ainda pandemia

30/04/2023

Não, a pandemia não acabou. O Painel Nacional: Covid-19, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS), agora divulga “dados agregados por semana epidemiológica”. Então sei que o “novo coronavírus” matou 404 pessoas no Brasil, entre os dias 9 e 15 de abril. Foram – para usar lugar comum pandêmico – como dois 737-800 lotados caindo naquela semana, sem ninguém escapar com vida. Há informações vagas e confusas sobre quem morre: difícil, para quem não trabalha na área de saúde pública, conhecer direito suas idades, classes sociais, locais dos óbitos etc. Já li notícias afirmando que a maioria é sem vacina.

Gostaria de ter acesso a mais detalhes. Uma curiosidade nada mórbida e bem básica: quantas dessas vítimas tiveram acesso ao Paxlovid, que já está disponível no SUS? Estudos recentes nos ensinam que esse remédio antiviral tem alta eficácia na redução do risco de hospitalizações e óbitos. Por baixo: 44% (para pessoas não vacinadas: 88%). Fazendo as contas: 44% de 404 seriam 177 pessoas salvas. Não poucas pessoas. Tiveram essa chance de salvação?

Procuro: não encontro – ou chego a um amontoado de números e gráficos impenetráveis para público leigo. É uma tendência mundial (com honrosas exceções como o Painel COVID da Prefeitura do Rio de Janeiro, ou o incansável ourworldindata, ou a valente OMS – que também se recusa a deixar de classificar a COVID-19 como emergência de saúde internacional). Vários sites que monitoravam a gravidade da situação ao redor do planeta interromperam suas atividades, ou pelo menos as atividades diárias.

Um outro caminho poderia ter sido tomado por todas essas iniciativas: no lugar de reduzir a divulgação, por que não ampliá-la, para a população ter cada vez mais acesso, em tempo real, aos dados da “viralização” dessa e de outras (até serem todas) doenças infecciosas? A missão seria: radicalizar o aumento de transparência estatística testado na pandemia.

Meu maior choque foi quando, no dia 10 de março, entrei no site do mapa COVID da universidade John Hopkins e li o comunicado da sua “descontinuação” (como detesto a popularidade dessa expressão, tanto quanto detesto ouvir falar que uma coisa é “robusta”…) Era minha principal fonte de informação sobre a evolução da pandemia nos vários países do mundo, por ter ficado acostumado com seu design e navegação pelos seus vários gráficos (eu consultava também, quase que diariamente, o MonitoraCovid-19, da Fiocruz e do ICICT, mas esse interrompeu as atualizações no dia 26 de janeiro). Bobagem minha: achava que aquilo ali era eterno.

Eterno enquanto dura. E parece que os dados coletados pela John Hopkins – desde o início da pandemia até aquele 10 de março – vão ficar eternamente no ar. Então ainda podemos comprovar que a semana que terminou no dia 15 de janeiro deste ano foi a mais devastadora, desde 2020, em número de mortes por Covid no Japão. Repito: 15 de janeiro de 2023, cerca de 3 meses atrás. Pico da pandemia japonesa. Quando “todo mundo” já repetia que o vírus estava mais “fraquinho” etc. Ninguém sabe explicar como as coisas saíram do controle nesse nível. Aqui a tentativa do Japan Times; aqui a da BBC. Não fico exatamente convencido por nenhuma dessas interpretações. Hipóteses apenas, que precisam de estudos bem complexos para serem confirmadas.

Um consenso em todas as matérias: as pessoas de mais idade foram a maioria das vítimas. Apesar da aparência homogênea (quando vista do exterior), a cultura japonesa é muito diversificada, cada pequena área rural com seus costumes próprios, diferentes da vizinhança, com cada vez mais dificuldade de transmissão para novas gerações. Levando isso em consideração, tenho certeza que morreram sábias e sábios com conhecimentos que ninguém mais detém. Meu luto se aprofunda, assim como aconteceu quando encontrei o Memorial Vagalume e me dei conta dos saberes perdidos com as mortes por COVID entre povos indígenas que habitam o território brasileiro (luto que resultou em homenagem durante a Flip 2021, edição que contou com minha participação em seu coletivo curatorial).

Não acabou. Agora mesmo há rumores de uma nona onda, mais cruel ainda, no Japão. E outra na Índia. Difícil saber quando esses aumentos, e as mortes deles decorrentes, se tornarão “significativos” – ou preocupantes – para a maioria das pessoas ou para instituições que podem cuidar de sua divulgação.

Escrevo tudo isso com enorme cuidado para não parecer que insinuo que há uma conspiração para esconder fatos. Os motivos para a “descontinuidade” dos serviços de monitoramento certamente podem ser mais prosaicos. Monitorar bem custa caro, exige a contratação de pessoas que hoje devem ter coisas mais “significativas” (e não estou sendo irônico) para fazer. E, além disso, quem suporta tantos anos de números diários de desgraça? O mundo quer “virar a página”.

No início da pandemia, minha sensação era de estar vivendo uma crise de proporções bíblicas. Algo assim como uma praga do Egito, que marcaria a História da Humanidade e seria lembrada por vários séculos no futuro, se houvesse futuro. Ou mais: pensei que, se aquilo não fosse o Fim do Mundo, o mundo nunca mais seria o mesmo, nada seria como antes. E ingenuamente cheguei a acreditar que o mundo pós-vacina estaria condenado a ser um lugar melhorado à força pelo trauma. Era sinal, alerta vermelho, de que não poderíamos continuar a viver do mesmo modo.

Hoje percebo que a maioria estava satisfeita com o mundo de antes da pandemia. Não queria realmente mudar nada. Tanto que correu – de forma bem atabalhoada – para voltar ao “normal”. Multidões que, nessa corrida, provam que adoram aeroportos lotados. Ou blocos de carnaval ostensivamente patrocinados.

Quem sou eu para contrariar a voracidade de normalidade (esse tipo de normalidade) do mundo? Considero apenas que as coisas poderiam ter melhorado um pouquinho.

A pandemia tem sido um curso intensivo de virologia. Algumas lições sobre fatores favoráveis para a propagação de doenças infecciosas são agora bem conhecidas por muito mais gente.

Poderíamos, por exemplo, tentar melhorar a tecnologia de ventilação dos ambientes frequentados por muita gente. Mas preferimos gastar dinheiro com sistemas de ar-condicionado, quase sempre de difícil limpeza, com janelas trancadas, mesmo em instalações médicas. É sinal de “modernidade”, ou de “riqueza”. Talvez os únicos hospitais que não seguem essa tendência energeticamente insustentável sejam os da Rede Sarah (viva o arquiteto Lelé). Esse é certamente um dos fatores para que tenham um dos índices de infecção hospitalar mais baixos do mundo.

(Sou suspeito: detesto ar-condicionado. No meu tempo de adolescente eram raros os automóveis com refrigeração interna e ninguém morria de calor. Agora tenho conflitos ao entrar em táxi ou carro de aplicativos e pedir para abrir as janelas [muitos ônibus não têm mais essa opção]. Motoristas passam a viagem de cara feia, não importa a estação do ano. Não gosto de impor nada a ninguém; então geralmente enfrento o trajeto com frio de lascar, imerso no cheiro desses produtos que escondem o mofo. Gosto de vento. Parece que quase ninguém gosta.)

Também seria uma gentileza com pessoas mais vulneráveis (de mais idade ou com problemas de imunidade) usar máscaras quando estamos com sinais de gripe etc. Devo ser pessoa bem rara: máscaras não me incomodam. Continuo usando em várias ocasiões. Também como sinal de luto, ou para não esquecer o que passamos. Outro dia, andando mascarado na rua, quase fui agredido. O cara gritava comigo: “É mentira! Tudo mentira! Até quando?!!!” Estava possesso. Nem olhei para ele, não respondi nada e me afastei o mais rápido possível. Tanto ódio por uma máscara…

Se essas pequenas mudanças (ventilação, máscaras de vez em quando…) parecem impossíveis, o que dizer então de criar regulamentações para evitar a invasão humana, ou de rebanhos de gado, em áreas onde há risco óbvio de zoonoses (doenças infecciosas transmitidas entre animais e pessoas)? Sabemos que o Brasil é paraíso para pulos carnavalescos de vírus e outros patógenos desconhecidos de animais para seres humanos, criando muitas possibilidades de novas pandemias.

Não acabou. E não sou eu sozinho agora que vou mudar o mundo, já que o mundo decidiu agir como se tivesse acabado. Não quero estragar a normalidade alheia. Fico quietinho no meu canto, como canta o Wado naquela música que já citei em outro texto. E mantenho, discretamente, outros costumes que adquiri na pandemia.

Continuo ouvindo, toda semana, o podcast This Week in Virology (TWiV), que descobri no meio de 2020 e que há poucas semanas publicou seu milésimo episódio. Durante um bom tempo aquele time de virologistas reunia algumas das pessoas com quem eu mais “convivia”: era reconfortante ouvir suas vozes anunciando as condições meteorológicas em suas cidades, como sempre fazem no início de cada conversa. Mas tenho carinho especial pelos “clinical updates” (aqui o mais recente) apresentados pelo doutor Daniel Griffin. Quase impossível existir alguém mais gente boa no mundo (ainda mais com coleção de gravatas-borboleta). Ou pessoa que trabalhe tanto, com enorme gosto pelo seu trabalho. Quando entro no desespero sem dar conta de tudo que tenho para fazer, penso nele. Como inventa tempo, entre uma UTI em Nova York e trabalho voluntário em Uganda, para ler essa quantidade estonteante de artigos científicos e resumir tudo de forma tão didática para o público do TWiV? E ainda consegue ficar em dia com as novidades da ficção científica.

Outro costume ou tratamento pandêmico: ouvir o programa Night Tracks, da Radio 3 da BBC, como ansiolítico. O problema é que é um excitante também. Muitas vezes lá estava eu relaxadão com a seleção musical e tinha que acender as luzes para anotar o nome de quem estava tocando, e isso detonava busca ansiosa por outros de seus trabalhos. Foi assim no episódio mais recente, lançado dia 19 de abril, com a eletrônica de Beqa Ungiadze, da Geórgia (pouca informação sobre ele na internet). As apresentadoras Sara Mohr-Pietsch e Hannah Peel, com suas vozes calmantes, têm bom gosto inigualável e sabem misturar bem todos gêneros musicais, de todas as épocas históricas: clássico (incluindo o “contemporâneo”), jazz, rock, estilos de todo o planeta etc. No episódio citado, temos de Seckou Keita a Einojuhani Rautavaara, passando por Olivia Channey cantando Violeta Parra.

O denominador comum de Night Tracks: mais que tranquilidade: beleza. Outra lição da pandemia que não acabou: incrível (no sentido de não acreditar mesmo) a quantidade de beleza que o espírito humano já produziu. Apesar de tudo, para além de tudo, de todo apego à “normalidade”. E continuando a lição, incorporando as outras lições-decepções enumeradas neste texto: tanta beleza não melhora o mundo. Não precisa melhorar nada. Basta existir. Bela de doer ou de chorar. Ou bela de provocar alegria aqui e agora.

PS: Por favor: que ninguém interprete este texto como uma lição de moral. Como escrevi acima: “não gosto de impor nada a ninguém.” Não sou dono da verdade ou da pós-verdade – só tenho dúvidas. Não confundir também com opinião indignada. Já concordei com Contardo Calligaris: “a indignação é a forma mais barata de inteligência”. Mas quando clico no link com a fonte da citação recebo como resposta: “A página que você está procurando neste blog não existe.” Desconfio que pode ter sido alucinação bizarra da minha ChatGPT particular… Boa alucinação. Não saberia dizer melhor… E repito: o objetivo principal deste meu blog é ser território informativo, não opinativo. Mais importante que minhas palavras são os links para as palavras, bem mais sensatas e/ou interessantes, de outras pessoas.

A viagem de Ulisses pelo rio Amazonas

19/03/2023

Maxivelhaco. Multiastuto. Multiversátil. Multissinuoso. Arquimanhoso. Pluriardiloso. Ultraladino. Superperpicaz. Multiengenhoso. Pluriastuto. Multissagaz. Pluriarguto. Multissofrido. Plurimaquinoso. Multiardiloso. Multiperpicaz. Arquiladino. Poliastuto. Plurissolerte. Arquivelhaco. Multivaidoso. Maximatreiro. Arquifalaz. Hipersorrateiro. Arquitrapaceiro. Pluriengenhoso. Multiarguto. Arquiestratégico. Poli-habilidoso. Plurissagaz. Arquitravesso. Multifalaz. Ultramatreiro. Multimanhoso. Multiartificioso. Poliarguto. Arquimaquiavélico. Multímodo. Poliardiloso. Ultramanhoso. Arquimatreiro. Maxiladino.

Essas qualidades de Ulisses, que aparecem no livro como uma pororoca de epítetos, podem também ser usadas para qualificar o estilo literário de A viagem de Ulisses pelo rio Amazonas (no resto deste texto: AVDUPRA). Na verdade: estilos literários que travam combates e tramam alianças a cada página, com diferentes propósitos narrativos. Como hidrovias caudalosas, os fluxos de palavras (sempre “escorregadias”) nos sacodem entre entre mitologia e geografia (incluindo aquela dos rios voadores), crítica e política, História e estórias. É impressionante a sagacidade de André Gardel no manejo de tantos recursos e conhecimentos maxi-multi-pluri-ultra-super-poli-hiper-multímodos, de tantas procedências engenhosas e contrastantes, pulando de “brincadeiras” da cultura popular para a erudição de novas teorias antropológicas ou arqueológicas no piscar de olhos perspectivistas. O resultado é certamente uma proeza astuta como poucas, cheia de truques, um acontecimento artístico extremamente original e travesso, aqui e alhures.

Fui conferir as qualidades de Ulisses na recente e excelente tradução brasileira da Odisseia por Christian Werner. Para ser novamente exaustivo: excelso, atilado, divino, muito-juízo, juízo-paciente, distinto, muita-astúcia, impecável, nobre, senhor, varão, enérgico, perseverante, muito-truque, linhagem-divina, infeliz, arrasa-urbe, bem famoso, muitas-vias, ousado, ilustre, muita-astúcia, animoso, muita-tenência, glorioso, majestoso, “o atilado variegada-astúcia”. Minha impressão é que a qualidade mais repetida é “divino” (mesmo que Palas Atenas, em sua fala final, se dirija a seu protegido como “muito-truque”, como exaltação). Em sua “tradução-exu” muito esperta e cheia de segundas intenções, o Ulisses amazônico de André Gardel rejeita os elogios mais óbvios e fica só com aquilo que derrama ambiguidade para todos os lados.

Ao penetrar na selva tropical, Ulisses precisa mesmo de ardis poderosos (“um leque de ardis”) para atravessar os inúmeros “portais de interconexões intermundos” ou para transitar “pelas espirais que fazem o visível e o invisível deslizarem entre si” – ou, como sintetiza Tirésias (“peixe-prata com sete asas de espuma, metade-fêmea, metade-macho” surgindo em AVDUPRA na ilha onde Macunaíma escondeu sua consciência): “vários planos de experiência se intercomunicando, interagindo, se invadindo, se alargando”. Tarefa ou laboratório também para a narração multifocal do romance, que cria portais entre façanhas acontecidas em épocas muito distintas, camadas de redes sociais de personagens que também deslizam entre mundos literários que pareciam destinados a viver separados. Antes de Ulisses, o Hércules ctônico já tinha viajado pela Amazônia. Entre Hércules e Ulisses, temos toda a saga de Sumé e Maíra, no meio de toda a diversidade étnica do povoamento/plantação secular da floresta, passando pelo encontro de técnicas do êxtase indígenas e africanas, até chegar aos tempos de Covid e extrema-direita no poder nacional. Sim, AVDUPRA é a encruzilhada em trânsito, sempre deslizante, de todos esses enredos. 3.200 anos atrás (Guerra de Troia…), e antes, e hoje: uma mesma época psiconauta. Afinal, o mundo grego também era poeticamente xamânico.

Tudo começa, como deve ser, no inferno de Dante. Mais precisamente na oitava vala de seu oitavo círculo, onde a chama de Ulisses conta para Virgílio “os percalços de sua última peripécia”, depois de cruzar Gibraltar e navegar por cinco meses “em direção ao Sul”. Um portal adiante e estamos no réveillon de Copacabana onde os fogos detonam nos neurônios de um candidato a escritor carioca (chamado Demódoco Fêmio, duplamente rapsodo, em romance onde quem é duplo, ou mais, impera) o “insight” que o maxivelhaco herói grego morreu no Brasil e que precisaria encontrar seus rastros na Amazônia de hoje, entre tiros da milícia garimpeira e batidas do marabaixo, entre a pororoca e a nascente nos Andes (onde o Caos pode estar aprisionado). Tudo sob a proteção, mais decisiva do que a de Palas Atenas, de um Hermes-Exu (ao mesmo tempo Sumé e Maíra), senhor de passagens e metamorfoses (todo o poder para as ariranhas, as onças do mundo líquido), abrindo caminhos com muito tabaco e paricá.

Assim, a viagem de Demódoco Fêmio para escrever um livro, de Macapá para dentro/fora, só poderia ser também uma peripécia de questionamento do valor da escrita, dos limites da escrita, essa “camada distinta de vida e realidade”. Ulisses-ariranha aprende a lição dos Tupinambás: contra a eternidade, vivem “a transitoriedade da vida”, a “misteriosa pulsação do presente”, aquilo que nunca pode ser fixado em livro. Paradoxo bom então: esta é uma ficção multifalaz mordendo seu próprio rabo multissinuoso. Sua artimanha maior é o projeto de libertar Ulisses: voltar a ser “o que era antes de Homero”: “mudança constante”, com maxi-multi-pluri-ultra-super-poli-hiper-ampliação da possibilidade de inventar novas aventuras, para passar adiante, contar mais muitos contos (aumentando muitos pontos), sem volta para o clássico-cânone-fixo, em fuga sempre para frente.

outras tempestades

28/02/2023

Shakespeare é o que a(o) ChatGPT quer ser quando crescer, caso evolua de seu estágio atual de “papagaio(a) estocástico(a)” e ganhe imaginação. Não precisamos entrar no debate que tenta provar a identidade “real” do bardo inglês (nada a ver com Bard, a(o) bot falante do Google) para ter certeza que o algoritmo (ou floresta de algoritmos) que embalava a atividade neuronal poética de quem escreveu “ser ou não ser” consumia mais energia que os parques de computadores da Amazon. Tudo respeitando limitações históricas e geográficas, mas trabalhando nos limites do que era possível conhecer/ler/encenar/compartilhar nos reinos de Elizabeth I e Jaime I. Suas obras reprocessavam muitos textos de muitas outras autorias, misturando modos de falar ou viralizando o uso de vocábulos, às vezes com efeito retardatário como aconteceu com “swagger“, que recentemente ganhou as “ruas” via hip hop. Porém, é óbvio: com brilhantes surpresas criativas, quase a cada verso, que ainda espero ver a inteligência artificial produzir (pois sou da tribo do Kraftwerk, gente amiga de robôs).

Bom de pensar: Shakespeare como software replicante, totalmente amigável para novos usos, impulsionador de outras criatividades, quanto mais alienígenas melhor. E nada pode ser mais maravilhosamente alienígena, e ao mesmo tempo de uma familiaridade desconcertante (pelo menos para gente brasileira amiga de centenárias modernidades antropofágicas), do que Uma A Outra Tempestade, a “tradução-exu” que André Capilé e Guilherme Gontijo Flores fizeram de Une Tempête, por sua vez a “adaptação para um teatro negro” que Aimé Césaire inventou “a partir” de The Tempest de Shakespeare.

Tempest. Tem peste. Tempête. Tempestade. Tempestades. Outras. Muitas. Em tempos de catástrofes climáticas, pandemia (que não acabou), crimes ambientais em série, casas e pessoas soterradas o tempo todo no Brasil, é preciso atenção desesperada para encontrar, no meio de tanta destruição, nos escombros por todos os lados, sementes de resistência/rebelião/renascimento. Seguindo a lição de Muniz Sodré, nesta conversa com Ailton Krenak na Flip 2021, a “Flip das plantas”. Seguindo igualmente, a lição do Caribe de Suzanne Césaire, parceira de obra e vida de Aimé, com seus ciclones, vulcões, maremotos, onde “tudo se racha, tudo desaba no barulho do rasgamento das grandes manifestações”, até que que surge o sol e o canto que mata as cigarras haitianas. Como escreve Helena Martins no Posfácio de Uma A Outra Tempestade: “A tempestade perturba contornos, desarranja linhas de divisão […] Ao amolecer o chão, também desenterra coisas que estiveram ali e nem sabíamos. E pode regenerar a terra que destrói.”

Aqui é uma tempestade na língua, um arrasa-quarteirão na torre de marfim onde foi colocado o inglês de Shakespeare, retomando as perturbações que divertiam seu público original, popular ou cortesão – ou no francês ainda predominantemente parisiense de Une Tempête. Segundo o prefácio de Paulo Henriques Britto (Uma A Outra Tempestade tem a sorte de ter posfácio, prefácio e orelha – de Nina Rizzi – que ao meu ver se tornaram acompanhamentos fundamentais para o núcleo da obra, o coração do ciclone…): “um diálogo com dois autores canônicos que mobiliza uma extraordinária gama de recursos poéticos do nosso idioma”.

Extraordinária mesmo! O idioma atravessado por muitos outros idiomas. O idioma enxurrada, desmilinguindo o cânone, encontrando outros cânones entre o que vaza o tempo todo (e como tudo e todo mundo vaza nessa tempestade de Capilé e Flores!). Idioma água, com suas mecânicas de fluídos. Ainda Suzanne Césaire: “a água distende seus membros para uma consciência mais ampla de seu poder de água”. Ainda Helena Martins: a tempestade “esculpe formas na água”. O que pode e o que quer uma língua líquida, uma língua furacão? O que leva ribanceira abaixo ou pelos ares? O que fica? O que aparece?

Esculturas líquidas, ou de lama (Salubá!), sempre precárias, precarizadas ao extremo. Aprendemos com Deleuze e Guattari logo no início de Mille Plateaux: “não há língua em si, nem universalidade da linguagem, mas um encontro de dialetos, patoás, de gírias, de línguas especiais. Não há ‘pessoa falante-fiscal’ [minha tradução-exu…] ideal, nem comunidade linguística homogênea. […] Não há língua-mãe, mas a tomada de poder por uma língua dominante numa multiplicidade política.” Essa uma-a-outra-tempestade bagunça o coreto da dominação, se é que sobrou algum coreto em alguma praça palaciana.

Aimé Césaire convida Exu para a ilha tempestuosa de Shakespeare. Capilé e Flores convidam Nhanderu, deus guarani, e iniciam os trabalhos com a voz de Sycorax, a bruxa mãe de Caliban (ou melhor, X, como ele exige ser chamado), que permaneceu muda em tempestades anteriores. Ela profetiza: “Falo falaz língua de escravidão que vocês usarão.” Vocês: nós. O sopro de sua boca, e de todas as outras bocas que se desentendem naquela ilha de desterros, naufrágios e servidões, vira vendaval que paradoxalmente nos condena – para continuar me apropriando das palavras de Helena Martins – a um mundo onde “linguajares se misturam, sujam-se entre si, conspurcam-se: equivocam-se, liberam-se. Uma festa.”

Festa estranha com gente esquisita. Assustadora – mas várias vezes não contive a gargalhada. Como não se descontrolar quando X diz que tudo “tá tranquilo, tá favorável”, e assim o MC Bin Laden, antes do “feat.” no controle com o Gorillaz, escala o cânone shakespeariano? Bem que Sycorax avisou. E o resultado não é ousadia ou transgressão. É beleza pura.

Poderia terminar por aqui, no favorável. Para deixar que cada pessoa que enfrenta o texto tempestuoso escolha seus momentos preferidos de êxtase/pânico poético sem minha falaz influência e meus spoilers. Seria generoso de minha parte, mas como dar vazão a tudo que rabisquei em cada página durante minha leitura?

Primeiro tenho necessidade de tornar pública minha curiosidade bisbilhoteira: qual o método “língua quebra-pedra” (tanto bate até que fura…) de Capilé e Flores? Andam por aí com o microfoninho do whatsapp pressionado 24/7 registrando qualquer novidade verbal que cruze seus caminhos (por territórios tagarelas de geografias tortuosas que forçam vizinhanças entre CTGs de prendas minhas com barris dobradíssimos de plantations reconvexas) como se fossem Emílias em países de invencionices gramaticais probabilísticas? Onde tudo isso fica armazenado e como depois se mistura em redações finais cut-and-pasteadas? E qual o objetivo dessas desaventuras na ilha das maravilhas sinistras, calabouço das torturas da língua em erupção permanente?

Vou pirar, como brincadeira de ChatGPT com muitos bugs e que mesmo assim tenta fazer sua tradução-exu de palavras/ideias alheias. Pense num ringue tipo UFC. De um lado Próspero. No seu cinturão está escrito; “E eu sou o Poder.” Com a medida que seu dono determina como justa. O formato do ringue não é octogonal, nem imita os contornos da ilha: ele termina numa encruzilhada, ou – na língua de X – encruziada. A luta na real, para além de encantamentos e xingamentos, é sempre adiada. Nem ninguém consegue escapar, ninguém consegue voar com as asas da liberdade, mesmo quando X decreta que a encruziada “já tá aberta”, mesmo quando os navios estão prontos para zarpar com Próspero. Ou mesmo quando X revela que sabe que é tudo fake news, ilusionismo, caricatura criada por um “truqueiro de mentira”.

É o encontro da “antiNatureza” com Natureza cordial. Uma não pode viver sem a outra. Estado permanente de guerra. X diz: “não me interessa paz não”. Próspero traduz qualquer de suas frases assim: “porrada vai cantar, vai dar no pelourinho!” Até que um dia entra em parafuso: “o que é o poder se eu não posso domar minha preocupação?” E assim começa a virar onça, como personagem de Rosa…

X pode experimentar devir-jaguar também? Monstro pode? X para Próspero: “suncê me roubou tudo, até a identidade!” Ou:”mentiu tanto que me deu imagem falsa”: “um subcomum subdesenvolvido subcapaz”. O que bate com o diagnóstico de Suzanne Césaire para um problema caribenho: “o esforço de adaptação a um estilo estrangeiro exigido do martinicano criou um estado de pseudo-civilização que se pode qualificar de anormal, de monstruoso.”

Fico querendo ouvir a continuação da guerra, quando só restar X e Próspero-onça na ilha. Minha coisa preferida é hipermonstruosidade? Talvez não, espero alguma bonança, uma outra bonança radical. Talvez aquela indicada por Miranda, nas suas árias do futuro, nas suas visões de admiráveis mundos novos. Custo a acreditar que ela vai se casar mesmo com o mané Ferdinando quando o casal chegar na Zooropa, no “velho mundo mercado de pulga”. Seu encontro com Exu e Nhanderu foi fulminante, fatal até demais: Miranda tem chance de ser “a pomba-gira do absoluto”. Certamente isso é muito mais do que o Fim da História.

Pomba-gira do absoluto. Há entidade mais poderosa para abençoar o fogo com o qual a poesia brasileira contemporânea anda brincando? Sim, sou deslumbrado, gosto de deslumbramento, mesmo inventado (o nosso amor a gente inventa), conscientemente exagerado. Contudo, não devo ser a única pessoa a perceber que vivemos um momento privilegiado na criação poética nacional, do qual Uma A Outra Tempestade é marco glorioso (esse meu gosto por adjetivos pomposos…) Muitas vozes de diversidade impressionante. Muita conversa entre várias obras, muita invenção (trans)autoral. Muitas editoras valentes.

Exemplos? Para ficar só com metade da dupla que inventou Uma A Outra Tempestade, cujos livros estão espalhados ao redor da tela onde escrevo: impossível dar conta da diversidade/qualidade produzida aos borbotões (e com rigor “acadêmico” espantoso) por Guilherme Gontijo Flores (mestre também de colaborações com outras pessoas/artes).

A fórmula H2O que conecta as Odes Olímpicas de Píndaro de Tebas com cantos para mamãe Oxum, cercado por desenhos de François Andes, em Entre costas duplicadas desce um rio. O “crédito ou débito? quer sua via?” de História de Joia. O Arcano 13, renga (“escrita colaborativa de origem japonesa”) com Marcelo Ariel (na introdução “mestre Sampaio” canta: “o pior dos temporais aduba os jardins”… utopia desesperada…) Os tantos &s do final de carvão::capim. As traduções de Safo, Rabelais etc. (E um dia volto aqui para falar de Tradução-Exu, o ensaio, igualmente assinado pela dupla Flores & Capilé, que faz companhia amorosa para Uma A Outra Tempestade – companhia também em curso-vídeo que o algoritmo do YouTube encontra facilmente).

Isso só para citar lançamentos bem próximos destes nossos anos de Peste. Ou que atravessam estes nossos anos de Peste. Atravessam e furam. E friccionando antiNatureza e Natureza evocam proteções. Como uma vacina mRNA aplicada diretamente na(o) ChatGPT alucinada(o) pela imaginação de Shakespeare e da Pomba-Gira do Absoluto.

complementos Ilustríssima 19

20/02/2022

Links para acompanhar a leitura do texto de hoje:

Alberto Mussa

A Origem da Espécie

Alberto Mussa e Luiz Antonio Simas

The Dawn of Everything

Intergalactic Memorial Carnival para David Graeber

carnaval 2021

CarnavalDoInvisível

complementos Ilustríssima 18

22/01/2022

Links para acompanhar a leitura do texto de hoje:

nossa história experimental

O Abismo da Prata

Apolo Torres

meu texto 2013 sobre Gian Correa: ver parágrafo final

Dino 7 Cordas

Bide

Shai Maestro

Anat Cohen: gravadora

Esmeraldino Salles

São Paulo no Balanço do Choro

canal do Gian Correa