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Guy Delisle

30/03/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29/03/2013

Guy Delisle ocupa há tempos o topo da lista de artistas sobre os quais preciso escrever nesta coluna. Estava esperando a tradução brasileira de “Crônicas de Jerusalém”. Depois de vários meses anunciada para breve pela Zarabatana Books, ela finalmente pode ser encontrada em nossas livrarias (boa leitura para a Semana Santa). O lançamento aconteceu quase que simultaneamente à viagem de Obama pelo Oriente Médio. Em seu discurso “para o povo de Israel”, em Jerusalém, o presidente dos EUA, referindo-se aos palestinos, falou como professor de antropologia: “Coloquem-se no lugar deles. Vejam o mundo com os olhos deles.” Eu amplio o conselho, não só para judeus e árabes: “Vejam o mundo também com os olhos de Guy Delisle.”

Os olhos de Delisle enxergam e nos mostram o mundo através de histórias em quadrinhos. Não querem nos revelar a Verdade sobre o mundo, mas tentam – através de descrições densas e muitas vezes poéticas – mapear o jogo de verdades entre diferentes experiências humanas. Mais importante: os olhos (o ponto de vista do autor, a maneira peculiar com a qual se insere no mundo retratado) estão visíveis, nunca se escondem por trás de narrativa “objetiva”. Delisle está sempre ali, nunca tentando se passar por nativo, ou por observador sem preconceitos. Tudo é narrado/desenhado em primeiríssima pessoa. Por isso, aprendemos tanto e podemos formar nosso próprio olhar para aquela realidade.

Não conhecemos apenas Jerusalém, mas igualmente Delisle em Jerusalém. É assim na melhor antropologia: Bronislaw Malinowski nas Ilhas Trobriand, Clifford Geertz na briga de galos em Bali. A objetividade científica – se pode existir, se é interessante que exista – é efeito dessa relação entre diferenças. Não dá para ser de outra maneira: então, o importante é apresentar todos os detalhes. Delisle viveu em Jerusalém, por um ano, acompanhando sua mulher que faz parte da organização “Médicos sem fronteiras”, e cuidando de seus dois filhos, crianças. “Crônicas de Jerusalém”, de certa forma, é também a etnografia dessa nova tribo planetária formada por cada vez mais gente que trabalha em ONGs internacionais e órgãos da ONU – pessoas de todas as nacionalidades, mas que estão criando rica cultura comum.

Muitos dos grandes momentos do livro se passam em festas e encontros desses expatriados, com trocas de dicas sobre as melhores maneiras para lidar com os problemas cotidianos de sua nova terra temporária. E que terra: um labirinto formado por muros e checkpoints, com muitos projetos políticos e religiões em conflitos armados (e onde ver gente armada na rua é mais comum do que em favela carioca pré-UPP).

Viajar com a família – tendo que lidar com creches, feriados escolares e babás locais – fez bem a Delisle. Suas primeiras histórias viajantes em quadrinhos, sobre Pyongyang, na Coréia do Norte, e Shenzhen, na China, foram resultados de experiências solitárias, quando era contratado por estúdios de animação para coordenar equipes de desenhistas locais. Seu olhar era mais impaciente, irritado. Delisle nasceu em Quebec, estudou perto de Toronto, mas começou a trabalhar em Montreal. Não sei direito se os canadenses de língua materna francesa bufam como os parisienses, mas nesses livros – mesmo com um evidente olhar carinhoso para detalhes que só observadores de muita boa vontade percebem, como a latinha de bala Ricola que o caixa do banco chinês usa para guardar os trocados (e foi isso que me transformou em leitor assíduo de sua obra) – há um mau-humor típico de quem não consegue viver muito tempo longe do rio Sena. O que gera observações engraçadas. Por exemplo, no hotel: “Pela manhã, quando a funcionária do andar me vê saindo do quarto, ela corre para chamar o elevador para mim. Só é preciso apertar o botão uma vez… mas ela continua a apertar sem parar, até que o elevador chegue.” Com os desenhos, isso fica hilário.

O primeiro livro com a família foi “Crônicas birmanesas”. Sua atitude é mais relaxada. A companhia de crianças faz até com que vizinhos tenham comportamentos mais amistosos na rua, e a vida em casas, não em hotéis, cria possibilidade de maior imersão na cultura local, mesmo com a reclamação frequente sobre o calor dos trópicos (ou sobre as baratas e os copos mal lavados no avião da Myanmar Airways – afinal toda tolerância cultural tem limite).

“Crônicas de Jerusalém” é o melhor livro de Delisle. Não foi à toa que ganhou o principal prêmio do festival de Angoulême 2012, uma espécie de Oscar dos quadrinhos. Nenhum outro livro ou documentário me fez compreender melhor, com doçura e crítica, os problemas atuais daquele local tão importante para a história e o futuro do mundo.

mais código

23/03/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 22/03/2013

Muitas vezes esta coluna aborda assuntos que aparentemente só são interesse de minoria. A vontade de divulgar aquilo que pouca gente conhece é consciente. Estou experimentando o experimental, falando sobre o que também é grego para mim, mas onde intuo linguagem comum no futuro, artigo que será de primeira necessidade. Isso é a tese, a carta de intenções. A realidade acontece diferente. Igualmente muitas vezes, logo depois de publicar texto sobre novidade que considerava totalmente esotérica, descubro multidão que só pensa naquilo, com militância exaltada. É o que Ágata, personagem de “O homem sem qualidades”, denomina “salvação pela estatística”.

“O homem sem qualidades”, de Robert Musil, é provavelmente meu romance preferido. Já citei várias vezes esta passagens que tem tudo a ver com a surpresa de descobrir o “vem com tudo” geral do que considerávamos apenas idiossincrasia secreta: “quem ousaria pretender hoje que a sua cólera seja verdadeiramente sua, quando tanta gente lhe vem falar dela e a compartilha até numa medida maior que a dele? […] chegar-se-ia mesmo a pensar que o homem, no caso ideal, acabará por já não dispor de uma experiência privada e que o fardo suave da responsabilidade pessoal se virá a dissolver na álgebra dos significados possíveis.” Foi mais ou menos – em estatística tudo tem margem de erro – assim que me senti ao defender aqui o estudo obrigatório de linguagens de programação de computadores nas escolas.

Pretensão: achava que estava levantando bandeira inédita, pura provocação algo absurda. A coluna tratando desse tema foi publicada 2 de fevereiro. 24 dias depois apareceu no YouTube um vídeo chamado “O que a maioria das escolas não ensina”. Virou viral rapidinho: já tem mais de 10 milhões de views. É uma produção da Code, organização dos EUA, estrelada por Bill Gates, Mark Zuckerberg, o jogador de basquete Chris Bosh, o músico (bem amigo do Brasil) Will.I.Am, entre muitos outros. Tudo é bem pop, animado, clipado. Muita gente repete que para escrever código ninguém precisa ser um gênio. Várias cenas tentam seduzir jovens mostrando como locais de trabalho nas empresas de tecnologia são “irados”.

A página de web da Code abre com o lema: “Todo estudante em toda escola deveria ter a oportunidade de aprender a fazer código”. Logo abaixo há o convite: “se você concorda, assine o seu nome”. Mais de 500 mil pessoas já assinaram. Na mesma página conhecemos “líderes e trendsetters” que apoiam a campanha.  Time poderoso: além dos Bill, Mark, Chris e Will acima, encontramos Bill Clinton, Richard Branson, Ashton Kutcher, Stephen Hawking, Snoop Dogg, Enrique Iglesias e até Arne Duncan, ministro da Educação dos EUA. Dá para pensar: se eles não conseguem, como a gente aqui vai conseguir?

O desafio é imenso. Clique na aba “Stats” no site da Code. Ali aprendemos que 9 de 10 escolas americanas não oferecem nenhum curso de programação. O primeiro gráfico é o mais estarrecedor: mostra uma projeção comparando números de empregos em computação com o de estudantes de ciências da computação. Em 2020 haverá 1,4 milhões de empregos para 400 mil estudantes. Resumindo: é uma oportunidade de 500 bilhões de dólares praticamente desperdiçada. Não sei se existem dados semelhantes para a situação brasileira. Imagino rombo maior.

Depois de publicar aquela primeira coluna sobre o ensino de programação na escola, eu descobri praticamente todos os dias um link para desdobramento estimulante da conversa (e nem vou me meter por enquanto no bom diálogo entre João Moreira Salles e Michel Laub sobre a falta de estudantes para cursos brasileiros de engenharia). Por exemplo: a coluna do escritor de ficção científica Cory Doctorow no superblog Boing Boing me mostrou (como vou viver sem o em futuro breve “aposentado” Google Reader? recuso-me a mudar para um Twitter que menospreza nossas inteligências) a palestra de Mitch Resnik, do Grupo de Jardim de Infância para Toda a Vida do Media Lab do MIT (o lugar onde foi criada a Scratch, linguagem de programação infantil já citada aqui na coluna), concordando “comigo”: “as crianças devem aprender programação tanto quanto ler e escrever”.

No Mashable, outro superblog, encontrei a seleção de dez inovadores com menos de 15 anos que criaram apps incríveis para smartphones. Tem até um menino que desenvolveu sua própria rede, a Grom Social, depois de ter sido proibido pelos seus pais de entrar no Facebook (a idade mínima por lá – pouca gente respeita isso – é 13).

Fico torcendo para encontrar garotas e garotos brasileiros em futuras listas como essa. O que estamos fazendo para que isso aconteça?

vírus

16/03/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 15/03/2013

Vivo momento de descobertas em série de acontecimentos reais previamente “anunciados” em romances. Exemplo da coluna anterior: não prestaria tanta atenção no meteoro russo se não tivesse lido antes a “Trilogia do Gelo” de Vladimir Sorokin. Outras obras de ficção não são apenas proféticas. Sua leitura exerce tal influência no pensamento contemporâneo que passamos a agir, pragmaticamente, para que aquele universo paralelo se transforme em realidade. Esse é o caso de “Neuromancer”, de William Gibson, cuja primeira edição completará 30 anos em 2013. Foi lá que a palavra ciberespaço apareceu pela primeira vez. Ficamos tão encantados com sua descrição ficcional que continuamos trabalhando duro para que o mundo em que vivemos fique cada vez mais parecido – para o bem e para o mal – com tudo que o livro apresentava de mais improvável.

Claro que tive que lembrar de “Neuromancer” – onde as verdadeiras guerras acontecem dentro das redes de computadores – ao me deparar com as notícias, publicadas no final de janeiro, de que a Unidade Ciber Comando do Pentágono vai passar por uma grande expansão nos próximos anos, quintuplicando seu tamanho, segundo o Washington Post, e passando dos atuais 900 funcionários para 4.000, segundo o New York Times. Fui pego de surpresa: não tinha ideia que as forças armadas dos EUA criara um comando chamado “ciber”. Curioso e assustado, acabei encontrando a declaração de Leon Panetta, secretário da Defesa na presidência Obama, nos alertando em outubro do ano passado para a possibilidade de um “ciber Pearl Harbor”.

Seguindo links de texto apocalítico de colunista do The Guardian, fui parar em artigo de 01/06/2012 assinado por David E. Sanger, o correspondente chefe do New York Times em Washington, que considero uma das peças jornalísticas mais impressionantes do novo século. Se não fossem as credenciais realistas do seu autor e do órgão de imprensa para o qual trabalha, eu desconfiaria que se tratava na verdade da mais delirante criação da ficção científica. Porém, o texto somente revelava pela primeira vez fatos acontecidos há vários anos.

Tudo é nebuloso. O governo Obama, com reforço israelense, teria dado continuidade a projeto secreto anterior – denominado “Jogos olímpicos” – de criação de cibervírus poderoso capaz de sabotar o programa nuclear iraniano. Provavelmente um espião conseguiu entrar em Natanz com um pen-drive contendo o vírus que foi passado para a rede de computadores interna – portanto desconectada da internet – dessa usina de refinamento de urânio. Centenas de suas centrifugadoras começaram deixaram de funcionar, mas os técnicos iranianos não desconfiaram de cibersabotagem e sim pensavam que os problema eram gerados por seus próprios erros.

O que aparentemente não estava nos planos americanos (mas há suspeita de que algum hacker militar deixou essa possibilidade aberta de propósito): um laptop de engenheiro pode ter se conectado à rede interna da usina, foi infectado e depois – sem querer – transmitiu o vírus, chamado de Stuxnet, para a internet, contaminando vários sistemas, inclusive bancários. As empresas de antivírus nunca tinham visto nada parecido. Começaram a circular rumores de que deveria haver governos poderosos por trás da nova ameaça. Mas só o artigo de David E. Sanger confirmou o que ninguém tinha coragem de afirmar publicamente.

Resultado, como declarou um ex-chefe da CIA: ficou claro que “alguém cruzou o Rubicão“. Entramos em nova fase, com consequências imprevisíveis, da história das guerras e da estratégia militar, uma realidade bem próxima com aquela de “Neuromancer”. Quando o Irã e a China descobriram o que os EUA e Israel tinham feito, logo criaram seus próprios e secretos cibercomandos. Dezenas de vírus novos e cada vez mais imperceptíveis, como o Flame, podem estar prontos para escapar de uma base militar escondida em algum recanto isolado do planeta. O pior: não existe tratado regulamentando o uso dessas novas ciber-armas, como aquele que cuida da não proliferação do nuclear. E lembrando: o Stuxnet fui utilizado em tempo de paz, onde não havia guerra oficial declarada.

Mesmo países que não pretendem atacar ninguém com vírus eletrônico vão precisar aprender a se defender, detectando ameaças em seu ciberspaço (e hoje tudo, de redes elétricas a hospitais, depende do ciberspaço para funcionar). Detesto voltar a falar de educação neste contexto guerreiro, mas precisamos ser realistas (está tudo cibermisturado): uma nação sem boa cultura de programação digital está condenada a ser vítima fácil de ciber-ataques, mesmo “amadores”. Voltarei a falar do lado Jedi da força educativa na coluna da semana que vem.

meteoros

09/03/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 08/03/2013

Vladimir Sorokin já foi chamado de Quentin Tarantino ou Marquês de Sade da literatura russa contemporânea. Prefiro chamá-lo de Fausto Fawcett de Moscou menos 40 graus. Quem me conhece sabe não tenho elogio melhor. Outras pessoas, menos exaltadas, decretam apenas que ele será o próximo Roberto Bolaño (isto é: obrigatório em rodas intelectuais chiques, assim como um caramelo com flor de sal). Os sinais de sua iminente celebridade global são claros. Em 2011, foi “escritor em residência” em Stanford. Este ano, concorre para o Man Booker International Prize que será anunciado dia 22 de maio, em jantar no museu Victoria & Albert, Londres.

Mas não foi instinto cool hunter que me levou a escrever agora sobre sua obra. O impulso veio de acontecimento pouco literário: a queda do meteoro sobre Chelyabinsk. Quando vi a fotografia do buraco na crosta de gelo do lago da região, aberto provavelmente por fragmento da estrela cadente, fiquei assustado: era imagem exatamente igual a que se formou em minha mente ao ler “Trilogia do Gelo”, de Sorokin. A farsa ficcional se repete em tragédia real?

“Trilogia do Gelo”, por sua vez, começa com a enorme explosão que ocorreu perto do rio Podkamennaya Tunguska, na Sibéria, em 1908 – e ficou conhecida como o “evento Tungus”, mote para tanta piração quanto o “incidente de Roswell”. Tem gente que acredita foi uma espaçonave alienígena que explodiu no ar. “Bro”, o primeiro livro da “Trilogia do Gelo” começa justamente com o efeito longínquo do “evento Tungus” no parto prematuro de Alexander Snegirev, em fazenda perto de São Peterburgo. Alexander, quando entra em contato com o Gelo, aprende que seu nome verdadeiro é Bro.

A trilogia, como outros livros de Sorokin, tem nível de bizarrice também explosivo. O meteoro seria uma grande bola de gelo que ficou escondida no fundo de lago siberiano. Bro descobre sua localização e utilidade: pedaços do Gelo acoplados a tiras de carne de cachorro viram martelos capazes de acordar os corações das 23 mil pessoas louras e de olhos azuis que formam a Irmandade da Luz Primordial, incumbida de preparar a destruição da Terra, cuja criação – com água instável, no lugar da ordem do Gelo – foi um grande erro e constitui anomalia maligna que, se não extirpada, vai acabar com a harmonia do resto do universo.

Olga Drobot, personagem decisiva no final da trilogia, pergunta se a Terra, por ser única, não é um milagre. Seu amigo alemão Ernest Wolf (que antes já tinha descrito a Rússia como um “buraco metafísico”) lhe responde com calma: “Milagres são anomalias, Olga. E qualquer anomalia é uma violação do equilíbrio, uma destruição da ordem. Uma linha reta pode ser traçada entre dois pontos, através de três, através de trinta e três. Mas não há sentido em traçar uma reta com um só ponto. Porque um ponto é só um ponto. Não é um caminho.”

É preciso suportar essa paródia séria, e muitas vezes irritante, de literatura new age, para atravessar as 694 páginas da trilogia. Há também debate na crítica russa sobre a especificidade da escrita de Sorokin: é uma volta ao absurdo? Tendo a concordar com outro partido, o que fala da volta do realismo, e de uma narrativa linear, depois das experimentações mais tipicamente pós-modernas dos seus primeiros livros. Tudo, mesmo os martelos de Gelo absurdos, são descritos com naturalidade, como se fossem as coisas mais normais do mundo, tão corriqueiras quanto um cachorro chamado Fidel (ou um poodle Arto), um executivo que usa isqueiro Gucci e só escuta Leonard Cohen, ou poster stalinista “Mulheres Soviéticas, Luta contra Preconceitos Burgueses” condenando manicures, batons, rouge e mesmo o costume de se raspar as axilas ou fazer as sobrancelhas. No fundo, a trilogia é um panorama realista dos absurdos da história do século XX, sob o ponto de vista de uma sociedade que tentou ser comunista.

Sorokin nasceu em 1955. Sua geração produziu os movimentos de arte “underground” dos anos 1980, que anteciparam – em clima punk – o final da União Soviética. A liberdade conquistada de repente, sobre os escombros de uma velha ordem que parecia eterna, logo revelou novos problemas no ritmo frenético de uma série de crises BRICs. Protestos e processos tentaram proibir a circulação de livros (sobretudo o que trazia cena de clone de Khrushchev sodomizando clone de Stalin) ou a estreia de ópera do Teatro Bolshoi escritos por Sorokin. É o fim da história, mas não como a vitória da paz capitalista. O autor da “Trilogia do Gelo” declarou para o New York Times: “O que está acontecendo agora não é estagnação, é destruição, é colapso.” Meteoros gelados não têm poder algum: nunca mais teremos a simplicidade e o repouso da ordem.

ondinhas

02/03/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 01/03/2013

Café Tacvba tocará pela primeira vez no Rio na quinta-feira. Show obrigatório. Não vou medir as palavras: é a banda mais criativa da história do rock abaixo de El Paso e acima da Terra do Fogo. Recentemente, a revista Rolling Stone dos EUA elegeu “Re”, seu álbum de 1994, como o melhor lançamento de todos os tempos do rock latino. Concordo: o único outro disco que, em minha opinião, poderia ocupar tal posto seria o primeiro dos Mutantes. Ou “El objeto antes llamado disco” (EOALD), editado pelo Café Tacvba no final do ano passado. Todos os críticos, do New York Times ao Página 12, o declaram digno de comparação com “Re”, ou até mais conectado com o futuro.

Hora perfeita para ver a banda ao vivo. Até porque EOALD (repergunto: é o melhor título de disco também de todos os tempos?) foi gravado ao vivo. Porém, como sempre acontece com o Café Tacvba, nada é usual: não se trata de show para grande plateia. Foi ideia tão surpreendente quanto a de Caetano Veloso, que preparou “Zii e zie” em shows e no blog “Obra em progresso”. EOALD levou o público para dentro do estúdio (ou estúdios, montados em Buenos Aires, Santiago, Los Angeles e na Cidade do México), compartilhando o momento mais íntimo da gravação.

Rubén Albarrán – o cantor da banda, antes chamado Juan, Cosme ou Anônimo etc. – esclareceu na carta que acompanha EOALD (dá para ler a íntegra aqui): “Não queremos destruir a intimidade; é a intimidade ampliada para um círculo maior. […] Não somos nem seremos os mesmos na frente do outro.” Agora chegou a nossa vez, aqui no Rio, de descobrir em quem o Café Tacvba vai se transformar, diante de nossa presença “outra”, em círculo ainda mais ampliado. Também não seremos mais os mesmos.

Tomara que dançando possamos copiar a “negrita” do sambinha de “Re”, a que volta para vender peixe frito com limão na “sua costa amada”. Ela saiu pelo mundo acreditando que “tinha que viajar para triunfar, que aqui não há oportunidade, que em outro canto haverá”. Mas nunca esqueceu que “sua cadeira ao caminhar, leva o ritmo do mar.”

O requebrado do mar reaparece em EOALD, justamente na canção que há três semanas é também clipe no Vimeo. Tudo na letra de “Olita de altamar” é diminutivo (ondinha, areinha, caminhinho) em contraste com as imagens: Rubén vestido de pássaro pré-colombiano, cantando diretamente para o oceano, à beira de enorme falésia. Mandei o link para Ernesto Neto, que estava em Berlim. Meu email era um PS para nossa conversa pós-carnavalesca (pós-abundância) sobre o Eldorado. Ele me respondeu entendendo tudo, com observação (“o Eldorado se esconde no mutualismo, na simbiose, no excesso de vida, aprendi isso vendo as esculturas olmecas, astecas, maias”) e poesia: “ondinha de alto mar / ondinha para lá e para cá / quase bossa na onda / Dorival no balançar / ondinha, ondinha / que gostoso te encontrar / ondinha, ondinha / volta logo, macia e devagar”.

Círculo. Volta. Temas impressos na capa cartolina da edição especial de “Re” que meu irmão Herbert deve ter comprado no México. Está escrito, para não deixar dúvida: “repetição / reiteração / reciclagem / resistência”. Há ainda citação do antropólogo G. Bonfil Batalla: “A noção cíclica do tempo está presente na consciência da história: O passado de liberdade, da idade do ouro antes da dominação colonial, não é um passado morto, perdido para sempre, mas sim fundamento da esperança, porque no ciclo do tempo essa idade haverá de voltar.” Eldorado? Carnaval? Futuro? Que o Café Tacvba volte muitas vezes a esta nossa costa amada.

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Falando em México: depois de Café Tacvba minha música mexicana preferida hoje é feita pelo grupo eletrônico 3 Ball MTY. Seu gênero é chamado de tribal e é dançado por gente vestida de cowboy com botas bicudas. O bico é tão grande que dá voltas. Não sei como o baile tribal não vira luta livre de bicos-chicotes. O som é frenético. Para comprovar: tente não requebrar ao som do set do DJ Erick Rincón no Diplo & Friends, o melhor programa de rádio/internet da atualidade, transmitido pela 1Xtra londrina.

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Falando em Diplo: sua gravadora Mad Decent lançou “Harlem shake” em maio de 2012. Na semana passada essa música estreou em primeiro lugar na parada Hot 100 da Billboard americana, que agora contabiliza views do YouTube. Mais interessante: vale a soma das visualizações do clipe oficial e dos outros vídeos antes chamados piratas (pois não tinham, e continuam a não ter, autorização de uso da música como trilha sonora). Assim, a revista principal do business musical legaliza – antes de qualquer legislação – o que se faz fora da lei. E ainda transforma a “ilegalidade” em métrica do sucesso gerador de grana. Quanto mais pirateada mais a música subirá na parada oficial.