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contra muros

13/08/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 05/08/2011

Muita gente me escreveu para elogiar a coluna da semana passada. Aqui do meu ladinho, da minha sonífera ilha particular, fiquei insatisfeito. Diante do texto publicado, achei o tom muito reclamão. Fiquei destemperado, talvez despeitado, tomado por uma antipatia pré-histórica pelo Facebook, sobretudo pela maneira como virou moda no Brasil, resultado de atitude preconceituosa contra a favelização do Orkut, fenômeno que ficou mais conhecido como “orkutização”. Quando vi os “favelados” no Orkut, pensei: agora é que isso aqui vai ficar bom, cada vez mais perto do amálgama de Jorge Mautner. Que nada: os ricos debandaram. É o que está acontecendo com o BarraShopping, já perceberam? A “favela” invadiu mesmo o puxadinho New York City Center, com sua laje UCI. Gostei: poderia ficar com o perfume 40 graus do Rio fausto-fawcettiano, muito além do melhor que a tal ascensão da Classe C já nos proporcionou. Novamente que nada: a garotada rica migrou para o Rio Design Barra, cujo cinema tem até estranha sala VIP 40 reais, “exclusiva” como o Facebook de tempos atrás.

Porém, todo mundo já percebeu: o Facebook orkutizou. Agora posso me sentir bem por lá (os ricos vão ter que se esconder em algum submundo criptografado do Anonymous?) Mesmo assim continuo implicando: o Facebook (700 milhões de cadastrados!) parece ter projeto para colonizar a internet, até que não reste mais nada além de sua rede social, até que vire o cibermundo todo e ninguém possa mais escapar de seus muros, pois não existiria nada do ladinho de fora. Então preciso lembrar, para não ficar só na reclamação, que ainda há muita vida além do jardim, que deve ser preservada para garantir a biotecnodiversidade da rede, fonte – a única sustentável – de sua riqueza.

Talvez seja por aí mesmo o caminho da resistência, radicalizando essa analogia com a militância ecológica (tão útil quanto aquela outra analogia, urbanística, comparando a internet livre com as ruas “tradicionais” de uma cidade, não cercadas – cujo comércio corre perigo diante do sucesso murado dos shoppings). Precisamos de produções e consumos conscientes também em nossa vida digital. Dá mais trabalho levar a sacola para o supermercado ou investigar a autenticidade do certificado que nos diz que aquele produto não contribui para a degradação ambiental/social? Claro que dá. Mas não adianta: as coisas boas da vida dão trabalho mesmo, e nessas coisas está incluída a transformação do mundo em lugar menos chato.

Na hora de consumir, algumas ponderações alegres são necessárias. Começarei citando exemplos banais. Já que na coluna passada falei dos browsers: gosto mais do Chrome. Porém, não suporto a ideia de uma internet controlada pela empresa Google. Então, uso a nova versão do Firefox (mesmo que seja mais pesada para meu computador), parte do trabalho da Fundação Mozilla, tudo desenvolvido na melhor tradição do software livre. Na hora de lançar o blog, por que usar os serviços comerciais de um Blogger, por que não usar os softwares também livres do WordPress? Não por ser uma escolha politicamente correta, mas por ser um serviço melhor mesmo, muito mais “customizável”, onde os controles ficam em nossas mãos. Isso exige um pouco mais de dedicação para aprender como tudo funciona? Não vou enganar ninguém: a resposta é sim – porém, as vantagens depois do aprendizado são imensas, até como exercício aeróbicos para nossos neurônios subutilizados.

Há tarefas necessárias que dão mais trabalho. Por exemplo: ler Termos de Uso e Políticas de Privacidade de todos os serviços que usamos na rede. Há muitos absurdos nas entrelinhas. Ou explícitos nos parágrafos de maior destaque. Por exemplo: ao concordar com os termos de serviço do Farmville, aquele joguinho inocente, o usuário dá para a empresa Zynga a licença “perpétua” de usar qualquer de seus conteúdos para comercializar, reformatar ou mesmo sublicenciar, abrindo mão, “sempre que as leis aplicáveis permitirem”, inclusive de direitos morais. Bobagem? É só um passatempo de crianças? Veremos… Claro, não podemos contratar advogados a cada vez que utilizarmos um novo serviço. Mas assim estamos em desvantagem, pois as empresas têm sempre advogados poderosos escrevendo esses contratos. Precisamos nos unir em organizações de defesa do ciberconsumidor (que quase sempre é também um ciberprodutor) para fazer valer outros direitos.

Precisamos também – isso é inevitável – dedicar algum tempo para aprender não apenas o juridiquês, mas as questões que estão por trás de seus termos esotéricos ou de propostas de mudança de leis. Não dá para continuarmos fingindo que projetos como o Marco Civil da Internet, que esteve em consulta pública por tanto tempo e agora enfrenta labirintos legislativos, é coisa de especialista. Ali está sendo decidida parte essencial de nossas vidas futuras, atualizando garantias de nossas liberdades. Outros temas são bem mais cabeludos, e nem por isso os “leigos” devem deixar de formar opiniões sobre eles. Como o debate sobre a “neutralidade da rede”, que envolve pesados interesses de telefônicas que gostariam de selecionar, com preços e velocidades diferentes, os dados que chegam até nós pelos seus cabos. Ou pelo ar. E aí chegamos à questão essencial da democratização da utilização do espectro eletromagnético, onde circulam nossos dados. Mas isso é assunto de sobra para divertidas próximas colunas.

direito autoral

27/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 09/07/2010

 

Até 28 de julho, está em Consulta Pública a proposta de revisão da atual Lei de Direitos Autorais, lançada pelo Governo Federal, por meio do Ministério da Cultura. Todos podem participar. É só se cadastrar no site do MinC, fazer críticas, propor melhorias. Seria uma pena se pessoas ou instituições com opiniões divergentes não participassem do processo, alegando de antemão que tudo que o MinC propõe é “dirigista”. A proposta governamental é explícita quanto a seus objetivos: “incorporar um leque amplo e diversificado de sugestões com vistas a permitir o aprimoramento das políticas públicas e reduzir as possibilidades delas incorrerem em erros.” A recente discussão pública sobre o Marco Civil da Internet foi exemplo de mudança clara da visão inicial a partir das críticas feitas por vários grupos e indivíduos. Em editorial, a Folha de S. Paulo reconheceu: “O documento sofreu mudanças -e melhorou- ainda nesta etapa.” Conclusão: “O governo deve enviar o projeto de lei ao Congresso nas próximas semanas. Haverá oportunidade para aperfeiçoamentos na Câmara e no Senado, mas o texto, em linhas gerais, é satisfatório.” O mesmo pode acontecer com a Lei dos Direitos Autorais, se a sociedade assim desejar. Nada ainda está definido. Tudo pode mudar.

É um sinal muito positivo que um debate complexo, polêmico e sofisticado como esse, central para os destinos da cultura contemporânea, possa estar acontecendo de forma tão aberta e avançada no Brasil, dando exemplo para outros países. Em artigo publicado há poucas semanas no Observer, John Naughton – professor da Open University britânica – afirma: “nossas leis de copyright estão agora tão risivelmente fora de contato com a realidade que estão caindo em descrédito. Ela precisam urgentemente serem reformadas para se tornarem relevantes para as circunstâncias digitais. O problema é que nenhum de nossos legisladores parece compreender isso, então isso não vai acontecer tão cedo.” Temos aqui oportunidade e legisladores para fazer isso acontecer em breve. Por que não aproveitar? Por que se preocupar com intrigas pequenas, quando é possível fazer algo grande? Ou continuo esperando demais do Brasil?

A reflexão sobre os direitos autorais é uma das aventuras mais interessantes do pensamento humano. Sua história, que se confunde com o desenvolvimento da própria noção de autor, não começou hoje, nem vai ter ponto final agora. Vale a pena voltar a seus primórdios, citando novamente o texto de 1813 do nada stalinista Thomas Jefferson, explicando a opção da lei americana por diferenciar propriedade intelectual de propriedade de objetos físicos: “Se a natureza fez alguma coisa menos suscetível que todas as outras de ser transformada em propriedade exclusiva, essa é a ação do poder de pensamento chamada idéia, a qual um indivíduo pode exclusivamente possuir apenas enquanto mantê-la para si mesmo; pois no momento em que é divulgada, ela se força na possessão de todos, e quem a recebe não pode dela se desfazer. […] Aquele que recebe de mim uma idéia, recebe a instrução toda sem diminuir a minha; como aquele que acende a vela na minha recebe o fogo sem me escurecer.” Por isso ter um carro é diferente de ter um livro. Se alguém rouba meu carro, fico sem o carro. Mas se alguém me rouba um livro já lido fico sem o objeto de papel, porém seu conteúdo continuará presente em minha memória, já misturado às minhas próprias idéias, gerando novas idéias impulsionadas pela leitura.

Um carro não cai em domínio público. O objeto livro também não: pode ser herdado por várias gerações. Mas o conteúdo do livro passa a ser propriedade coletiva depois de determinado tempo, podendo ser usado por todos, em nome do bem comum. A lei de copyright seria uma concessão que a sociedade dá para os criadores poderem continuar criando, tendo por um tempo o monopólio do uso comercial dos seus trabalhos. Isso: por um tempo (na época de Jefferson, 14 anos). Depois voltariam necessariamente para o uso coletivo. A idéia de direito de autor, mais européia, é um pouco distinta, mas gera questionamentos semelhantes. Victor Hugo, por exemplo, considerava a possibilidade de que o direito das obras artísticas pudesse passar para os herdeiros dos seus criadores uma “idéia caprichosa e bizarra de legisladores ignorantes”. Ninguém precisa concordar com ele: suas palavras nos lembram que nunca existiu consenso neste debate, mesmo entre criadores que poderiam lucrar com isso.

Imagine o que Hugo e Jefferson pensariam da época pós-internet, quando meu fogo pode iluminar a vela de criadores de todo mundo num piscar de olhos, quando o raro se tornou abundante através cópias digitais baratas e perfeitas, quando o sampler já é há décadas motor da criatividade musical. Como diz John Naughton: para acabar com esses “problemas” é preciso desligar a internet. Ou como diz o editorial da Folha: “A insegurança jurídica […] não é desprezível. Criadores e gestores de conteúdo, desde o simples blogueiro aos maiores portais, encontram-se desprotegidos.” E também artistas, e governos, e toda a indústria cultural. Por que não tentar inventar a nova proteção, adequada aos novos tempos? A atuação de Gilberto Gil como ministro criou, dentro e fora do Brasil, a expectativa de que possamos apresentar, se não soluções definitivas, pelo menos novas maneiras de encarar os problemas colocados pela digitalização da cultura. Deveríamos aceitar esse desafio.