texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 30/08/2013
Minha coluna entra de férias hoje. Por isso este anúncio adiantado: sexta-feira que vem é dia de o Rio de Janeiro comemorar os dez anos de A Gentil Carioca. Vai ter festa obrigatória na encruzilhada! Mais especificamente, ali onde provavelmente – séculos atrás – era a entrada para a sede da Irmandade de São Jorge, entre as quatro esquinas formadas pelo encontro das ruas Luiz de Camões e Gonçalves Ledo (um poeta português e um articulador maçom da independência brasileira – por coincidência a Gentil foi inaugurada um dia antes do 7 de Setembro), por trás da Praça Tiradentes, perto (dentro?) do comércio pop do Saara.
A galeria ocupará um segundo prédio, com visão direta para sua Parede Gentil (a que é sempre renovada por murais de arte efêmera), com muitas outras atividades: exposições – começando por Cosmococas – no segundo andar, e uma Aldeia Carioca – para todos nós índios urbanos – no primeiro. Porém, como afirmam seus criadores Marcio Botner, Laura Lima e Ernesto Neto, o mais importante sempre acontecerá “entre” os dois edifícios, no meio da rua e do “redemoinho” criativo que a galeria acelera gentilmente.
Escrevi galeria. É pouco. Poderia corrigir para “centro cultural”, mas continuaria uma denominação empobrecedora. As atividades e os projetos da Gentil são híbridos, também “entre” muitas categorias. Nesse sentido têm a ver com outras iniciativas que sustentam muitas ondas boas da cidade hoje. Cito o Cachaça Cinema Clube (que fez 11 anos agora em agosto), a La Cucaracha! (é uma loja? é uma galeria de toy art? é uma editora de quadrinhos? etc.?), o Plano B, o Audio Rebel, a Comuna, o CEP 20.000 (pai de toda a nova geração?). Aproveito para dar as boas-vindas para o “bar” Subúrbio Alternativo, de Brás de Pina, com shows de metal também na rua. Cada um bem diferente do outro, com “modelos de negócios” diversos, mas todos resultados da vontade e do trabalho de gente que faz (abrindo espaços onde tudo é precário), e não fica reclamando esperando acontecer.
A Gentil Carioca surgiu num momento de total crise institucional na cena das artes plásticas da cidade. Galerias fechadas, o MAM moribundo, a RioArte seria extinta em breve (acabando com exposições no Sérgio Porto etc.) – tudo desanimador. Marcio, Laura e Neto inauguraram o que ninguém (no mercado e no governo) acreditava possível: galeria-ponto-de-encontro-e-festas-espaço-educativo-e-mais, administrado por artistas, no centro “decadente” (onde colecionadores nunca tinham pisado). Não há nada semelhante, com todas essas múltiplas características, no mundo. Mesmo assim, a experiência completa uma década, sobrevivendo com recursos próprios (é uma instituição comercial, que vive com dinheiro da venda de trabalhos dos artistas por ela representados), e sempre testando novas possibilidades, lançando novas sementes.
Por exemplo: a Abre-Alas, exposição coletiva realizada todos os anos na época do carnaval, com seleção de artistas que começaram a enviar portfólios para o endereço da Gentil. Já teve nove edições e se transformou numa das principais plataformas para novos nomes nas artes brasileiras. Ou a Camisa Educação que lança camisetas idealizadas por diferentes artistas (51 até agora) com o tema educação, uma ação simbólica que procura estimular o debate sobre políticas públicas educativas para além dos especialistas.
Outra atividade/atitude pioneira da Gentil foi sua participação em feiras de arte internacionais, como a Art Basel ou a Frieze, indicando caminho para outras galerias (bem mais tradicionalmente comerciais) brasileiras. É também aprendizado, que tem função pública, podendo ser compartilhado por muito mais gente: como funciona o grande mercado de arte mundial – e como novos artistas brasileiros podem aproveitar o interesse pela arte do ex-resto-do-mundo, sem virar exotismo BRICs.
Dito tudo isso, encerro com o que mais me alegra/revigora: A Gentil Carioca soube inventar um território para celebração tanto da arte quanto da vida no Rio. Na próxima sexta-feira, mais uma vez teremos aula boa de festa. Muitos motivos para ir ao Centro: da escultura bolo de Edmilson Nunes à performance de Jarbas Lopes com lavagem da encruzilhada.
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Que maravilha o disco “MISTURA7” de Gian Correa. Na minha sempre exaltada opinião, já pode ser classificado como um dos melhores da história da música instrumental brasileira. (Viva também o Movimento Elefantes!) O violão de sete cordas sai do acompanhamento e passa a comandar uma experiência de vanguarda com quarteto de saxofones e pandeiro. São Paulo já aponta o futuro do samba pop e do funk carioca. Agora também consolida seu lugar central na renovação constante do choro.