Posts Tagged ‘Pará’

histórias do futuro

03/05/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 02/05/2014

Estou torcendo pela recuperação do Mestre Laurentino. (Nesta quarta-feira ele finalmente saiu da UTI.)  Há duas semanas, Vlad Cunha me deu notícia de sua internação com pneumonia, quase aos 90 anos. Fui transportado imediatamente para o dia, duas décadas atrás, quando o vi pela primeira vez, tocando gaita e cantando “Lourinha americana”. Parecia alucinação febril produzida pelo calor de Belém. Eu estava na plateia de festival de rock realizado numa estação de trem abandonada. Ao meu lado, garotos vestidos de preto. Depois de muito metal, sobe ao palco a banda Mangabezo (Vlad Cunha era um dos integrantes). No meio do show, surgiu convidado especial: Mestre Laurentino, elegantérrimo, cheio de anéis. Memphis era ali. E ao mesmo tempo, toda a história da música paraense também estava ali. Virei fã, fulminantemente. Poucos dias depois, entrevistei o Mestre na sua casa, muito pobre. Elogiei suas roupas. Ele fez questão de me dar uma camisa cheia de brilho, que está guardada e bem cuidada, como um dos melhores presentes da minha vida.

Essas alucinações bem reais são comuns ao redor do Ver-o-Peso. Não estou pensando nos telões de LED das festas de aparelhagem. Viajo para o passado, mais remoto, tendo como guia “A cidade sebastiana”, livro de Fábio Fonseca de Castro que descobri nas sempre surpreendentes prateleiras da Leonardo da Vinci (repito: minha livraria preferida, a mais cosmopolita do mundo). Sua publicação é de 2010, mas seu texto tem origem em dissertação de mestrado, com orientação de Benedito Nunes, defendida em 1995. Mesmo assim, não poderia ser mais atual, sugerindo maneiras inovadoras para pensarmos o futuro de nossas cidades e de todos os projetos de modernização no Brasil, ainda que a partir de história muito paraense.

Fábio Fonseca de Castro identifica “um modo periférico de participar da modernidade”, nostálgico, “marcado por uma aguda sensação de perda, por formas de saudade de um desconhecido que não foi vivenciado senão em pensamento” ou pela “pungência cotidiana de ‘ter-perdido-algo’.” É sempre uma saudade do futuro. Ainda no senso comum atual de Belém: “A ‘Era da Borracha’ está no futuro, não no passado. […] O passado é ulterior. A narrativa histórica pode, sim, ser lida como se fosse um sonho.” Sonho de quando éramos/seremos Brasil Grande, desenvolvido como o “Primeiro Mundo”. Lembrando (todos dados retirados de “A cidade sebastiana”): “entre 1860 e 1920 a população de Belém cresceu cerca de 1.200%”; “a renda interna da Amazônia cresceu, nesse período, 2.800%.” São tempos lembrados como magníficos, vertiginosos, encantados: trouxas e trouxas de roupas sujas “foram mandadas para Paris para serem lavadas”; o intendente Antonio Lemos “resolveu proibir as pessoas feias de circularem no centro da cidade”; as pessoas só atendiam o telefone em francês (“Oui… Qui la demande?… Un moment s’il vous plait…”), “ainda que o interlocutor falasse em português”; “conta-se que, ao redor do Theatro da Paz, [a administração Lemos] inventou um tipo de paralelepípedo revestido de borracha com o qual se evitava que os ruídos do trânsito prejudicassem os espetáculos.” Muita novidade na cidade ao mesmo tempo: arborização com mangueiras, serviço de bondes, matadouro, montanha russa, a loja de departamentos Cúpula de Malquistã, “uma lei que proibia esmolar em Belém.” Virou modelo de “civilização”.Visitando o Rio de Janeiro em 1904, Lemos ouviu de Pereira Passos: “Eu começo a fazer na minha cidade o que V. Excia. fez na sua.”

Foi bom (para quem?) enquanto durou? Em 1912, veio a “Queda”: falências em série, suicídios, dívidas colossais. Naquele que talvez tenha sido o mais famoso e pioneiro caso de biopirataria globalizada, o inglês Henry Alexander Wilkens “enviou 70 mil sementes de Hevea brasiliensis para Londres, alegando ao governo do Pará que serviriam para embelezar o Jardim Botânico de Kew e recebendo 10 libras por milheiro de sementes.” Todos nós sabemos onde foram parar: nas plantations da Malásia: “em 1919 a borracha oriental alcançou 90% do mercado mundial, desbancando, definitivamente, a concorrência da produção amazônica.” Resultado no imaginário local: Fábio Fonseca de Castro fala de um “passado-látex”, conjunto de “falas encantadas, e sebastianas” que incluem eternamente repetidas “saudades do que poderia ter sido mesmo sem ter acontecido.”

Talvez Mestre Laurentino com a garotada do rock pulando ao seu redor e depois a dança do treme do tecnobrega indiquem outro futuro. Fábio Fonseca de Castro escreveu outro livro, “Entre o mito e a fronteira”, com estudo da aventura da produção cultural recente de Belém. João de Jesus Paes Loureiro também tem indicações amazônicas preciosas. Mas isso fica para outra coluna, também no futuro.

Fábio Cavalcante

23/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 28/05/2010

Ouvi pela primeira vez a música de Fábio Cavalcante via Overmundo. Desde seu lançamento em 2006, esse site sempre me traz boas surpresas. Participei de sua criação. Frequento suas seções diariamente. Como a publicação é aberta para qualquer pessoa, e o destaque para cada colaboração é uma decisão coletiva, ninguém sabe o que vai encontrar em suas páginas a cada visita. O que existe de mais interessante no Overmundo não é o que está na home, numa determinada hora, mas sim a produção descentralizada de um já enorme banco de dados que revela nossa diversidade artística, sobretudo em seus aspectos “invisíveis” na grande mídia. Cinema no Piauí, quadrinhos no Maranhão, games em Santa Catarina? Tudo isso está no Overmundo. E apareceu por lá não porque um editor decidiu, mas sim porque um de seus milhares de colaboradores achou importante compartilhar a novidade. Mesmo sendo uma experiência pioneira, aberta mas com foco exclusivo na cultura brasileira “fora-do-eixo”, sem portanto os assuntos considerados mais “populares”, o site é um sucesso com cerca de 1 milhão de visitantes mensais. Muitas tentativas semelhantes, surgidas na ali no início da Web 2.0, falharam. O Overmundo continua firme, o que reafirma talvez uma aptidão nacional pela vida online.

Fábio Cavalcante começou a colaborar com o Overmundo em 2006. Publicou várias músicas, uma por uma. Mais recentemente organizou tudo por disco. A cada audição eu ficava mais confuso e fã. Parecia música eletro-acústica, mas tinha elementos de canção, salpicados de referências ao folclore paraense. Tudo isso misturado de forma bem pessoal, sem paralelo próximo com nenhum outro compositor, brasileiro ou não. Suas outras publicações no Overmundo iam aumentando minha perplexidade/admiração (já deve ter dado para perceber que cultuo esses sentimentos ambíguos). Um dia me deparei com seu texto teórico sobre a Doristi, “o nome de uma escala usada na Grécia antiga, e que serve de base para o sistema alternativo de organização melódico-harmônica dos sons” desenvolvida em disco, acompanhado por partituras. Também vi um vídeo de animação e ouvi várias gravações excelentes de bois-bumbás da cidade de Ourém, tudo produções de Fábio.

Sempre deixava meus comentários elogiosos nas colaborações, mas só estabeleci contato agora, para escrever este texto. Fiquei mais impressionado. Fábio tem 34 anos. Formado em música pela Universidade Estadual do Pará, onde hoje é professor. Ouviu atentamente tudo: de Debussy a Melindrosas, passando por Cage e Cure. Toca desde criança: guitarra, sax, se profissionalizou na flauta aos 16, e depois – primeiro pela enorme dificuldade de encontrar quem tocasse suas composições e em seguida por opção estética – passou a dominar softwares de edição sonora.

Em 2001 inventou o selo fonográfico FGC Produções Independentes, por onde passou a lançar seus discos primeiro como objeto físico (CDs, com capas de material reciclado, desenhadas, impressas e tudo mais pelo próprio compositor), mas depois disponíveis para download de graça pela internet, do Vol.1 até o Vol. 5, este de 2009. Seu selo também divulga o trabalho de outros artistas, gravados por Fábio. Ele morou cinco anos em Ourém, onde fazia um programa para a rádio comunitária local, a Tembés FM. Toda semana tocava material inédito de um artista da cidade ou de seus arredores. Quase inacreditável: tem gente que fala em crise da música, mas em Ourém, no interior do Pará, toda semana, por cinco anos, uma rádio comunitária lançou tal quantidade de artistas! Havia de tudo: brega, bolero, samba, toada de boi. Conheço apenas os discos dos bois e do Mestre Cardoso que Fábio lançou na rede. São preciosidades. Nunca ouvi o boi paraense tão bem gravado, revelando uma riqueza de detalhes rítmicos e uma poética eclética, que canta tanto a sereia encantada quanto a prisão de Saddam Hussein, a boniteza da garça e o futebol do Remo.

No início de 2010, Fábio se mudou para Santarém. Não perdeu tempo. Já se aliou ao coletivo Puraqué (“cultura digital e autonomia na Amazônia”) e ajudou a montar um estúdio livre – todo com software livre – que tem como objetivo gravar quinzenalmente um músico local, disponibilizando as músicas, entrevistas e fotos no seu site.

Tudo isso foi feito na marra. Fábio não fica reclamando de falta de apoio ou patrocínio. Ele faz o que quer fazer, o que precisa fazer. E já construiu um acervo vigoroso não só de seu próprio trabalho como também de músicos que vivem ao seu redor. Nada é fácil. A nova realidade da música, pós-indústria-fonográfica, não se resume mais em ficar compondo ou gravando. É preciso trabalho duro para cuidar do site, da divulgação nas redes sociais, e muito mais. Mas há vantagens óbvias: imagine a chance do Fábio no mundo das gravadoras tradicionais, morando em Ourém ou Santarém, fazendo a música estranha que faz, sem se importar em nada com o que está na moda, ou com o que pode agradar a maioria… Hoje ele pode, em casa, na rádio comunitária ou no coletivo digital amazônico, gravar sua música e divulgá-la para o planeta todo. Não há mais barreiras de executivos dizendo o que o mundo deve ou pode ouvir.

Por essas e outras, vou – de vez em quando – trazer notícias-pílulas do Overmundo para esta coluna, selecionando surpresas para quem quiser se surpreender. Há muitos projetos e pessoas incríveis como o Fábio, mandando brasa pelo Brasil afora.