Bach e cia.

O que varia nas Variações Goldberg? Há algum tempo, sem nenhuma razão precisa, essa pergunta ganhou lugar irritantemente cativo nas minhas redes neuronais. Como não tenho nenhuma noção de teoria musical, e meu ouvido é bem tosco (quase nunca sei identificar uma desafinação – talvez por culpa ter ter me apaixonado por música concreta desde a adolescência, presto mais atenção em outras coisas…), o trabalho para encontrar uma resposta é quase insano. Mas divertido: já vi aulas no YouTube, já escutei as duas versões para piano de Glenn Gould (e a entrevista com Tim Page, de quem eu só conhecia aquele guia início anos 1980 para a Nova York hip), a gravação de  Gustav Leonhardt no cravo e por aí fui até chegar numa transcrição para trio de cordas… Obviamente, cheguei também no verbete na Wikipedia, com a citação do trecho da biografia de Bach escrita por Forkel cerca de 60 anos depois da composição daquelas variações. A própria Wikipedia afirma que a veracidade do relato é questionável, mas ele reaparece resumido em outros livros sobre Bach sem provocar muito espanto. Mas tudo ali é espantoso: a obra teria sido encomendada por um conde Keyserlingk, que sofria de insônia. Para suportar noites em claro ele ouvia música tocada por um empregado chamado Goldberg, virtuose do cravo que teria apenas 14 anos. Pode ser sacrilégio relacionar algo tão sublime, certamente umas das mais complexas belezas produzidas pelo espírito humano, com observação tão cruel, mas pronto, vou falar: Goldberg fazia trabalho infantil “quase” escravo para o conde de gosto tão fino (que educou bem o filho Heinrich Christian, riquíssimo, com palácio frequentado por Kant e Herder). O garoto tinha que ficar disponível a qualquer hora da madrugada para distrair seu senhor. Agora, a cada vez que escuto as Variações que levam seu nome para o futuro, não posso deixar de pensar no pobre menino ali de prontidão.

Também quando escuto os Concertos de Brandenburgo sempre lembro do tal Christian Ludwig, para quem a coleção foi dedicada e que talvez nunca tenha escutado a maravilha de presente que ganhou. A vida de Bach foi uma tempestade de perrengues, quase sempre no limite da miséria, tendo que puxar o saco (estou pegando pesado demais? que outra expressão deveria usar?) de vários nobres, chefes de facção daquela época, para conseguir comprar comida para os filhos (e Anna Magdalena Bach, viúva, morreu dependente de caridade).

Projeto que nunca vou conseguir realizar: um livro sobre todos os nomes para quem foram dedicadas algumas das obras primas do repertório clássico. Seria um pequeno capítulo da cronologia da longa dependência dos artistas com relação a ricos e poderosos. Algumas biografias revelam acontecimentos pitorescos: como o caso do tio do Razumovsky do Beethoven com a imperatriz russa. Outras relatam batalhas sobre direitos e deveres: como as obras de Haydn que eram propriedade da família Esterházy, da aristocracia húngara. O projeto deveria enumerar a quantidade de música linda composta para batismos, casamentos etc. de famílias cujo poder/riqueza tinham origem (indireta ou direta) em servidão, pilhagem, desigualdade radical e, entre outros horrores mais, brutalidade na guerra de tronos e comandos feudal ou “absolutista”.

Outro livro curioso seria um com todas as biografias possíveis das pessoas que frequentavam as quatro igrejas de Leipzig que tinham o privilégio – sem saber que isso era um privilégio, muitas vezes reclamando do estilo muito exibido do organista – de ouvir a música que Bach compunha para as suas cerimônias religiosas. Quem foram, por exemplo, as pouquíssimas pessoas que ouviram as pouquíssimas performances da Paixão Segundo São Mateus até sua descoberta por Mendelssohn quase um século depois de sua composição? O que faziam quando não estavam na igreja? A música genial, de graça toda semana, melhorou suas vidas? E pensar que aquelas eram apenas umas igrejas de cidade do interior, como centenas de outras igrejas de outras cidades do interior que devem ter ouvido outros motetos sublimes que se perderam e nunca mais foram executados.

Muitas vezes presenciamos acontecimentos divinos e nem percebemos.

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