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realidade e ilusão

26/07/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 25/07/2014

Diagnóstico simples: perdi a sintonia com a nação. Não tenho a menor paciência para escrever sobre os assuntos do momento, aqueles debatidos por todo mundo nas redes sociais. Detesto o tom histérico que domina a tsunami opinativa, com linchamentos coletivos esquecidos na semana seguinte. Mais importante: tenho maior interesse por outros assuntos, que – apesar de vitais – não são tratados com a devida atenção. A missão desta coluna é assumidamente um tanto solitária: divulgar novidades conhecidas por pouca gente. Torcer para que possam inspirar outras inovações. Sem pressa. Sem esperar que se transformem em trending topics.

Por isso relutei em escrever sobre a Copa. Nunca acompanhei nenhuma Copa. Sempre fui considerado ET por causa disso, mas consegui driblar a pressão social avassaladora para mudar de comportamento (o que não me faz melhor ou pior do que ninguém). Gosto do clima de festa de multidão, assim como de réveillon e carnaval, mas assistir a  jogo do início ao fim para mim é tortura. Por isso, antes do início da Copa, até publiquei por aqui texto que encarava a ausência de ruas enfeitadas como indício, pessoal e socialmente libertador, de diversidade cultural, ou desenvolvimento econômico nacional. Claro que – é minha tese – a paixão por futebol sobreviverá, mas sem precisar ser imposta para toda população. O país não seria mais uma vila, comandado por sentimento homogêneo.

Porém. quando os jogos começaram, fiquei com vergonha de abordar outros temas nesta coluna. Assumi meu erro de avaliação precipitada: imperava clima de ordem unida emocional, com a nação presa na estreita montanha russa de alegrias e tristezas coletivas. Com o final da Copa (e escrevendo novamente fora de época), assumo o erro do erro (repito: viva o erro!): tudo aquilo já parece ter acontecido num passado distante. O país na realidade se revelou mais diversificado do que aparentava. A derrota de 7×1 não vai virar, espero, uma final de 1950 (esse mané “trauma” já deu o que tinha pra dar). Pode ser esquecida rapidamente como a polêmica que encantou o Facebook da semana passada?

Talvez, afinal, eu não tenha perdido a sintonia com o Brasil. Pois não existe mais “o” Brasil, ou “um” povo brasileiro, interessado nas mesmas coisas ao mesmo tempo (por exemplo: na época da Copa houve outros megaeventos país afora, como o São João de Campina Grande e Caruaru, ou o Festival de Parintins, isso só para citar os mais óbvios). A grande mídia e as grandes marcas (que sustentam o mercado de mídia com publicidade) parecem não ter se dado conta dessa grande transformação ou não sabem lidar com um mundo cada vez mais complexo, com múltiplos interesses simultâneos. Por isso precisam bombar artificialmente uns poucos acontecimentos para atrair à força a atenção daquilo que antigamente se chamava grande público. E o investimento é tão grande que vira profecia autorealizável: impossível não criar manchetes ou comoções populares, incluindo recordes de mensagens nas redes sociais. Mas cola menos e menos: um jogo do Brasil sua para dar 40 pontos de audiência na TV aberta.

Se essas minhas insinuações fazem algum sentido, o tal “choque de realidade” que o Brasil vive depois do final da Copa deve ser interpretado também de maneira pouco habitual. A realidade é bem mais rica, com surpreendentes micropossibilidades plurais, do que a promessa de alegria uniforme gerada pela “ilusão” de um evento de massa, reproduzido em todos os “canais”. Nada contra ilusões. Canto com Marisa Monte, “verdade, uma ilusão”. Ou sigo Nietzsche no seu sermão contra a prevalência que Sócrates dá à verdade em detrimento da ilusão. Apenas me entedia a ilusão única, hegemônica. Ilusões sempre há de pintar por aí. Elas levam o mundo adiante, em muitos caminhos conflitantes diferentes.

Um tema sempre recorrente nesta coluna: precisamos desenvolver novas estratégias para lidar com um mundo que agora tem abundantes recursos de comunicação e produção cultural. Isso não é otimismo tolo. Já que falei de Nietzsche, vale a pena repetir estas suas perguntas, que ganham nova pertinência para nosso cibermomento: “Existe, porventura, um pessimismo da força? Uma inclinação intelectual para o duro, o mal, o problemático da existência, proveniente de saúde transbordante, de plenitude de existência? Há, por ventura, um sofrimento em virtude de superabundância?” Se há necessidade de pessimismo, que pelo menos seja um pessimismo transformador, que tire proveito da – e incentive a – diversidade trágica (e festiva) da vida.

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Tentando fugir da Copa, escrevi aqui sobre Capicua, rapper portuguesa. Boa surpresa: ela se apresenta no Rio na próxima semana, no Terra do Rap, festival que vai produzir até uma mix tape ao vivo, misturando de verdade  Angola, Brasil e Portugal.

transmídia

28/06/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 27/06/2014

Errei. (Viva o erro!) Logo no início da Copa, escrevi que o número muito pequeno de ruas enfeitadas de verde e amarelo indicava mudança dramática de mentalidade no Brasil. Não haveria mais evento capaz de unificar a nação. Passaríamos a viver numa fragmentação “desenvolvida”, com oferta abundante de grandes emoções minoritárias. Não foi o que aconteceu. Mais uma vez o Brasil parou por causa do futebol. Não há espaço para outros assuntos, mesmo os mais surpreendentes.

Por exemplo: pelo que consegui apurar, nunca na história deste país houve interrupção tão longa na exibição de uma telenovela como a que aconteceu em “Geração Brasil” na semana passada. No lugar de oito capítulos só foram ao ar pílulas de alguns minutos, em horário diferente do habitual. Durante esse período foi feita uma das experiências mais radicais, em qualquer lugar do mundo, em termos daquilo que é chamado de “transmídia”. Como a imprensa, tomada pela Copa, não acompanhou os resultados, sinto obrigação – para que outras pessoas possam se animar a propor coisas semelhantes – de dar meu depoimento, mesmo sem distanciamento, como membro da equipe da novela.

Praticamente a mesma equipe – capitaneada pelos autores Filipe Miguez e Izabel de Oliveira, pela diretora Denise Saraceni e, do lado da internet, por Ana Bueno – já tinha se empolgado com a maneira como o público respondeu ao “vazamento” do clipe das Empreguetes de “Cheias de charme”. Acompanhei tudo em tempo real, final de capítulo de sábado. Quando o link completo para o clipe apareceu na internet da novela, o público entendeu imediatamente que poderia ver a mesma coisa na internet “de verdade”. Os servidores não estavam preparados para tantos acessos simultâneos, tanto que demorei para conseguir abrir o link no meu computador.

Na segunda-feira, quando “Cheias de charme” recomeçou, já eram milhões de “views”. Havia até centenas de paródias do clipe circulando em várias redes sociais. Não esperávamos tanto sucesso. Outras experiências cross-plataformas aconteceram mundo afora. Mas nunca houve nada tão propriamente popular. Participei de alguns congressos internacionais sobre “convergência” de mídias. Só ouvia elogios para “cases” bem modestos, em termos de alcance de público, como provas de bom futuro para esse tipo de experiência. Quando eu citava os números da novela, pouca gente acreditava. Mesmo no Brasil, aquilo não foi tratado com a atenção dispensada para inovações da mesma importância. Talvez pouca gente tenha se dado conta do ocorrido. Ou prefira continuar pensando novela como ambiente de criação ultrapassado, nunca de vanguarda. (Gente “séria” só elogia série americana.)

Geração Brasil deu um passo adiante. No capítulo anterior à interrupção da Copa, dois personagens, Davi e Manu, participando de um reality show transmitido pela Parker TV, canal a cabo que só existe na ficção, lançaram um aplicativo para smartphones que precisava virar hit. Tudo bem metanarrativa: o público “real” deveria se transformar também em personagem, passando a baixar o app como se fosse o público da Parker. O desafio possuía aspectos mais complexos. Em “Cheias de charme”, era necessário apenas apertar o botão de “play” para ver o clipe. Agora, além da instalação, seria preciso também produzir vídeos segundo os desafios propostos em cada pílula diária da novela (alguns dos vídeos do público eram exibidos no dia seguinte, passando a fazer parte da trama “real” da novela).

Foi risco enorme de “flop” ou “fail”. Nenhuma outra produção da TV mundial tentara isso antes. A novela estava apostando no crescimento recente do uso de smartphone no Brasil. Somos o quarto mercado consumidor desse novo tipo de telefone, depois da China, dos EUA e da Índia. Calcula-se que até o final de 2014, teremos 41 milhões de usuários de smartphones no país. Mas quem é o usuário típico dessas novas máquinas? Vê novela? Está disposto a participar de uma brincadeira proposta pela novela das 7?

Continuo impressionado com a voracidade da adoção popular das novas tecnologias por brasileiros. “Filma-ê”, o app de “Geração Brasil” foi baixado mais de 250 mil vezes. Esse número, na semana do lançamento (e na semana de início da Copa, com o país parado para a Copa), significa sucesso estrondoso em qualquer mercado, para qualquer tipo de aplicativo. Não fico contente por ser proposta de novela na qual colaboro. O entusiasmo vem da abertura de espaço para mais experimentação no futuro, entre o produto mais “mainstream” da nossa TV, a novela, e a aventura da tecnologia de ponta. Quero acreditar, no espírito da Copa, que não existe laboratório melhor do que o Brasil para testar essas coisas. Povo fominha de inovação: esse é estereotipo bom de carregar/viralizar, pois torna tudo imprevisível.

grande honra

12/04/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 11/04/2014

Domingo o “Esquenta!” inicia sua quarta temporada. É o programa mais longevo de todos que ajudei a criar na TV. “Programa Legal”, “Brasil Legal”, “Central da Periferia”, entre outros, tiveram vida curta. Não por problemas de audiência. Uma das características do grupo com o qual trabalho há mais de duas décadas na Globo é dar o recado e partir para a próxima. Não conseguimos ficar parados no mesmo lugar. Somos viciados em novas ideias. Talvez por isso nossos programas anteriores sempre envolveram muitas viagens. Com o “Esquenta!” é diferente.

Pela primeira vez não foi projeto nosso, apresentado para a TV. Foi encomenda: programa dominical de auditório, horário de almoço, no verão. (A música de abertura, de Arlindo Cruz e Gilberto Gil, canta: “Regina de janeiro, fevereiro e março”.) Topamos o desafio. Estávamos acostumados com as variações climáticas das ruas brasileiras. O que fazer para o ar condicionado do Projac não esfriar nossa mensagem? Pensamos cada gravação como grande festa, que só funciona quando junta turmas heterogêneas (ou pelo menos: só gostamos desse tipo de festa). Muitas vezes perdemos o controle do estúdio: a plateia nos surpreende agindo como diretor maluco, fora do roteiro. Pensamos: deu certo, as pessoas estão aqui de verdade.

Na segunda temporada, ficamos no ar até o São João. Na terceira, começamos em novembro e só paramos em dezembro do ano seguinte. O “Esquenta!” é laboratório onde testamos outros mundos possíveis. Apresentamos: FHC conversando sobre drogas com Marcelo D2; José Pacheco, o português da Escola da Ponte; Afrika Bambaataa, o inventor do hip hop; Gustavvo Lima com a Folia de Reis dos seus pais e o amigo Neymar; a OSB tocando a Sétima de Beethoven; as performances do Opavivará; Marina Silva explicando o que é desenvolvimento sustentável; um dia com a obra de Glauco Rodrigues no cenário e figurinos; a primeira reunião do funk ostentação paulistano com o DJ Marlboro; Kleber Mendonça Filho e Caetano Veloso falando sobre “O som ao redor”; Regina lendo poema de Murilo Mendes e Fernanda Montenegro de Jorge de Lima; Péricles, ex-Exaltasamba, descobrindo maravilhado o filósofo Mangabeira Unger. Esses são apenas alguns momentos marcantes, que listo de memória, sem consultar os arquivos. Tudo no meio da chacrinha que quase se chamou “Pagode da Casé”.

Não pinço cenas intelectualmente corretas para dourar a pílula do “Esquenta!”. O programa é assim mesmo. Estamos ainda aprendendo a tirar partido de todas as possibilidades do auditório, que muitas vezes é encarado como a parte menos nobre da TV (frequentemente elogiada pela crítica apenas quando se parece com cinema ou teatro, e finge que não é TV). Nesta temporada vamos até fazer edições ao vivo, saindo de nossa zona de conforto de horas de edição radical. Dá para inovar muito no velho formato. Até porque nossa aventura semanal de convivência com elenco tão diverso, que tem visões de mundo e de Brasil distintas, também é pessoalmente transformadora. Cada um vai deixando de lado preconceitos, um ensinando ao outro (incluindo o público de casa) coisas que seriam inacessíveis caso ficássemos em nossos mundinhos. Lembro por exemplo da Nathalia Rodrigues, pessoa com deficiência visual e moradora do Complexo do Alemão, que apareceu na plateia do “Esquenta!” e hoje participa como comentarista nos programas, trabalhando também em nossa produção. Toda a equipe precisou se adaptar a outra percepção do cotidiano, com novos problemas e soluções, seguindo suas lições.

Somos então a família “Esquenta!”. Não é fácil ser uma família, como todos sabem. Principalmente uma família tão grande, bagunçada e tropicalista assim. Por isso o tema do programa de estreia da nova temporada é justamente família. Bom momento para debater esse assunto. Preste atenção: foi aberta enquete no site da Câmara dos Deputados com a pergunta: “você concorda com a definição de família como núcleo formado a partir da união entre homem e mulher, prevista no projeto que cria o Estatuto da Família?” Já teve mais de 700 mil votos, o que demonstra como o tema é de grande interesse. O projeto do Estatuto não inova: essa definição já está na Constituição (ver art. 266), inclusive com sua extensão para “comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”. São apenas esses os tipos de família que temos no Brasil? O “Esquenta!” oferece seu auditório para ajudar o país na busca pelas melhores respostas.

PS: Sempre em lugares “inteligentes” sou apresentado como antropólogo, autor de livros. Estranho: meu trabalho principal, de tantos anos, é ignorado. Então um pedido: está liberado, podem dizer que sou criador de TV muito popular. Nenhuma vergonha; é grande honra.

Ginga

12/11/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 04/11/2011

Ginga, no meu “Aurélio”, tem quatro significados bem diferentes uns dos outros: tipo de remo; caneco de cabo longo; gíria para bicicleta; e, finalmente, movimento de corpo dos capoeiristas. Hoje, sabemos que a palavra escapou das rodas de capoeira para denominar várias espécies de espertezas, tanto corporais quanto intelectuais, e artísticas. Porém, mais do que esse sentido vago, em breve os dicionários precisarão conter outra definição, que pode ser a mais utilizada no futuro: Ginga já é nome do programa de computador (na verdade uma ponte entre vários programas, chamada de “middleware”) que, assim espero, vai gerenciar as funções interativas da TV digital no Brasil e em várias outras partes do mundo.

Se o panorama atual não se modificar, se o governo brasileiro e empresas de televisão (tanto produtoras de conteúdo quanto fabricantes de aparelhos) em atuação no Brasil não tomarem providências rápidas, dicionários de espanhol, inglês ou japonês vão incluir essa palavra com sua definição informática antes dos pais-dos-burros da língua portuguesa. Mesmo tendo o Ginga sido desenvolvido no Brasil, mais especificamente na PUC-RJ e na UFPB, e ser a parte mais criativa – provavelmente a única realmente brasileira – do Sistema Brasileiro de Televisão Digital (SBTVD), aqui ele ainda é visto com desconfiança, e precisou – como várias criações tupiniquins – fazer sucesso no exterior para ganhar respeito interno.

Como “disclosure” preciso revelar minhas conexões com dois dos principais pais do Ginga: Guido Lemos, da UFPB, é meu primo, e Luiz Fernando Gomes Soares, da PUC-RJ, é grande amigo. Mas amizade e parentesco foram motivos de orgulho bem secundários quando ouvi a notícia de que a União Internacional de Telecomunicações (UIT), agência da ONU para encarregada de desenvolver padrões técnicos para que as várias redes mundiais possam operar conjuntamente, transformou o Ginga em recomendação para todas as aplicações de TV via internet. Não conheço outra tecnologia brasileira que tenha se tornado padrão mundial, com selo da UIT ou qualquer outro. É conquista para ser celebrada por quem acredita num futuro menos periférico para o Brasil nessa área totalmente estratégica da produção de conhecimento. Podemos sim deixar de ser montadores de tablets ou geringonças semelhantes inventadas “lá fora”, e passar a cuidar também da inovação científica mais essencial, aquela que vai ser usada nos tablets do futuro.

Convenhamos: a decisão da UIT foi muito sensata, nada surpreendente. O Ginga tem muitas vantagens em relação a outros softwares, desenvolvidos em outros países, que querem solucionar os problemas da interatividade na TV. Primeiro: foi produzido em código aberto e totalmente compatível com vários sistemas diferentes, da TV aberta, da TV em celulares, da TV conectada (não importa qual sua marca e loja de apps), o da TV via internet e o que mais vier pela frente. Além disso, como é software livre, gratuito, não exige pagamento de royalties. Se a TV digital brasileira escolhesse outro padrão, teríamos que pagar – para a empresa que o desenvolveu – royalties a cada aparelho que utilizasse o tal padrão. Com software fechado, ou proprietário, ficaríamos ainda na mão da sua empresa desenvolvedora, para toda modificação ou upgrade.

Outra grande vantagem do Ginga é sua simplicidade. Já participei de cursos de Ginga para grupos de adolescentes de favelas cariocas. Todos aprendem com facilidade sua linguagem de programação NCL (que tem como linguagem de script LUA, linguagem desenvolvida também na PUC-RJ, que hoje é a mais utilizada mundo afora na produção de jogos eletrônicos, inclusive no World of Warcraft, o game online mais popular), e começam imediatamente a produzir vídeos interativos. Sim, a interatividade proporcionada pelo Ginga não é só plantar widgets e apps em torno do conteúdo principal (o filme, a novela, o programa de auditório etc.): podemos criar interação dentro da imagem do vídeo. Pense num “Você decide” levado às últimas consequências, com telespectadores, decidindo o rumo da ação a cada cena. Essa é apenas uma das possibilidades.

Tudo isso é muito novo. Poucas experiências de escala estão sendo feitas no mundo com tal grau de interatividade. O Brasil tem tudo para sair na frente, inventando novos formatos de entretenimento, novos gêneros de narrativa, que nem imaginamos ainda quais sejam. Poderíamos nos tornar líderes de uma Hollywood interativa futura. Vários europeus já procuraram a PUC-RJ para fazer testes por aqui – lá cada país quer padrões diferentes, o que torna o ambiente técnico tão fragmentado que impossibilita testes para saber como a interatividade funcionaria se usada por muita gente. Se o Brasil não tiver a coragem para seguir esse caminho, o caminho que apontou para o mundo, outros povos farão o que temos que fazer. O SBTVD já foi adotado em 13 outros países. Na Argentina, por exemplo, o Ginga é parte integrada de todos os conversores (set-top box) para as TVs digitais. O cinema argentino vive fase de grande criatividade. Os hermanos vão nos dar lições de cinema interativo com nossa ginga? Seria pura ironia pós-futebolística.

Luiz Fernando Gomes Soares, mais conhecido como LF, disse em entrevista que ao defender o Ginga em Brasília, ouviu de um parlamentar que o Brasil deveria se preocupar é com exportação de frangos e laranjas. Nada contra frangos ou laranjas. Mas é só para isso que existimos no mundo? A gente não quer só vender comida.

Século McLuhan

07/05/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29-04-2011

Meu amigo André Stangl, que conheci nos tempos pioneiros dos estudos ciberculturais baianos e hoje vive em São Paulo, manda avisar: Marshall McLuhan está de volta aos meios universitários paulistanos, depois de anos numa certa berlinda. Mais precisamente: segunda e terça-feira será realizado “O século McLuhan”, evento realizado pelo Atopos, centro de pesquisa “fora-de-lugar”, mas de certa forma baseado na ECA da USP (inscrições em www.atopos.usp.br/mcluhan). O leitor pode se perguntar: qual século, o XX ou o XXI? Qualquer um. Tom Wolfe, na introdução para o livro “Understand me” (cujo título é uma brincadeira com seu clássico “Understand media” e que foi publicado no Brasil, pela Ediouro, como “McLuhan por McLuhan”), afirma: “Não consigo pensar em outra figura que tenha assim dominado um campo de estudo inteiro na segunda metade do século XX. Na virada do século XIX e nas primeiras décadas do XX, havia Darwin na biologia, Marx na ciência política, Einstein na física, e Freud na psicologia. Desde então houve apenas McLuhan nos estudos da comunicação”. Outras pessoas dizem que as profecias de McLuhan só se tornarão realidade, ou dominarão nossa realidade, agora depois do ano 2000. Mesmo assim, o evento se refere a um outro século, bem mais preciso: em 2011 comemoramos os 100 anos de nascimento do cara que, entre outras coisas, nos disse que o mundo se transformou numa aldeia global e que o meio sempre foi a mensagem.

Fiquei surpreso ao ser lembrado que McLuhan nasceu em 1911. Isso significa que quando publicou suas obras mais inovadoras e de maior impacto já tinha mais de 50 anos e cerca de três décadas dando aulas. De certa forma, livros como “A galáxia Gutenberg” ou o “Understanding media” parecem ser trabalhos de uma mente mais jovem, capaz de comprar qualquer briga sem temer perder respeitabilidade conquistada em já longa carreira acadêmica. McLuhan permaneceu jovem audacioso até o final de sua vida, em 1980. Foi um desses muleks eternos como John Cage, Miles Davis, Mário Pedrosa, para quem a idade transmite não peso intelectual, mas leveza para encarar o mundo ainda com mais audácia e liberdade. É possível comprovar isso assistindo os vários vídeos com aparições de McLuhan na TV dos anos 60 e 70 que estão disponíveis na internet. Uma alma bondosa, talvez anônima para evitar problemas relativos a direito autoral, nos fez o favor de compilar todos essas imagens num único site para a comemoração do centenário. Procure por “Marshall McLuhan Speaks” em qualquer ferramenta de busca. Além da introdução de Tom Wolfe, que começa com a aparição de McLuhan no filme “Noivo neurótico, noiva nervosa” de Woody Allen, podemos ver clipes de suas respostas, divididas por assunto, que revelam como sua maior diversão era causar polêmicas, ou falar aquilo que fundia a cuca de seus interlocutores, que mesmo com vontade de não levá-lo à sério acabavam se deixando encantar pela convicção maluca, e inteligência impressionante, do mestre pop.

Quem ainda estiver desconfiado, talvez por causa dos ternos de McLuhan (afinal o meio, nesse caso corpo e roupa, passa muita mensagem), deve visitar o UbuWeb (viva Kenneth Goldsmith! Todo mundo leu sua entrevista no Prosa & Verso? Aula obrigatória…), fechar os olhos e escutar os arquivos com a gravação do LP “The medium is the massage”, lançado por McLuhan pela Columbia Records no final dos anos 60, portanto quando ele tinha quase 60 anos. O que está ali registrado é uma das experiências de colagem sonora mais radicais e psicodélicas da história da indústria fonográfica. A Wikipedia diz que a produção foi de John Simon, que já assinara a beleza minimalista de “Songs of Leonard Cohen”. Com a “massagem midiática” o espírito era de total maximalismo, imagino que uma tentativa de registrar para a posteridade como podemos aproveitar melhor aquilo que McLuhan chamava de “espaço acústico”, onde tudo convive ao mesmo tempo agora, sem centro e periferia, sem a linearidade da escrita e do campo visual.

Se possível, e os neurônios deixarem, esculache a audição lendo ao mesmo tempo a entrevista que McLuhan deu para a Playboy em 1969. Kevin Kelly (tenho que escrever uma coluna sobre este outro cara urgentemente), no blog que era apenas para preparar seu maravilhoso e já-lançado livro “The technium” mas onde há novos posts e tomara que nunca tenha fim, disse que McLuhan não escrevia: deitava no sofá e começava a falar seus deliciosos absurdos, que eram transcritos por alunos. Era um feiticeiro da oralidade, uma máquina de produzir slogans, uma campanha permanente de marketing para seu próprio pensamento. Por isso se dava tão bem em entrevistas. Na da Playboy, bem longa, estava especialmente inspirado. A primeira resposta, eu gostaria de dar hoje, para explicar o que tento produzir aqui nesta coluna: “Estou fazendo explorações. Não sei onde elas vão me levar. Meu trabalho é desenhado para o objetivo pragmático de entender nosso ambiente tecnológico e suas consequências psíquicas e sociais. Mas meus textos constituem o processo mais que o produto completo da descoberta; meu propósito é empregar os fatos como sondas investigativas, como meios de insights, de reconhecimento de padrões, mais que usá-los no sentido tradicional e estéril de classificação, categorias, contêineres. Eu quero mapear novos terrenos e não cartografar velhas fronteiras.”