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caixa de vida parte 2

09/06/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 08/06/2012

Recapitulando: na semana passada publiquei o início da apresentação de RudyRucker, um de meus escritores favoritos, cuja obra é problematicamente classificada como ficção científica (FC). Mesmo o autor não sabe como enquadrar sua literatura. A própria trajetória de Rucker aumenta a confusão. No início ele queria ser matemático. Trabalhou como professor ou pesquisador em institutos de matemática, incluindo o da Universidade de Heidelberg. A temporada na Alemanha foi encarada como prêmio de consolação. Rucker já desistira da carreira ao não ser aceito como pós-doutor no Instituto de Estudos Avançados de Princeton, santuário máximo do saber contemporâneo, onde antes teve encontro com Kurt Gödel, sumo sacerdote dos teoremas (ou antiteoremas) mais esotéricos da matemática. Gödel classificou as ideias de Rucker como “muito estranhas” ou “bizarras”. Era um elogio. Para o resto do Instituto, a bizarrice não era suficientemente brilhante.

Comentário sobre a negativa de Princeton: “Meu artigo com Ellentuck [seu orientador, na Universidade de Rutgers] e meu trabalho na tese, embora publicáveis, não eram convincentes o bastante para que eu aterrissasse na posição de um lógico todo-poderoso. Comecei a sentir que os mais altos escalões da realização matemática ficariam inacessíveis para mim.” Ele não se contentava com pouco, nem com Heidelberg (terra de 55 prêmios Nobel, segundo a Wikipedia). Ainda bem: talvez não tivesse continuado a escrever ficção se mantivesse uma vida restrita às universidades, onde sempre continuou trabalhando e mesmo publicando, mais como divulgador do que como criador central. (Nessas reviravoltas da vida, um de seus livros de não-ficção, “O infinito e a mente”, teve suas últimas edições publicadas por Princeton, depois de ter sido lançado nos anos 80 pela editora Bantam, mais conhecida por seu catálogo de FC, incluindo a série “Jornada nas estrelas”.)

O fundamento científico e a curiosidade com relação aos avanços mais radicais da ciência atual são elementos marcantes dos livros de Rucker. Eles se passam em universos com leis diferentes daquelas que governam nossa realidade. Seu método: “Esse é realmente um estilo de pensamento que aprendi como matemático. Você começa com um conjunto de axiomas e vê o que pode deduzir. Engenharia de software procede mais ou menos da mesma maneira. Você cria um pequeno programa e vê o que aparece na tela quando o programa é rodado. Minha escrita de FC é como isso também. Eu faço algumas assunções incomuns sobre meu mundo imaginário, ponho dentro umas poucas personagens, e vejo o que acontece na estória que escrevo.” É o que Rucker chama de transrealismo. Regras: “as personagens devem ser baseadas em pessoas reais”; “o artista transrealista não pode prever a forma final de seu trabalho.” Então nada é pura piração. Tudo começa com a realidade, mas ninguém sabe onde vai parar.

A ficção de estreia de Rucker se chamava “Donuts do espaço-tempo”. Em 1979 começou a planejar “Software”, primeiro lançamento da tetralogia Ware. Ainda usava máquina de escrever. Software era palavra pouco conhecida, retirada de um artigo da revista Scientific American. Rucker só comprou seu primeiro computador em 1985 quando iniciou “Wetware”. Os robôs de “Software” comem o cérebro de seu inventor, para torná-lo imortal. Já em “Wetware”, os robôs começam a construir seres humanos. Os dois livros ganharam o Prêmio Philip K. Dick. Em “Freeware”, humanos e robôs têm relações sexuais, e precisam lidar com raios cósmicos alienígenas.

Esse estilo de maluquice encantou os primeiros cyberpunks. Em 1985, Rucker estava hospedado na casa de Bruce Sterling (que iria lançar “Mirrorshades”, a primeira antologia cyberpunk, no ano seguinte). Outro hóspede era John Shirley, mais um cyberpunk “canônico”. Rucker abriu os olhos uma manhã e se deparou com Shirley bem perto, observando seu rosto. Pego no flagra, ele se explicou: “estava analisando as vibrações do meu mestre.” Gente fina e doida.

Talvez meus livros preferidos de Rucker sejam dois mais recentes, que se passam num universo onde já aconteceu a “singularidade” (difusão explosiva de superinteligências artificiais por toda a realidade). Tanto que o primeiro volume se chama “Postsingular”. Já em “Hylozoic”, sua sequência, os humanos desenvolvem a telepatia generalizada (não existe mais privacidade nenhuma, pois não mais controlamos quem tem acesso a nossos pensamentos), e descobrem que todos objetos, de pedras a guarda-chuvas, são conscientes.

Enquanto escreve sua obra, Rucker também atua como um dos observadores mais perspicazes da nossa tecnocultura. Dá para fazer um jogo “Onde está Rudy Rucker?” para encontrá-los em alguns dos acontecimentos definidores do Zeitgeist. Ele colaborou com a edição da Mondo 2000 (revista que foi a Wired, muito mais radical, antes da Wired), da Semiotext(e) (onde organizou, com Peter Lamborn Wilson, coletânea além-cyberpunk) e do Boing Boing (quando era apenas um fanzine, antes de se tornar o blog mais influente). Trabalhou como programador de softwares (os primeiros a popularizar os autômatos celulares) para a Autodesk. Etc.

Como disse, os livros não foram lançados no Brasil. Mas dá para ter acesso a muitos escritos de Rucker pela internet. Por exemplo: as notas de “Hylozoic” podem ser baixadas em PDF de 385 páginas. É testemunho de uma das mentes mais bacanas do universo em pleno trabalho.

caixa de vida

08/06/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 01/06/2012

Rudy Rucker é um dos meus escritores preferidos. Poucos outros me deram tantas alegrias literárias, ou desafiaram minha imaginação com invenções ficcionais a cada livro mais desconcertantes. Penso que ele gostaria de ouvir essa declaração que classifica sua obra apenas como literatura. Geralmente os elogios que recebe são mais específicos: seus livros já ganharam prêmios importantes, mas quase todos só conhecidos por fãs de ficção científica (FC). Rucker cita o exemplo de Kurt Vonnegut como escritor que escapou do “gueto”, e conquistou respeito de críticos “sérios”, muitos dos quais tratam, quando estão com boa vontade, quem escreve ou lê FC como adolescentes nerds. Ao fazer esse tipo de reclamação em casa, sua mulher cai na gargalhada: “Não é FC? Você está escrevendo sobre robôs e lulas falantes e discos voadores e viagens para a quarta dimensão! Do que você espera que as pessoas chamem seus livros?”

Sylvia Rucker não acalma o marido. Ele quer encontrar legitimidade artística para sua literatura: “Os beats prezavam o gênero como uma forma de arte vanguardista e singularmente americana, um pouco como o jazz. Para mim, é assim como continuo a pensar sobre a FC quando estou escrevendo: como um surrealismo do mercado de massas, como uma literatura experimental, como a ficção de nosso tempo.”

Retirei essas citações de “Nested scrolls”, autobiografia de Rudy Rucker publicada recentemente. Como todos os seus livros, se não me engano, este também não foi publicado no Brasil. O que é sinal de problemas maiores: ninguém sabe direito o que fazer com sua obra, muito maluca até para padrões nada caretas. Rucker reconhece seu descolamento em qualquer lugar: “eu levo meus efeitos para novos níveis de esquisitice, minhas personagens são humanos realistas e sofredores – e não sou muito popular entre típicos fãs de FC.” Os não típicos também ficam inseguros. No prefácio que escreveu para a introdução da “Tetralogia Ware” – quando os alucinantes “Software”, “Wetware”, “Freeware” e “Realware” foram lançados em um só volume -, mesmo William Gibson ficou na defensiva: “A ficção de Rudy [os dois são íntimos e Rucker foi uma espécie de irmão mais velho para os melhores escritores cyberpunks] é provavelmente um pouco forte demais […] para alguns leitores […] O cara é sui generis.” Gibson amarelou. Afinal ele também quer ser considerado um escritor importante. Não deve pegar bem ser associado a companhias muito doidas.

Como não me interessa ser considerado crítico sério, posso elogiar rasgadamente todos meus ídolos (incluindo desenvolvedores de games, artistas de mangá e tantos outros que são habitués desta coluna). Rucker é gênio. Mas concordo com Gibson: um gênio sui generis. Para o leitor avaliar o quilate da maluquice santa do cara, preciso dizer que “Nested scrolls” é mais que autobiografia. Rucker acredita piamente que em pouco tempo poderemos “uploadar” o conteúdo de nossas consciências para a nuvem ciberespacial, e continuaremos vivendo por lá depois que nossos corpos físicos forem para o beleléu. Em outras palavras: seremos imortais. Mesmo agora, com as ferramentas já disponíveis online, há atalhos concretos para a imortalidade virtual.

Rucker criou o conceito de “life box”. Cada pessoa pode começar sua caixa de vida até com um blog, no qual depositaria todas suas recordações, pensamentos, fotos, vídeos, falas. Depois precisaria criar um mecanismo de busca dentro do blog, que é uma forma ainda primitiva de interação com o conteúdo ali disponibilizado, por caminhos não imaginados pelo seu autor. Algumas buscas já são feitas com voz. Logo as respostas também serão falas, imitando a voz do dono daquela “life box”. Tudo ficará parecido com uma conversa, a partir das memórias de alguém que pode até já estar morto. No momento em que novas memórias, post-mortem, forem acrescentadas ao conteúdo “original”, algo bizarro acontecerá: a caixa ganhará uma fagulha de “vida” própria.

“Nested scrolls” foi escrito como uma “life box”, não interativa. Por isso tantos detalhes, do nome de seus professores nas escolas primárias do Kentucky aos piolhos que seus filhos pegaram dos primos décadas depois. Quem não é tiete de Rucker vai ficar até constrangido com tanta intimidade, mesmo tendo oportunidade de conhecer tão profundamente o cotidiano de uma família americana nos últimos 70 anos. Mas quem quiser pode pular a infância e adolescência para chegar logo ao que tem mais interesse geral, a partir da pós-graduação em matemática, com direito até a um encontro com Kurt Gödel (para muitos o ser humano mais inteligente que já existiu). Diante de seu herói matemático, Rucker tem coragem de expor suas especulações sobre os paradoxos da viagem no tempo. Gödel responde: “Essa é uma ideia muito estranha. Uma ideia bizarra.” O pupilo fica orgulhoso. É uma espécie de Prêmio Nobel de bizarrice, vindo justamente do sumo sacerdote de um mundo bem esquisito: “De todas as subculturas exóticas com as quais eu eventualmente me envolvi, os matemáticos ganham a coroa de estranheza – e nem ligue para os hippies, escritores de FC, roqueiros punks, programadores de computador, e cibermalucos de Berkeley.”

Não acredito que o espaço desta coluna já chegou ao fim… Estou destrambelhado, escrevendo pelos cotovelos. Semana que vem: o cyberpunk, a Mondo 2000, os autômatos celulares. Enfim: o melhor de Rudy Rucker só na próxima sexta-feira.

cyber/steampunk

08/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 08-10-2010

William Gibson acaba de lançar “Zero history”, o terceiro livro de sua terceira triologia. Parece número cabalístico. Três vezes três dão nove romances de – na falta de rótulo mais abrangente – ficção científica. É tudo que lançou até agora, fora contos, ensaios e colaborações com outros autores. Para quem publica desde o final dos anos 70, não são muitas páginas. Mas formam uma obra e tanto, com influência decisiva no modo como pensamos o mundo hoje, cada vez mais assustadoramente semelhante ao que Gibson cria. Você pode não ter lido nada do que ele escreveu, mas certamente terá convivido – até bem intimamente – com alguma de suas idéias, espalhadas muito além do campo artístico. Por exemplo: o ciberespaço, palavra inventada em seu conto “Burning chrome” (1982), era ambiente central de “Neuromancer” (1984), primeiro livro de sua primeira triologia, e só se transformou em realidade banal planetária no início dos anos 90.

No século XXI, Gibson deixou de lado o futuro e passou a escrever sobre o presente. É bem o nosso presente, não há nenhuma tecnologia que não exista hoje. Mesmo um pingüim biônico flutuante, encarregado de vigilância, já pode ser conhecido até em vídeos no YouTube. Numa de suas declarações mais citadas, Gibson disse: “O futuro já está aqui – só não está equilibradamente distribuído.” Realmente: muitas das coisas já presentes, que serão determinantes em nossos futuros, são apenas tendências embrionárias, que somente gente esperta pode identificar como promissoras. Por isso o personagem mais poderoso da triologia que agora se finaliza com “Zero history” é Hubertus Bigend, dono de uma agência de caça ao cool, às viralidades, aos segredos, daqueles que ainda causam pequenas marolas no underground, mas que estão na iminência de virar tsunamis consumistas ou modo de vida globalizado. Como sugere uma personagem: “Eu era uma espécie de coolhunter também, antes que isso tivesse um nome, mas agora é difícil encontrar quem não o seja.”

Em “Reconhecimento de padrões”, o primeiro volume dessa triologia pós-marqueteira (e o único até agora lançado no Brasil), Bigend quer encontrar os criadores de vídeos que geraram uma espécie de culto na internet. Para revelar o mistério, é contratada Cacey Pollard, que tem alergia radical a etiquetas e marcas, costumando inclusive a pagar ferreiros para retirar letras e desenhos dos botões de seus jeans. No segundo livro, “Spooky country”, uma ex-cantora de banda pós-punk se mete numa trama policial que envolve arte locativa (baseada em coordenadas de GPS) e contrabandos em containers de navios talvez pirateados na Somália. A mesma ex-cantora reaparece em “Zero history”, agora com a missão de revelar quem lança uma marca secreta de jeans, que justamente por ser totalmente anti-fashion – não é vendida em nenhuma loja, não tem etiqueta, não faz desfiles nem publicidade – virou o sonho de consumo de todo fashionista que realmente sabe das “coisas” ou que quer algo verdadeiramente exclusivo e fascinante.

Para saborear bem a escrita de Gibson, é preciso ter algo do espírito coolhuntista, ou ser acometido por um grau mediano de vício de informação. São muitas referências a cada parágrafo. Uns russos de ternos escuros “parecem extras daquele filme de Cronenberg”. Ou: “Ela cuidadosamente manteve a ampliação do retrato de Corbijn fora de seu campo de visão enquanto chegava ao segundo andar do Salon du Vintage.” Detalhes de lugares muito precisos também congestionam a narrativa: como o Caffé Nero, “um Starbucks de realidade-alternativa”, que fica em frente ao Vidal Sassoon, numa esquina dos Seven Dials, em Covent Garden, Londres.

O ainda raro convive com o já comum, diagnosticado com perspicácia: “Uma muito considerável parte da linguagem gestual dos lugares públicos, que antes pertencia aos cigarros, hoje pertence aos telefones.” Então todos os personagens acariciam as telas de seus iPhones o tempo inteiro. O que dá uma sensação engraçada para a leitura. Os iPhones são tão ano passado, não são? Hoje os candidatos a coolhunters usariam android? Mas no intervalo entre a escrita e a publicação do livro o android já estaria ultrapassado, e o presente retratado ganharia inevitavelmente pátina de antiguidade. O livro, de cyberpunk, viraria steampunk.

Ironia: Gibson é um dos maiores responsáveis pela popularização da onda steampunk, tendo publicado o livro “The difference engine” – uma parceria com Bruce Sterling – em 1990. Os enredos steampunks acontecem num passado alternativo, geralmente era vitoriana que já inventara computador a vapor ou tecnologia semelhante. Esse subgênero de literatura tem cada vez mais adeptos, incluindo leitores que frequentam simpósios onde muitos comparecem com fantasias de época e adereços retrofuturistas. Romeu Martins, um dos maiores conhecedores e divulgadores da produção de ficção científica brasileira, tem um bom texto no Overmundo sobre o steampunk nacional, organizado sobretudo em torno do site Conselho Steampunk. Talvez, porque o futuro e o presente já nascem datados, seja mais fácil encontrar horizontes futuristas no passado.

PS: Esta coluna é uma homenagem à editora Aleph, que publica Gibson (e Philip K. Dick, Ursula K. Le Guin etc.) no Brasil, e acaba de lançar “O fim da infância”, de Arthur C. Clarke, em edição inédita no mundo.