texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 01/11/2013
Terminei a coluna passada com a campanha “um hackerspace em cada praça”. Não expliquei o que é hackerspace para atiçar a curiosidade alheia. Quem correu atrás deve ter percebido: hackerspace não é lan-house turbinada com impressoras 3D. É muito mais. Melhor pensá-lo como laboratório público, aberto para os mais diversos tipos de experiências. Assim como há uma década o assunto do momento era “jornalismo cidadão”, agora o debate se ampliou: chegou a vez dos coletivos de “cientistas cidadãos”.
Cito alguns exemplos: o Biocurious, da California, ou o Genspace, de Nova York. A missão do primeiro: “Nós acreditamos que inovações em biologia devem ser acessíveis, baratas e abertas para todo mundo. Nós estamos criando um laboratório comunitário de biologia para amadores, inventores, empreendedores e qualquer pessoa que queira fazer experiências com amigos.” Entre os equipamentos disponíveis estão freezer de -20 graus e sistema de purificação de proteína. Não por acaso a biologia está na vanguarda dessa mutação na produção de conhecimento. Deixamos a era em que só era possível programar código de computador; agora há cada vez mais gente tentando programar código genético.
A cena dos biohackers acaba de ganhar seu primeiro órgão de imprensa. Há três semanas, as empresas de Tim O’Reilly lançaram a newsletter BioCoder. É preciso prestar atenção em tudo que a O’Reilly Media se mete. Seu dono, já acusado de ser “gigolô de mimes”, sempre fareja o que vem com tudo por aí. Foi ele que popularizou expressões como Web 2.0, “open government”, “open source”, e também acelerou a articulação do movimento “Maker”. Mesmo esperando sempre boas surpresas de sua parte, devo confessar que a BioCoder me deixou em estado de choque. Nunca li nada tão radical.
Manifesto Black Bloc parece brincadeira de criança do século XIX se comparado com o seguinte trecho de post de divulgação da newsletter: “agora temos as ferramentas para escrever DNA, inserir esse código em uma célula, dar um “reboot” na célula e fazer essas células produzirem proteínas e substâncias personalizadas.” É ciência de rua, parecida com aquela do filme Blade Runner, em que barracas-laboratórios disputavam espaço nas feiras, ao lado do vendedor de ciberpeixe. O discurso é político: contra o monopólio da ciência nas mãos das grandes corporações, pesquisadores “impacientes com a estrutura de trabalho dos laboratórios tradicionais” querem “acelerar a marcha da inovação biotecnológica.” Até para produzir imortalidade o mais rápido possível.
Claro que tudo isso levanta questões éticas, legais, culturais e de segurança estonteantes. Um artigo da BioCoder mostra como os “cientistas cidadãos” se aproveitam de brechas em leis, muitas vezes no vácuo de laboratórios multibilionários multinacionais. Os advogados da Monsanto conseguiram contornar a legislação para produzir uma espécie de grama que não é considerada alimento para nenhum animal (portanto não é regulada pela Administração de Alimentos e Drogas do governo dos EUA). Os biólogos cidadãos passaram a usar a mesma técnica de “arma-genética” para produzir plantas ornamentais que brilham no escuro.
Se o objetivo fosse só a produção de beleza, não estaríamos em território tão perigoso. Em outro artigo da BioCoder descobrimos que o primeiro grande encontro dos biólogos “faça-você-mesmo” teve patrocínio do FBI (o “novo” FBI, que não quer ser novamente pego de surpresa por algo como a utilização terrorista de escola de pilotos de avião). Na estrutura do serviço de informações quem cuida da monitoração dos laboratórios comunitários é parte do departamento de “armamento de destruição de massa”.
Toda essa movimentação acontece em período de grandes descobertas na biologia mais oficial. Não falo apenas de Craig Venter e dos vários projetos envolvendo decifração de genomas. Penso mais no meu espanto ao me deparar, pendurada nas bancas, com uma capa da Scientific American de 2012 que perguntava: “No seu corpo, as bactérias são 10 vezes mais numerosas que suas próprias células – quem está no controle?” Estamos aprendendo que esses trilhões de bichinhos que vivem conosco podem ser até responsáveis pela nossa sensação momentânea de felicidade.
Mas só fiquei totalmente “caraca maluco” quando no início de outubro encontrei artigo de Michael White, biólogo de sistemas, revelando que nosso próprio DNA é um ecosistema, com até “pseudogenes zumbis” marcando presença. Indivíduos? Somos todos coletivos. E no futuro só laboratórios hackers vão produzir as biografias de todo o povo que vive dentro da gente.