texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29/03/2013
Guy Delisle ocupa há tempos o topo da lista de artistas sobre os quais preciso escrever nesta coluna. Estava esperando a tradução brasileira de “Crônicas de Jerusalém”. Depois de vários meses anunciada para breve pela Zarabatana Books, ela finalmente pode ser encontrada em nossas livrarias (boa leitura para a Semana Santa). O lançamento aconteceu quase que simultaneamente à viagem de Obama pelo Oriente Médio. Em seu discurso “para o povo de Israel”, em Jerusalém, o presidente dos EUA, referindo-se aos palestinos, falou como professor de antropologia: “Coloquem-se no lugar deles. Vejam o mundo com os olhos deles.” Eu amplio o conselho, não só para judeus e árabes: “Vejam o mundo também com os olhos de Guy Delisle.”
Os olhos de Delisle enxergam e nos mostram o mundo através de histórias em quadrinhos. Não querem nos revelar a Verdade sobre o mundo, mas tentam – através de descrições densas e muitas vezes poéticas – mapear o jogo de verdades entre diferentes experiências humanas. Mais importante: os olhos (o ponto de vista do autor, a maneira peculiar com a qual se insere no mundo retratado) estão visíveis, nunca se escondem por trás de narrativa “objetiva”. Delisle está sempre ali, nunca tentando se passar por nativo, ou por observador sem preconceitos. Tudo é narrado/desenhado em primeiríssima pessoa. Por isso, aprendemos tanto e podemos formar nosso próprio olhar para aquela realidade.
Não conhecemos apenas Jerusalém, mas igualmente Delisle em Jerusalém. É assim na melhor antropologia: Bronislaw Malinowski nas Ilhas Trobriand, Clifford Geertz na briga de galos em Bali. A objetividade científica – se pode existir, se é interessante que exista – é efeito dessa relação entre diferenças. Não dá para ser de outra maneira: então, o importante é apresentar todos os detalhes. Delisle viveu em Jerusalém, por um ano, acompanhando sua mulher que faz parte da organização “Médicos sem fronteiras”, e cuidando de seus dois filhos, crianças. “Crônicas de Jerusalém”, de certa forma, é também a etnografia dessa nova tribo planetária formada por cada vez mais gente que trabalha em ONGs internacionais e órgãos da ONU – pessoas de todas as nacionalidades, mas que estão criando rica cultura comum.
Muitos dos grandes momentos do livro se passam em festas e encontros desses expatriados, com trocas de dicas sobre as melhores maneiras para lidar com os problemas cotidianos de sua nova terra temporária. E que terra: um labirinto formado por muros e checkpoints, com muitos projetos políticos e religiões em conflitos armados (e onde ver gente armada na rua é mais comum do que em favela carioca pré-UPP).
Viajar com a família – tendo que lidar com creches, feriados escolares e babás locais – fez bem a Delisle. Suas primeiras histórias viajantes em quadrinhos, sobre Pyongyang, na Coréia do Norte, e Shenzhen, na China, foram resultados de experiências solitárias, quando era contratado por estúdios de animação para coordenar equipes de desenhistas locais. Seu olhar era mais impaciente, irritado. Delisle nasceu em Quebec, estudou perto de Toronto, mas começou a trabalhar em Montreal. Não sei direito se os canadenses de língua materna francesa bufam como os parisienses, mas nesses livros – mesmo com um evidente olhar carinhoso para detalhes que só observadores de muita boa vontade percebem, como a latinha de bala Ricola que o caixa do banco chinês usa para guardar os trocados (e foi isso que me transformou em leitor assíduo de sua obra) – há um mau-humor típico de quem não consegue viver muito tempo longe do rio Sena. O que gera observações engraçadas. Por exemplo, no hotel: “Pela manhã, quando a funcionária do andar me vê saindo do quarto, ela corre para chamar o elevador para mim. Só é preciso apertar o botão uma vez… mas ela continua a apertar sem parar, até que o elevador chegue.” Com os desenhos, isso fica hilário.
O primeiro livro com a família foi “Crônicas birmanesas”. Sua atitude é mais relaxada. A companhia de crianças faz até com que vizinhos tenham comportamentos mais amistosos na rua, e a vida em casas, não em hotéis, cria possibilidade de maior imersão na cultura local, mesmo com a reclamação frequente sobre o calor dos trópicos (ou sobre as baratas e os copos mal lavados no avião da Myanmar Airways – afinal toda tolerância cultural tem limite).
“Crônicas de Jerusalém” é o melhor livro de Delisle. Não foi à toa que ganhou o principal prêmio do festival de Angoulême 2012, uma espécie de Oscar dos quadrinhos. Nenhum outro livro ou documentário me fez compreender melhor, com doçura e crítica, os problemas atuais daquele local tão importante para a história e o futuro do mundo.