nouvel observateur“: o ideal democrático se sustenta sobre eternas contradições: entre a representação e o “movimento direto”; entre votar em quem pensa como pensamos e votar nos governantes mais eficientes; entre o “povo” e o “indivíduo”; entre a eleição como momento do “yes we can” e a pós-eleição como império das dificuldades para se fazer o que podemos…

Rosavallon alerta: “formas de progresso democrático podem também mascarar tentações de regressão.” É preciso que todas essas ferramentas de governo colaborativo não se aliem a populismos que querem promover a descrença total em processos eleitorais.  O Gov 2.0 vai precisar sempre de um bom Gov 1.0.


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