aqui e agora

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 19/12/2014

2014 está terminando. Não terei tempo para cumprir outra promessa, a de homenagear vários dos grandes artistas modernos que comemorariam seu centésimo aniversário este ano. Consegui apenas escrever sobre Lina Bo Bardi, Marguerite Duras e Dorival Caymmi. Citei Sun Ra na semana passada. Pouco. Falta muita gente mais, importante demais para a minha vida e para os tempos modernos. Preciso fazer uma escolha. Não posso deixar de escrever sobre Octavio Paz. Mais especificamente sobre seu livro “Os filhos do barro”, reeditado no Brasil recentemente, e que deve ser relido por todo mundo que busca avanços para a produção cultural contemporânea.

Avanços. Estou elogiando a linearidade do tempo, em progresso ou desenvolvimento contínuo na direção do “melhor”? Nada mais distante da minha intenção. Quando li “Os filhos do barro” – que teve sua primeira edição mexicana em 1974 e a brasileira em 1980 – perdi grande parte da minha ingenuidade vanguardista juvenil. Octavio Paz nos surpreende afirmando que “o moderno é uma tradição”. Uma tradição “de ruptura”, de “crítica do passado imediato”, de “negação” – mas nem por isso menos tradicional. Claro: “a sociedade que inventou a expressão a tradição moderna é uma sociedade singular”, diferente de todas as outras que existiram antes ou que continuam a existir acreditando que o melhor aconteceu no passado. Nós, modernos, mesmo os mais apocalípticos, temos esperança num futuro que rompa com erros do passado e do presente. Mas no momento em que a crítica vira uma exigência tradicional ficamos desconfiados: “Aquele que sabe ser pertencente a uma tradição implicitamente já se sabe diferente dela, e esse saber leva-o, tarde ou cedo, a interrogá-la e, às vezes, a negá-la.”

Armadilha? Círculo vicioso? Se somos “diferentes” dos modernos, qual o nosso novo nome, ou como escapar da modernidade? Na época do lançamento de “Os filhos do barro” já se falava em pós-modernidade, mas aquela saída hoje se revela tão datada como sofá pé-de-palito de design Memphis ou capa de vinil new wave. E depois de nossa entrada no ciberespaço, podemos compreender – mixando terror e êxtase – uma profecia de Octavio Paz cujas sutilezas podem ter confundido os leitores dos anos 1970: “Passam-se mais coisas e todas elas passam quase ao mesmo tempo, não uma atrás da outra, mas simultaneamente. Aceleração é fusão: todos os tempos e todos os espaços confluem em um aqui e agora.”

O melhor lugar do mundo? Muita coisa, demais da conta. Passei 2014 lendo – bem lentamente – o tijolo “Miscelánea III” das “Obras completas” de Octávio Paz. Suas mais de 750 páginas reúnem as principais entrevistas concedidas por este grande poeta/pensador/ensaísta mexicano e cosmopolita (existe alguém mais cosmopolita?), de 1953 a 1996. Impossível não se espantar com a abrangência enciclopédica de seus conhecimentos, cada resposta é uma aula sobre assunto diferente, da poesia de Benjamin Péret à filosofia de Giorgio Agamben, passando pelo “I Ching” e pelo Dom Quixote. Apenas uma citação irresistível, de entrevista de 1989, em resposta que comenta as diferenças entre a palavra falada e a palavra escrita: “A palavra falada é aqui e agora, uma conjunção de vozes em um lugar: uma conversação. […] a palavra escrita é pública enquanto que a conversação é privada. Uma das calamidades modernas é haver feito pública a vida privada.”

De volta ao ciberaqui e ciberagora, com cada vez maior confluência de tudo, também do privado com o público. E pulo de assunto, dividindo 100 anos pela metade. Outro dia recebi email do Instituto Moreira Salles que me fez descobrir que a publicação de “A paixão segundo G.H.” completou cinco décadas (na preciosa edição crítica coordenada por Benedito Nunes descubro também que, como quase todos os outros livros de Clarice Lispector, não há originais desta obra). Clarice Lispector inventou outro tempo, ou uma estratégia de relação com o tempo que talvez nos dê pistas para escapar da tradição de ruptura moderna, que deposita todas suas esperanças em vanguardas que indicam o caminho do melhor futuro para as multidões.

Os trechos que sublinhei na minha primeira leitura de “A paixão segundo G. H.” continuam a ser aqueles que mais guiam minha vida até hoje. Fiquei “muito feliz” porque finalmente fui desiludido e nunca mais confiei em sistemas ou projetos que tentavam me vender esperança: “quero encontrar a redenção no hoje, no já, na realidade que está sendo, e não na promessa, quero encontrar a alegria neste instante”.

Mais claro ainda: “Pois prescindir da esperança significa que eu tenho que passar a viver, e não apenas a me prometer a vida. E este é o maior susto que eu posso ter. Antes eu esperava. Mas o Deus é hoje: seu reino já começou.”

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