Archive for junho \29\-03:00 2013

ilimitado

29/06/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 28/06/2013

Sou muito antigo. Quando usei a internet pela primeira vez, Tim Berners-Lee ainda não havia inventado o WWW. Portanto, Mark Zuckerberg nem sonhava com o Facebook. Durante este tempo de vida online, mantive afiada a curiosidade com relação às novas ferramentas que continuam a mudar nossas formas de comunicação com o mundo. Posso declarar: crianças, eu acompanhei em tempo real – parecia final de Copa do Mundo – a campanha que fez o Brasil virar campeão de perfis no Orkut. Depois, fiquei alegre ao perceber cada vez mais gente de favelas na rede social do Google, algo que revelava uma “inclusão digital” conquistada na marra. Então, não gostei nada quando os ricos abandonaram o Orkut para se afastar dos pobres, tentando manter a qualquer custo, na realidade virtual, a desigualdade real/brutal da sociedade brasileira.

Continuo achando o Facebook um território antipático. Não apenas pela maneira preconceituosa com a qual foi adotado no Brasil. Mais importante é outro argumento político já repetido inúmeras vezes nesta coluna: o Facebook (recuso-me a chamá-lo de “face”, como se fosse amigo íntimo) é um condomínio fechado que funciona com princípios contrários àqueles que criaram a riqueza da vida pública da cidade chamada internet. Muita gente nem se aventura mais para a fora dos muros dessa rede social privada: pensa que aquilo ali é toda a grande Rede, esquecendo que vive em ambiente controlado por uma única empresa, trabalhando de graça para seu sucesso comercial. Por isso, fico assustado quando constato que as manifestações que tomaram conta das ruas brasileiras lutando por uma vida pública (tudo começou com a batalha pela melhoria do transporte público) mais democrática sejam “agendadas” dentro de condomínio controlado por uma das corporações de mídia mais poderosas do planeta (e que bloqueia nossos perfis se publicamos fotos de mulher com os peitos de fora).

As manifestações começavam em eventos do Facebook. Acesso às informações sobre esses eventos só com perfil no Facebook, aceitando os termos de uso da empresa dona da rede social. Alguém já leu com cuidado esses Termos de Uso? Alguém chama aquilo de legislação democrática? Novamente: sou antigo, de um tempo em que muita gente via na internet uma trincheira na luta pela liberdade e acreditava em algo que pessoas mais novas não devem ter ouvido falar: software livre, código aberto. Onde isso tudo foi parar? E por que a defesa do Marco Civil da Internet, escrito em processo aberto, não se tornou também uma grande bandeira nas nossas manifestações de rua?

Estranha coincidência: enquanto os protestos brasileiros aconteciam, o FBI acusou Edward Snowden de espionagem, por ter vazado dados que provam que as grandes corporações da internet colaboram com o governo americano abrindo seus bancos de nossos dados que imaginamos privados. Era sobre isso que eu estava escrevendo nesta coluna antes das manifestações. Não vou assustar ninguém com essa politicagem global. Bastam questões mais práticas. Por exemplo: este é o último fim de semana do Google Reader. Esse serviço vai terminar porque o Google assim decidiu, sem consulta aos usuários. É uma empresa, pode fazer o que quiser com seus produtos. Imaginem se o Facebook decidir que quer “descontinuar” sua rede social. Onde vai parar a memória deste momento central da história brasileira?

Mesmo que o Facebook não acabe nunca: daqui a uma década, tente encontrar um evento da semana passada. Estará perdido em alguma timeline talvez desativada. Como a rede social não tem uma boa ferramenta de busca e criação de links, como os robôs de buscas externas não podem ultrapassar os limites de seus muros, é quase impossível encontrar alguma coisa por ali a não ser o passado mais imediato. Mas como dizem muitos, somos país sem memória. Que falta isso fará? Seremos muito felizes desmemoriados ou talvez vamos precisar da ajuda do FBI, que deve manter todos nossos “eventos” arquivados em alguma pasta secreta, para lembrar dos nossos anos ciber-rebeldes.

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Miriam Leitão, no domingo passado, fez perguntas que devem estar tirando o sono de muitas outras pessoas: “E as pesquisas de opinião? O que é mesmo que perguntaram para captar tanta popularidade do governo? Como isso se encaixa com o que vimos agora?” Lendo as pesquisas publicadas pelo Ibope/Época esta semana (entre os 75% que apoiam os protestos 69% se dizem satisfeitos com suas vidas atuais) mais um mito caiu por terra: quem disse que para protestar precisamos estar insatisfeitos? Hoje todo mundo quer planos, inclusive políticos, cada vez mais ilimitados. Como sempre digo: abundância exige mais abundância.

cartografia

22/06/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/06/2013

Fábio Malini publicou o texto mais interessante que li a respeito dos protestos que tomaram conta das ruas brasileiras. O link completo: http://www.labic.net/cartografia-das-controversias/a-batalha-do-vinagre-por-que-o-protestosp-nao-teve-uma-mas-muitas-hashtags/. Escolhi não abreviar esse longo endereço no bitly.com porque todos seus elementos me ajudam a explicar do que se trata. “Labic” é o Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura, coordenado por Malini e Fábio Goveia, e localizado – no mundo real – na Universidade Federal do Espírito Santo. “Cartografia das controvérsias” é o nome de um dos projetos desse laboratório, em rede com outros pesquisadores e ativistas, que tem como objetivo “constituir novas abordagens teóricas e empíricas que se debrucem sobre as modalidades de poder e contrapoder que se apresentam na web 2.0”. Talvez o termo mais significativo seja “cartografia”:  nomeia novas e necessárias maneiras de mapear – e apresentar visualmente os resultados desse mapeamento – a comunicação online.

O título “A batalha do vinagre: por que o #protestoSP não teve uma, mas muitas hashtags” resume bem o conteúdo, mas não o método de investigação. O texto teve origem em conversa no Twitter. No dia 13, Marco Toledo Bastos – pesquisador da USP, da London School of Economics, e pioneiro nos estudos estatísticos de dados produzidos em redes sociais – lançou a pergunta: “quais hashtags ou keywords estão agregando as manifestações de protesto Brasil afora? Nenhuma?” Na busca por palavras-chave que pudessem ajudar a entender o que estava acontecendo, seus interlocutores – entre eles Malini e Raquel Recuero, pesquisadora da Universidade Católica de Pelotas (essa colaboração ágil entre gente de várias universidades, “centrais” e “periféricas”, também é produto do fenômeno estudado) – foram notando que não havia nada centralizador como #occupy ou #existeAmorEmSP.

A “ausência” virou “potência”. O texto de Malini demonstra a descentralização extrema da organização dos protestos, não na base do achismo, mas a partir de imagens gráficas que fazem a cartografia da enorme quantidade de mensagens que circularam em redes sociais enquanto os protestos aconteciam nas ruas. Fica claro que a conversa não tinha apenas um foco, nem circulava em torno de líderes. Também é fácil visualizar o efeito das primeiras notícias sobre violência policial gerando ainda mais descentralização no debate. Não tenho possibilidade de publicar imagens nesta coluna. Por isso recomendo a visita ao post no site do Labic. Há texto complementar da Raquel Recuero neste link. Além de tudo: os gráficos, gerados por programas como NodeXL, são bonitos a beça de se ver.

Citei tudo isso para chegar a uma anticonclusão: para analisar a novidade do que está acontecendo, precisamos de ferramentas e narrativas também novas. Textos lineares a procura de líder, causa, manifesto, ou grupo revolucionário timoneiro da História, não não explicam mais nada. Umberto Eco, em artigo pré-internet (de 1978 – publicado neste livro) injustamente pouco comentado ultimamente (e esgotado na editora brasileira), falava algo assim: não é mais possível “atingir o coração do Estado”. Talvez o poder estatal – que virou “sistema” sem coração ou cabeça, com “incrível capacidade de cicatrização” – tenha saído na frente porque tinha mais recursos para se descentralizar. Quando os computadores caíram nas mãos do povo, os movimentos populares também se pulverizaram nas redes e usam as mesmas teorias/práticas do caos antes apenas acessíveis para a vanguarda das corporações capitalistas globalizadas.

Na segunda-feira, Lula escreveu no Facebook que tudo deveria ser resolvido na “mesa de negociações”. Fiquei pensando: quem senta na mesa? Cabe “big data” na mesa? Quem representa politicamente a descentralização que vemos nos belos gráficos/modelagens (com todos aqueles “clusters”) do Labic? Quem quer representar? Outra recomendação: a leitura da série de artigos de Michael Greenberg, no New York Review of Books, sobre a saga do Occupy Wall Street, especialmente aquele que analisa a relação da polícia com os ocupantes. O pessoal lá era mais radical: recusava qualquer negociação. Exemplo de discurso comum em torno do Zuccotti Park: “Não falamos com gente com poder, porque fazendo isso reconhecemos a legitimidade de seu poder.” Aqui, onde não temos ainda nenhuma praça como A Praça, vi integrantes do Movimento Passe Livre conversando com autoridades de São Paulo. Mesmo que não tenham combinado o trajeto dos protestos (pois não estavam ali liderando nada), essa reunião já revelava alguma abertura para negociar. O que não torna as coisas mais ou menos fáceis. Sejamos bem-vindos ao mundo da total complexidade.

legal e ilegal

15/06/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 14/06/2013

Francesco “Phra” Barbaglia, mais conhecido como Crookers (se não me engano no início era uma dupla e depois virou nome artístico de um homem só), é um dos principais produtores/DJs de música animada para  as pistas de dança contemporâneas. Conheci seu trabalho em 2007 quando participou da série de discos “Funk Mundial”, arquitetada pelo teutolusotropicalista Daniel Haaksman. Sua “Soca Ali Baba” era a mistura perfeita do tamborzão com a house mais tribal, tudo embalado pela alta energia comercial da disco music italiana. De lá pra cá, sua fama só cresceu, tanto que é procurado por músicos iniciantes do mundo inteiro para dar opinião sobre seus trabalhos. Crookers resolveu criar a Ciao Records para lançar seleção do material que recebe por email.

Na entrevista para o site MTV Iggy que anunciava os primeiros lançamentos dessa gravadora, não consegui descobrir qual é seu modelo de negócios. Muitas respostas pareciam mesmo colocar em cheque a necessidade de uma indústria fonográfica: “os artistas na verdade ganham dinheiro com apresentações ao vivo. Essa é minha percepção, talvez eu esteja errado, mas você não ganha dinheiro com um disco – faz o disco para ir para a estrada e tocar seu disco.” Se é assim, talvez a Ciao Records funcione mais como agência para novos artistas, participando da receita dos shows. Não sei. Crookers pode também não saber: está fazendo uma experiência, como muitos outros de seus colegas.

Uma resposta parece ser a consequência lógica mais interessante desse ambiente experimental: “Quanto mais pessoas conhecem a música de um artista, melhor para ele. Se sua música atinge um grande público por causa do YouTube, é bom para você, porque agora pode sair com esse disco em excursão. A liberdade para publicar na rede tudo que quer é metade boa, metade ruim. Quando você ficou trabalhando por um ano, e tem uma estratégia de marketing para o lançamento, e então alguém vaza seu álbum, isso realmente lhe deixa furioso. Mas fora isso, sites como o YouTube são ótimos para descobrir música. Eu adoro. Como dono de gravadora, posso dizer honestamente que não ligo. Eu mesmo publico as músicas de meus contratados no YouTube. E você pode ganhar algum dinheiro com isso. Não é muito, mas ganha pois você tem os direitos.”

É curioso esse pensamento – combinando o tempo todo com uma prática com cara de voo cego – aparentemente contraditório (ou totalmente contraditório) que oscila entre as defesas da liberdade e da restrição com relação aos direitos. Segundo as legislações atuais de direito autoral e/ou copyright da maioria dos países do mundo, ninguém pode publicar qualquer obra de qualquer autor em qualquer lugar (não importa se é mídia “tradicional” ou não) sem a autorização, de preferência autenticada em contrato, desse autor e/ou do detentor dos direitos dessa obra (editora, herdeiros etc.). Para deixar claro: publicar uma música do Crookers no YouTube sem autorização do Crookers é ilegal. O que o Crookers disse na entrevista é que não liga para a ilegalidade. Mais: que esse tipo de ilegalidade pode ser benéfico para suas músicas e sua carreira. E ao mesmo tempo lembra: o artista pode ganhar até dinheiro com a publicação não-autorizada de suas obras.

Como eu disse na semana passada: a tecnologia está inventando – na marra – sua própria lei, que se torna prática generalizada, mesmo contra a lei oficial. Tentarei explicar como isso acontece, usando o exemplo de “Harlem shake”, que foi primeiro lugar na parada Hot 100 da Billboard na semana em que essa revista – que é a mais importante para a medição/publicidade do sucesso musical comercial oficial nos EUA – passou a contabilizar visualizações no YouTube para determinar a hierarquia dos hits. O número total de views de “Harlem shake” somava aqueles do vídeo oficial, publicado por seu autor e sua gravadora, com os milhares de outros de vídeos piratas, publicados – sem a autorização explícita do autor – por gente que se filmou fazendo a coreografia dessa música. Quando ouvimos falar que “Gangnam style” ganhou mais de 1 milhão de dólares do YouTube, temos que saber: muito desse dinheiro vem de anúncios veiculados em vídeos que para a lei oficial seriam considerados piratas.

Vivemos então uma situação ambígua, onde uma empresa determina a nova legalidade. É uma gambiarra tecnológica, feita às pressas. Que controle externo podemos ter sobre o número de visualizações? Temos que acreditar no YouTube? Eu que não tenho pressa nenhuma, voltarei novamente a este assunto semana que vem.

PS: Sobre privacidade na rede: assino (com gargalhada sombria) mais uma vez embaixo de tudo que Chris Matyszczyk escreve neste link. Outra leitura obrigatória.

novo partido

08/06/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 07/06/2013

Sempre dou gargalhadas ao ler cada edição de “Tecnicamente incorreto”, coluna de Chris Matyszczyk no site CNET. Isso não quer dizer que seu conteúdo seja apenas piada. O bom humor embala uma das mais sérias investigações sobre o girar do mundo em torno do Vale do Silício. Por exemplo: seu artigo recente intitulado “Google: o terceiro partido político da América” é leitura obrigatória para quem realmente se preocupa com o lugar da democracia em nossas sociedades tecnicamente encantadas. Todas as frases provocam sorrisos de reconhecimento que logo se transformam em arrepios de lúcido apavoramento.

Larry Page, fundador e CEO do Google, fez discurso na última edição da I/O, conferência “para desenvolvedores” que sua empresa realiza com fanfarra todos os anos. Os comentários de Matyszczyk se esbaldavam com a mais explícita ironia: “O congresso é um cachorro que não quer sair para passear. Você pode dar um puxão na sua coleira, mas ele fica sentado no meio da calçada, rosnando um desafiador ‘não’. […] Então aparece o político mais ambicioso da América. […] O homem que é o Google […] fez sua turma pensar que ele estava falando sobre tecnologia. Sua agenda verdadeira, no entanto, é política. Onde o governo não pode fazer nada, o Google pode fazer tudo.”

O discurso abordava assuntos tão diversos quanto saúde pública ou ecologia. Para qualquer problema, o Google tem uma solução revolucionária, como aquele carro elétrico sem motorista. A política tradicional – vilã de sempre – dificulta a realização dessas experiências. A invenção tecnológica é o reino da rapidez; a mudança das leis insiste na lentidão. Page reclama: “Há muitas, muitas coisas importantes e sensacionais que podemos fazer, mas não podemos porque são ilegais ou não são permitidas pelas regulamentações.”

Parece Roberto Carlos cantando “será que tudo que eu gosto é ilegal, imoral ou engorda”? (Com uma diferença californiana: ninguém no Google deve gostar de nada que engorde.) Ou lembra episódio do seriado “Viagem ao fundo do mar” que vi quando criança: o submarino precisava de autorização para lançar mísseis e acabar com algo que destruiria o planeta. O Congresso em Washington precisava seguir seu lento processo de tomada de decisão. Os militares se revoltaram e salvaram a humanidade. Nesses casos, a democracia e o estado de direito são vistos como estorvos. Alguma mente iluminada sabe o rumo que as coisas devem tomar para a felicidade geral.

Page revela seu sonho: “Como tecnólogos devemos ter lugares seguros onde podemos experimentar coisas novas e descobrir o efeito sobre a sociedade e as pessoas, sem a necessidade de implantar no mundo normal. Pessoas que gostam de esse tipo de coisa podem ir lá e experimentar.” (A tradução foi feita com velocidade espantosa pelo Google Translate, é claro.) Qualquer semelhança com o anarquismo pós-moderno das Zonas Autônomas Temporárias de Hakim Bey, ou com o Burning Man realizado “fora da lei comum” no deserto de Nevada (o primeiro “doodle” do Google foi desenhado para avisar que Page e Serge Brin tinham viajado para esse festival) não deve causar espanto.

O sonho acabou? Se o Google é mesmo um partido político, Page pode proferir os discursos para animar as massas, mas o programa ideológico mais careta acaba de ser publicado em “A nova idade digital”, livro de Eric Schmidt (atual “executive chairman” da empresa) e Jared Cohen (diretor do “Google Ideas”). Os elogios na contracapa são assinados por nomes que já demonstram que o público alvo é tradicional: Bill Clinton, Henry Kissinger, Madeleine Allbright, Tony Blair. O tom é certamente moderado: a introdução começa definindo a internet como “o maior experimento envolvendo anarquia na História”, mas termina clamando pelo estabelecimento de pontes sobre o “cânion” que divide as pessoas que entendem de tecnologia e aquelas encarregadas de cuidar das questões geopolíticas mais difíceis.

Discursos, programas… Na prática, a tecnologia tem inventado suas próprias leis, na marra. Por exemplo: se os governos demoram com as reformas do direito autoral, o YouTube (do Google) inventa maneiras de reconhecer músicas usadas em qualquer vídeo. Resultado: mesmo pirateadas as músicas podem gerar dinheiro para seus autores e entram na contabilidade da parada do sucesso oficial. Isso é o mais perigoso: a mistura de legalidade e ilegalidade que se torna prática cotidiana. A democracia, para ter futuro, precisa enfrentar com vigor o novo desafio imposto pela velocidade tecnológica. Entre a velocidade e a lentidão, precisamos inventar outro tempo para não deixar que duas ou três empresas passem a ter o controle do mundo. Volto a este assunto semana que vem.

o resto do mundo

01/06/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 31/05/2013

Em 2002, a editora da Universidade das Índias Ocidentais, que tem campi na Jamaica, em Barbados e em Granada, publicou a tradução para inglês de meu livro “O mistério do samba”. Fui para Kingston acompanhar o lançamento. Conheço outros brasileiros com vistos jamaicanos carimbados no passaporte. Suas viagens foram motivadas ou por amor pelo reggae ou por desejo de resort e água fresca. Eu conheci o estúdio (ainda pré-digital) de Sly Dunbar, dei entrevista de rádio intercalada por seleção musical (toquei o samba-reggae do Olodum), mas o lugar onde passei mais tempo foi em sala de aula. Conheci vários professores com trabalhos fascinantes – repensando o lugar do Caribe no mundo – e desconhecidos no Brasil. Isso me fez ter consciência do insólito da minha condição: a recíproca certamente não era verdadeira – qual jamaicano teve livro lançado por editora universitária brasileira? E por que a resposta mais provável (“nenhum”) não nos causa mais espanto?

Estamos acostumados a só prestar atenção em pensadores estrangeiros se eles nos são apresentados por prêmios como o Nobel ou por universidades americanas ou europeias. Mesmo com relação à cultura chamada de popular, os canais de comunicação diretos com países de mesmo IDH são raros. Tudo tem que passar antes pela aprovação das metrópoles: até o kuduro (nascido em Angola, terra com intercâmbio cultural secular com o Brasil) precisou tocar em Coachela para só depois chegar na Fosfobox. Quando o assunto é produção acadêmica, o ambiente fica tão rarefeito quanto o ar no topo do Aconcágua.

Empolgado, voltando da Jamaica tentei lançar por aqui livro da Carolyn Cooper sobre letras de dancehall ou feminismo caribenho. Lancei também a ideia de seminários anuais com o objetivo de construir pontes com a vanguarda do pensamento de um país diferente por edição. Nada foi muito adiante. Muitos textos que escrevi para esta coluna provam que não abandonei esse projeto, até porque a evolução recente do mundo aponta para uma realidade cada vez mais descentralizada, onde a inovação de mais futuro – vide o modelo de negócios do pop coreano – aparece fora dos tradicionais centros de poder cultural e econômico. O Brasil mesmo – vide, por exemplo, os últimos números de “melhores do ano” da revista Art Forum (para citar o poder ainda considerável de uma publicação do ex-Centro) – ganhou projeção inédita entre caçadores de tendências de todos os tipos, da aviação à literatura.

A fragmentação da produção do novo vai ficar mais radical. Não comecei falando de Jamaica à toa. Lembrei minha viagem “universitária” de 2002 quando outro dia recebi link para matéria (publicada em site do Primeiro Mundo) sobre o simpósio “Desenvolvendo o Caribe” que aconteceu no mês passado em Kingston. Foi ali que descobri o nome de Julian Jay Robinson, ministro de Ciência, Tecnologia, Energia e Mineração do governo jamaicano. As políticas que defendeu no simpósio parecem banais (para quem está acostumado com o mundo pós-TED): transformação da sua ilha em território acolhedor para start-ups tecnológicas, com banda larguíssima e estímulo para “open data” e “open government”.

Certamente: a receita é comum (o que inclui também diagnósticos semelhantes para problemas sociais e econômicos), mas o modo variado como ela está sendo aplicada pelo mundo afora merece nossa total atenção. Estamos acostumados a fazer comparações apenas com o “caso americano”, o “caso alemão”, quando muito com o “caso japonês” e talvez as respostas que procuramos tenham mais a ver com experiências que estão sendo feitas agora em realidades bem pouco óbvias. Nesse seminário sobre o desenvolvimento do Caribe, o mais interessante era ouvir relatos sobre lugares que antes nunca eram lembrados quando o debate tinha como foco políticas públicas ou empresariais de ponta.

É isso: para os países caribenhos a lição mais importante pode vir, quem diria, do Quênia. Uma das estrelas do simpósio foi Paul Kukubo, CEO do Conselho para Tecnologia da Informação e Comunicação baseado em Nairobi, que acompanhou de perto o desenvolvimento do sistema de transferência de dinheiro por celular (créditos de tempo de ligação convertidos em créditos monetários, usados principalmente para trabalhadores das periferias urbanas mandarem dinheiro para parentes que moram em aldeias rurais sem banco nenhum nas redondezas) ou do tablet popular construído para atender necessidades bem africanas.

Claro: muitas dessas tentativas vão fracassar. Mas diversidade é boa para isso: quanto mais gente diferente tentando coisas diferentes, mais chance de acerto. Por isso é cada vez mais importante ficar olhando para onde “ninguém” mais olha