Miley Polly Jonas Crowley etc.

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 10/10/2014

 

A coluna estava de férias quando Miley Cyrus cantou no Brasil. Peço perdão pelo assunto antigo. Na verdade, nem quero falar sobre esses shows, mas sobre polêmica ainda mais remota, que já deve estar escondida em lugar inacessível das “timelines” da maioria. Cada vez mais rápido as pessoas esquecem acontecimentos “marcantes”, mesmo quando bateram recordes de retuitagem. Então talvez seja necessário ajudar a memória dos leitores.

No show de premiação do MTV Video Music Awards 2013, a apresentação de Miley Cyrus, com roupa de látex e bunda empinada simulando movimentos sexuais (uma dança conhecida como “twerking”), foi comentada em tempo real por 360.000 tweets por minuto, desbancando a performance até então campeã – neste novíssimo quesito – de Beyoncé no Super Bowl. Grande parte do público se declarava chocado: afinal aquela era drástica mudança de imagem para uma artista que até então participara de coreografias bem mais inocentes como Hannah Montana, brinquedo multimídia da Disney. Pais se revelaram preocupados com o trauma que a súbita transformação poderia causar nas mentes de suas filhas pré-adolescentes, que tinham em Miley Cyrus modelo de recato e boa educação, at´p religiosa.

Com o lançamento de clipes cada vez mais explícitos, os 140 caracteres dos tuítes se mostraram insuficientes para expressar reações indignadas. Houve uma enxurrada de cartas abertas para Miley Cyrus, de procedências as mais variadas. A mais famosa foi assinada por Sinead O´Connor (que no mundo da infância da internet já tinha causado várias polêmicas, como quando rasgou fotografia do papa João Paulo II, em edição do “Saturday Night Live” de 1992), com o seguinte apelo pessoal: “não deixe que a indústria te transforme numa prostituta.” A culpa recairia nos homens gananciosos que controlariam, sem escrúpulos, a carreira das jovens cantoras.

Cartas abertas para Sinead O’Connor, como a escrita por outra cantora, Amanda Palmer, com pontos de vista pós-feministas, afirmavam o direito de Miley Cyrus, ou de qualquer outra mulher ou garota, de usar seu corpo segundo sua própria vontade, sem ser acusada de estar sendo manipulada por fantasias e modelos de negócio masculinos. O debate ficou tão acalorado, e as interpretações tão sofisticadas, que a atriz Ann Magnuson publicou uma carta aberta “para acabar com todas as cartas abertas”, cheia de palavrões, acusando suas autoras – é a minha interpretação de texto hilário – de estarem sendo manipuladas por provedores de internet machistas.

Contrariando a ordem de Ann Magnuson, Polly Superstar – que começou sua carreira como estilista de roupa de látex e é anfitriã do Kinky Salon, festa fetichista de San Francisco (agora copiada em várias outras cidades do mundo) – escreveu mais uma carta aberta, desta vez não destinada para uma pessoa específica, mas para o Sexo. Sim, começa desta maneira: “Querido Sexo”. Ninguém pode acusar sua autora de puritana, ou conservadora, ou moralista. Polly já quebrou todos os barracos. Por isso fica comovente encontrar na sua carta frases como: “Oh Sexo, sei que é confuso”; “você quer usar seus sapatos de vadia, seu espartilho, seu batom vermelho, mas isso significa que você está sucumbindo à pressão?”; “Sexo, você vive uma crise de identidade”.

Parece a crise de algumas escolas cariocas que tentaram negociar limites para a altura do shortinho em sala de aula e depois tiveram que desistir quando garotas de 12 anos diziam que eram donas de seus corpos. Mas sim, sabemos que é confuso, muito complexo. Quando o telão do show de Beyoncé divulga trechos do discurso feminista da escritora Chimamanda Ngozi Achidie (que acaba de ter romance lançado no Brasil), quem pode dizer ao certo se aquilo é atitude libertária ou justificativa comercial? Ou os dois lados estão para sempre juntos e misturados?

Ouvi falar de Polly Superstar e sua carta aberta para o Sexo no programa de rádio “Expanding Mind” (disponível em podcast na internet), do meu amigo tecnoxamã Erik Davis (já foi tema de coluna por aqui). Lá também ouvi entrevista com Gary Lachman, guitarrista da primeira formação da banda Blondie e hoje um dos melhores historiadores do ocultismo contemporâneo, lançando uma biografia de Aleister Crowley. Ele comenta que Kevin Jonas, do Jonas Brothers (outra criação da Disney), tem foto famosa usando camiseta com foto de Crowley estampada. Outro retrato está pendurado na sala de ingleses famosos na National Gallery de Londres. É a pá virada no trono do “establishment”.

Qual o limite entre a contracultura e o mainstream careta? Como sair da “tradição de ruptura” nomeada por Octávio Paz. Tema para outra coluna, comemorando seu centenário.

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