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1967-2011

31/12/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 23/12/2011

Provavelmente, o acontecimento musical mais importante de 2011, entre “formadores de opinião”, foi o lançamento não de disco, mas sim de livro: o “Retromania”, de Simon Reynolds. Ninguém precisa ler suas 496 páginas para conhecer o conteúdo. As ideias de “Retromania” foram tão debatidas e enriquecidas na internet que o texto original parece ultrapassado. Isso vai acontecer cada vez mais com todos os produtos culturais, que se tornarão obras em progresso, sempre em modo “beta”, sem edição definitiva, ou com versão final logo transformada em matéria prima para remixagens eternas – o que vem confirmar parte da tese de “Retromania”, que vivemos um tempo em que o novo é resultado de um “revival” ininterrupto de modas passadas.

O próprio Simon Reynolds já aproveitou a onda retrô. É de sua autoria a obra (“Rip it up and start again”) que se tornou referência básica para o conhecimento sobre a era pós-punk, na qual uma parcela influente de nossa juventude vai viver para sempre, como se a cultura da humanidade inteira se resumisse a um show do Gang of Four em 1981. Vamos ter que nos acostumar com essas tribos que habitam tempos históricos culturais diferentes, tudo ao mesmo tempo agora. Mesmo cultuando o passado, elas vão ser anunciadas como o futuro – ou pelo menos como a última moda de quem está mais conectado com presente, sendo protagonista da definição do espírito do seu tempo (não importa que sua sonoridade tenha sido criada pela geração de seus pais ou avós). Então resta a dúvida: ninguém vai mais criar nada realmente novo? Em música: nunca mais vamos ouvir o que ninguém nunca ouviu antes?

Diante dessa garotada hipster-passadista, fico alegre/espantado ao constatar que os discos mais inovadores de 2011 foram produzidos por artistas de mais de 60 anos. Mais interessante ainda: meus dois lançamentos preferidos do ano têm a ver com 1967.

O primeiro foi gravado em 1967, mas não tinha sido lançado até o mês passado. É “Smile”, o disco inacabado dos Beach Boys. Imaginava que nunca iria ouvi-lo de cabo a rabo, e teria me contentar com os fragmentos que apareceram como faixas bônus de caixas de CD ou com a regravação que Brian Wilson lançou em 2004. Tudo já era uma maravilha, mas não me preparou para a mixagem/masterização que 2011 nos deu de presente. Muita música pop-experimental recente, de Jim O’Rourke a Panda Bear, tentou levar para frente as lições dos Beach Boys, mas agora comprovamos que nada foi tão radical como o “original”. Smile poderá ainda por muito anos nos servir de guia para o futuro da arte. Impossível não ficar desconcertado ao perceber que aquilo foi gravado sem mesas de muitos canais, sem computadores, sem samplers, sem softwares como Pro Tools, com músicos tocando e cantando juntos (como conseguiam fazer isso? mesmo hoje com toda a tecnologia, seria quase impossível).

Outra razão para desconcerto: o experimentalismo de “Smile” está sempre a serviço da beleza totalmente angelical, beleza que dói de tão bela, mais que aquele trecho adorado da Quinta Sinfonia do Sibelius. Não dá para existir algo que supere “Surf’s Up”, mesmo com letra escalafobética de Van Dyke Parks. É para se ajoelhar e ficar chorando na frente das caixas de som ou sob o fone de ouvido do Dr. Dre.

O outro disco mais inovador de 2011 tem a ver com 1967 por tabela. É “Recanto”, de Gal Costa. Em 1967, ela e Caetano Veloso lançaram “Domingo”. 44 anos depois os amigos baianos se reúnem novamente para nos presentear com um álbum que quase se chamou Segunda. Esperava algo assim da música popular do Brasil há anos. Imaginava que seria obra de músico de poucos anos de vida. Porém, os mais jovens pareciam vítimas de culto a um passado mais criativo, diante do qual só podemos tentar enfeitar nossa inferioridade com trinados de teclado Hammond e chiado de vinil. (Nesse ambiente o funk carioca emergiu como uma ilha futurista, com o uso mais desabusado da tecnologia em território nacional. Mas todos sabemos que funk não faz parte da tal “linha evolutiva” da MPB, e muitos críticos fizeram o possível para mantê-lo isolado na favela pré-UPP.) Foi preciso novamente a ação de heróis tropicalistas para nos salvar. (E depois reclamam da centralidade de Caetano em nossa cultura: não aparece ninguém mais jovem para fazer seu trabalho, então ele precisa continuar orientando nosso carnaval e inaugurando novos monumentos.)

Semelhança de “Recanto” com “Smile”: a radicalidade estética e a esquisitice sonora estão a serviço da canção, da bela canção. (E que safra de canções há em “Recanto”! – com as melodias que fazem falta nos discos da Bjork, ou do Alva Noto.) Reconfortado, preciso fazer coro para a letra de “Mansidão”: “está tudo onde deve estar”. Finalmente.

***

Minha coluna passada me obrigou a reler vários artigos de Michael Ventura. Redescobri o deslumbrante “Hear that long snake moan”, talvez o melhor texto já escrito sobre o rock, ou sobre a história da música popular dos EUA. Aqui tenho espaço para comentar apenas um detalhe: Ventura revela que o Brasil não é o único lugar do mundo onde se diz “aqui ninguém é branco”; há um ditado sulista norte-americano que é até mais específico: “there ain’t no white people in New Orleans” (não há brancos em Nova Orleans). Todos os branquelos iam pedir a benção de Marie Laveau, cabeleireira e sacerdotisa voodoo. Por isso o batuque se manteve vivo na cidade e hoje até neguinhos brasileiros podemos dançar “Miami Maculelê”.

Make Ventura

24/12/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 16/12/2011

Poucos meses depois do início da presidência Obama, a revista Make trazia na capa uma proposta audaciosa: ReMake America (ou ReFaça a América). A página 1 estava ocupada por um manifesto que poderia ser transformado em programa de governo, ou receita para desenvolvimento econômico mais sustentável. Vale a pena citar algumas de suas recomendações, que foram divididas em cinco tópicos básicos: faça coisas; uso de energia; transporte; comida e água; aprendizado. Veja como não se trata de nenhuma utopia: “faça coisas que outras pessoas precisem”; “faça coisas para que você não precise comprá-las”; “crie um negócio que empregue pessoas que façam coisas”; “faça coisas mais perto do lugar onde vão ser usadas”; “conserte as coisas em vez de trocá-las”; “cultive sua própria comida”; “encoraje a curiosidade e o aprendizado autodirigido”; “aceite o fracasso – o fracasso é parte do aprendizado”.

Não consegui descobrir o número de leitores da Make. A revista foi fundada em 2005 e só lança quatro números por ano. Talvez sua face mais visível não seja a publicação em papel, nem o site, mas sim grandes encontros chamados Maker Faire. O primeiro deles, realizado perto de San Francisco em 2006, reuniu 20 mil pessoal. A Maker Faire de 2011 juntou 100 mil, e já há feiras semelhantes realizadas em outras cidades americanas e até africanas. Esse crescimento chamou a atenção da revista The Economist, que no início de dezembro publicou artigo com a seguinte declaração apoteótica: “o movimento ‘maker’ pode mudar como a ciência é ensinada e impulsionar a inovação. Ele pode mesmo anunciar uma nova revolução industrial.”

Criada por Dale Dougherty, um dos fundadores da empresa O’Reilly Media (que teve início nos anos 80 com a publicação pioneira de manuais de programas de computador), a Make tem como inspiração principal a estratégia descentralizada de produção dos softwares livres, incentivando sua aplicação para muito além da informática. Seu mandamento: produza com código aberto, de modo colaborativo. A revista está repleta de textos e fotos com passo a passo para a produção sem segredos de equipamentos como uma máquina de lavar roupas que funciona sem eletricidade ou uma impressora 3-D.

Comparado com o barroquismo da Adbusters, tudo na Make tem pinta de ciberpuritanismo. A Adbusters também poderia ser vista como mais europeia, com uma profusão de citações de filósofos franceses pós-Maio 68, e a Make como mais americana – no sentido mais pé-no-chão, e mesmo ingênuo (ingenuidade diferente daquela escorada em corpos sem órgãos deleuzianos), sem floreios intelectuais, que a cultura da América pode ter.

Pensando nessa dicotomia Europa/Améria, ou Adbusters/Make, paralizante ou empobrecedora, andei à procura de um pensamento que pudesse conectar os dois lados de forma original. Foi assim que me deparei com os últimos textos de Michael Ventura em “Cartas às 3 da madrugada”, coluna – primeiro no L.A Weekly e hoje no Austin Chronicle – publicada há 3 décadas. Sua crença: movimentos como o “maker” e o “Occupy Wall Street” são sinais sim do “fim do capitalismo e de sua reposição por um modo de comércio para o qual, ainda, não há um ‘ismo’.”

Michael Ventura é meu pensador americano favorito. Seu livro “Shadow dancing in the USA” tem lugar garantido na minha lista de melhores obras do século XX. Foi ali, nos anos 80, que me deparei com palavras que – entre muitas outras coisas – me fizeram perder os preconceitos, que certa filosofia europeia me vendera como chiques, contra shopping centers: “os jovens vão para tais lugares porque se sentir em casa na cacofonia de formas é o que eles mais desesperadamente precisam aprender, e eles não estão aprendendo isso na escola. Nós estamos profundamente mais desconfortáveis no mundo do que eles estão. O que procuram não é algo que saibamos como ensinar.” Claro: nada disso é enunciado com sofisticação desconstrucionista. Tudo é meio rasteiro (fiz a citação só para mostrar que ele não é anti-consumo como o pessoal também rasteiro – e isso não é crítica – da Adbusters), mas muitas vezes precisamos de um índio americano para nos revelar o que estava oculto “quando terá sido o óbvio”.

Esse mesmo livro termina com o artigo “Previsões: os próximos 200 anos”. Foi publicado em 1985, estamos ainda no início dos tais dois séculos, mas tudo que ali foi previsto praticamente já é passado: “a criação de um sistema econômico mundial”; “avanços na cibernética, biologia, pesquisa espacial e cerebral”; “fortalecimento dos povos mulatos, negros e amarelos”; “equalização de homem e mulher”. Só falta “a criação de uma nova cosmologia que substituirá o judeu-cristão-muçulmanismo”(anunciando a “exaustão” do extremismo de origem islâmica ele dizia: isso não é aparente agora pois só extremistas aparecem na mídia e não vemos os “milhões que só querem viver vidas normais” – os milhões representados pelo pessoal da praça Tahir?)

Nesse artigo, o que mais me impressionou não era uma previsão e sim uma constatação: “as crises de nosso mundo se expressam como crises políticas mas elas não têm solução política. Isso deixa bem louco todo mundo envolvido em suas resoluções.  As únicas soluções possíveis são culturais, e soluções culturais não podem ser legisladas e geralmente elas não podem ser impostas. Soluções culturais evoluem. E as pessoas têm dificuldade de explicar como elas evoluem. O que é uma mera ideia num século vira instituição poderosa no próximo. É por isso que expressar ideias é tão importante. Nada acontece sem elas.” Eu digo: por isso é essencial ficar atento ao que a Make publica. As novas ideias, as mais poderosas delas, estão ali.

boas traições/traduções

17/12/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 09/12/2011

No número da revista Adbusters que trazia a convocação para a ocupação de Wall Street, os artigos que realmente me impressionaram tinham assinaturas de Manuel Castells e Franco Berardi Bifo. O sociólogo espanhol Manuel Castells tem boas conexões brasileiras. Prova: o posfácio que escreveu para a biografia de Ruth Cardoso. Ou o prefácio de FHC para “A sociedade em rede”, seu clássico cibercultural. Na Adbusters, o texto de Castells analisava as “acampadas” das praças espanholas que serviram de inspiração para os ocupantes americanos. Não escondia sua simpatia: os objetivos do movimento – entre eles: controles dos bancos, reforma fiscal e abolição da Lei Sinde (que tenta impor, em nome da defesa dos direitos autorais, várias restrições para as liberdades na internet) – são julgados “concretos e razoáveis”. E declarava: “partidos e instituições vão ter que aprender a conviver com essa sociedade civil emergente.”

O texto de Franco Berardi – filósofo, escritor e agitador cultural italiano – tinha tom distinto, que reflete a trajetória política de seu autor. Bifo, apelido que virou parte do seu nome, participou do grupo Potere Operario, do movimento Autonomia, fundou a mítica Radio Alice (a primeira rádio livre da terra de Berlusconi), trabalhou com Félix Guattari, e recentemente publicou livros como “Mutação e cyberpunk” ou “Neuromagma”.

Preciso citar inteiro o primeiro parágrafo do seu artigo na Adbusters, para o leitor tremer nas bases: “Gostaria de falar sobre algo que todos sabem, mas que, pelo que parece, ninguém tem a ousadia de dizer. Isto é, que o tempo da indignação acabou. Aqueles que ficam indignados estão já começando a nos entediar. Mais e mais, eles nos parecem como os últimos guardiões de um sistema podre, um sistema sem dignidade, sustentabilidade ou credibilidade. Nós não temos mais que ficar indignados, nós temos que nos revoltar.”

Gostei de fazer essa tradução totalmente livre de algo que foi escrito em italiano, via inglês canadense. Não apenas por não ter paciência com indignação, muitas vezes apenas uma fantasia politicamente correta para a burrice que se acredita inteligente. Mas por ser uma maneira de retribuir a tradução que Bifo fez de “O mistério do samba” para italiano.

Esse meu livro teve três traduções, todas envoltas em alegríssimos mistérios. A primeira foi para inglês, trabalho do historiador americano John Chasteen, resultando numa versão bem melhor que a brasileira. Essa tradução foi também publicada pela editora da University of West Indies, da Jamaica e de Granada, cujo lançamento me levou para Kingston, onde provoquei polêmica com palestra que elogiava o ragga, tido como lixo cultural por grande parte da elite intelectual local (gente culta geralmente gosta de raiz, lá de reggae de raiz). A segunda tradução, para o japonês, foi feita do inglês pelo adorável Musha, o mesmo que gravou disco cantando uma versão bossa nova de Psycho Killer, a música dos Talking Heads.

Caminhos muito malucos. Porém, nada se compara com a surpresa que me causou a tradução italiana. Quando soube que ela tinha acontecido, o livro estava pronto para ir para as livrarias. Bifo mandou email para me dar a boa notícia e passar um contrato para assinatura. Eu sabia bem quem ele era, admirava vários de seus trabalhos, mas nunca tivemos contato pessoal anterior. Fiz a pergunta mais óbvia: como descobriu o meu livro? Respondeu que comprou numa livraria em Belo Horizonte (!). Acrescentei inocente: “eu não sabia que você falava português…” Não estava preparado para o que iria ouvir: “Não falo, aprendi a traduzir por causa do seu livro.”

Como diria Jorge Benjor: que maravilha! Leio italiano com alguma dificuldade, mas consegui entender o texto da contracapa, que traduziu meu livro também para a revolta pós-Autonomia: “‘Il mistero del samba’ é um livro conta a ideologia da identidade, contra as ilusões perigosas da autenticidade local e das ‘raízes’ que têm tanto peso no modo atual de relacionamento com a hibridação, a mestiçagem, a contaminação que representam, não só no Brasil, o futuro da humanidade.” Na Itália, o livro ganhou um subtítulo-manifesto: “contaminação e fantasmas da autenticidade”. Fiquei todo satisfeito com a comprovação de que não temos nenhum controle sobre a maneira como nossos escritos são lidos. A única pessoa que tinha intuído o lado “occupy” do meu samba foi Eduardo Viveiros de Castro, que participou da banca da minha defesa de tese, e brincou sério: “você escreveu sobre o rock.” Rock sem raiz. Não sei qual foi a repercussão do livro na Itália, nem tenho ideia de quantas cópias vendeu por lá. Apenas recebi uma carta do filósofo Mario Perniola, outro de meus ídolos, com outros elogios. Missão cumprida.

Já que me perdi da Adbusters, volto para a América do Norte por outro caminho, outra revista. A Adbusters é divertida, provoca tsunamis meméticos, está agora na boca do povo. No entanto, para entender o que está acontecendo hoje no mundo, a revista que considero ideologicamente mais interessante, apesar de linha editorial e administração mais caretas, se chama Make (as diferenças começam no site: makezine.com; a Adbusters é .org). Em vez de apenas se indignar, faça. Faça você mesmo. Minha profecia: depois da ocupação será a hora de fazer e refazer. Não haverá maneira de conter um movimento feito por gente que faz tudo, sem intermediários. Mais Make na próxima coluna.

Adbusters

10/12/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 02/12/2011

Na sexta-feira passada, acompanhei com empolgação a luta livre entre o peso pesado Black Friday e o levíssimo (no sentido mais mercurial da leveza – Salve Hermes!) Buy Nothing Day. Ainda vai demorar para sabermos quem foi o vencedor. No sábado, Obama tentou um golpe de terceira via levando as filhas para comprar livros no “Sábado dos Pequenos Negócios” – uma maneira de dizer: “continue consumindo, mas off-grandes-corporações”. O bem calculado pequeno gesto – talvez o único possível para um assustado e inteligentíssimo presidente democrata de Império cambaleante – era na verdade mais uma tentativa de salvar o mundo tal qual o conhecemos. Como pano de fundo para o vale-quase-tudo ideológico, temos a maior crise do capitalismo desde a Black Thursday de 1929 e a resistência viral do movimento Occupy Wall Street, que já é Occupy Tudo.

A sexta-feira negra atual não tem conexão imediata com a quinta-feira da Grande Depressão, nem como “day after”, mesmo tendo sido batizada – diz a lenda – para exorcizar espíritos recessivos: seria o momento em que o comércio sairia do vermelho para ingressar no lucrativo período das festividades natalinas. Não importa tanto o mito de origem: é certamente irônico pensar hoje nesse vínculo não desejado com 1929: a repetição de uma triste história como farsa consumista, que para alguns economistas pode anunciar o esgotamento – por excesso – da tão amada/odiada sociedade de consumo.

Do lado do Buy Nothing Day, taticamente datado para provocar simbólico conflito anticorporativo, é bem mais explícita a conexão com os acampamentos de indignados que ocuparam praças do planeta inteiro. O mundo anda tão bicho solto que até uma pequenina publicação canadense pode se transformar no estopim de grande mudança política. Explico: tanto o Occupy Wall Street quanto o Buy Nothing Day, antes de tomarem as ruas, foram ideias lançadas pela revista Adbusters, que tem sede em Vancouver. Em tradução muito livre, adbusters quer dizer “dinamitadores de publicidade”. Esta tem sido a principal atividade da “fundação de mídia” responsável pela revista, desde 1989: explodir com a lógica publicitária por dentro, lançando campanhas anticonsumistas, subvertendo a mesma linguagem que tenta nos fazer consumir.

Tudo começou com o encontro de Kalle Lasn – um estoniano criado na Alemanha e na Austrália, e que antes de se mudar para o Canadá montou empresa de pesquisa de mercado no Japão – e Bill Schmalz – diretor de fotografia especializado em documentários sobre a natureza “selvagem”. A primeira parceria da dupla foi a produção de cartazes e publicidade de TV para combater a indústria madeireira da região da Colúmbia Britânica. O Buy Nothing Day também teve início com um cartaz, criação do cartunista Ted Dave, colaborador da Adbusters. A revista hoje tem circulação de 120 mil exemplares, e não publica – é claro – nenhum anúncio; na verdade é saturada por páginas que desconstroem anúncios veiculados por outras publicações.

Sempre achei a Adbusters simpática, mas confesso que nunca levei sua linha editorial muito a sério. Considerava tudo meio ingênuo, e algumas vezes pouco inspirado. Mas acabava comprando a revista por causa de um texto ou outro, ou de alguma imagem que beirava uma histeria anti-Warhol. Este ano comprei todos os números, que são bimestrais, por causa das palavras de ordem impressas nas capas. Começou com a “crise terminal do capitalismo”, passou por “pós-império”, “pós-Ocidente” e “pós-anarquismo”, até chegar ao “outono americano”. A edição sobre a política do pós-anarquismo trazia poster na página central, com uma bailarina dançando em cima do touro de Wall Street, acompanhada pela convocação twiteira: “#occupywallstreet / 17 de setembro / traga barraca”. Simples assim.

Pensei até em ficar ligado no dia 17, para acompanhar a ocupação em tempo real. Mas acabei me esquecendo do anúncio, que não colonizou meu subconsciente como manda o manual da propaganda. Deveria ter prestado mais atenção: afinal no número de setembro/outubro de 2010 a Adbusters anunciava “a iminente ruptura no Egito” com palavras bem proféticas: “tenha certeza que um grande terremoto está se aproximando do país mais influente do mundo árabe e os tremores vão reverberar por toda a região”. Ainda sentimos o chão balançar todos os dias nos arredores do Mar Vermelho. A reverberação conseguiria atingir o centro financeiro de Manhattan? Acredito que mesmo os editores da revista – como Micah White, tido como dono da mente onde se originou o meme occupy – estão surpresos com o tamanho que tudo tomou, levando sua publicação periférica para o centro do debate político do país vizinho que antes imaginava o Canadá como inofensiva colônia cultural.

Nos últimos dias, várias pequenas notícias indicam que a “ocupação” – que já foi acusada de não ter demandas claras – pode ter consequências bem concretas e profundas, até decidindo os rumos da próxima eleição presidencial nos EUA. Um deputado, Ted Deutch, acaba de propor uma emenda constitucional chamada de OCCUPIED, tentando proibir dinheiro de grandes corporações no financiamento de campanhas eleitorais. Boa lição: ninguém pode mais subestimar o poder dos símbolos culturais, mesmo os que aparecem nas fronteiras aparentemente mais esquisitas do marketing antimarketing contemporâneo. Esta coluna continuará ocupada pela Adbusters na próxima semana.

Cícero Dias

02/12/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 25/11/2011

Na coluna passada escrevi sobre meu espanto ao descobrir o fel antimodernista na deliciosa prosa infantil de Monteiro Lobato. Fiquei contente ao perceber que escapei da doutrinação careta, mesmo me considerando neto de Dona Benta. Não seria quem sou se não fosse a influência decisiva da turma do Sítio do Picapau Amarelo, mas mesmo assim me considero carnavalescamente o mais modernista dos homens, hoje me interessando muito pouco por tudo que vem antes de Malevich, Oswald ou Russolo. Ainda mais agora, depois que li o maravilhoso “Eu vi o mundo”, recém-lançado pela Cosac Naify, que fez meu mundo se dividir em antes e depois de Cícero Dias. Afinal, como não se apaixonar por autor de livro autobiográfico que declara: “minha memória não obedece a leis, mas à saudade dos doces de caju em calda.” Sei que sou suspeito, pois – já escrevi isso por aqui (estou sendo didaticamente nordestino) – também considero doce de caju bem feito uma das melhores coisas da vida. Então, como prova dos nove, cito outro momento arrebatador, que para mim vale quase como haiku de Bashô: “Não fui um menino completamente introvertido. Sempre me entendi perfeitamente com o mistério do mundo.” Não é pura iluminação?

É certo: em Cícero Dias, a lembrança saudosa não se confunde com o culto ao passado. Pelo contrário, é motor de futuro cada vez mais futurista: “Antes que a nostalgia me cercasse, a arte ia me jogando para frente.” Parece (e continuo nordestino, e repetitivo) Waly Salomão no texto “Velha cartomante setentona”, escrito para os 70 anos da Semana de 22: ” FUGIR PARA FRENTE, a partir de agora. Sem nostalgia. Buscar o tempo da inocência? Sim. E tendo observado uma vez, observar de novo com uma sempre desafetada, sem preconceitos, insubordinável e destemida INOCÊNCIA. Devemos comer de novo a maçã do bem e do mal para cair na inocência. Aprendi que ser um homem é ser inconformista. AVANTI!” As palavras de Waly poderiam ser a legenda de uma das fotos que abre o “Eu vi o mundo”, com Cícero Dias – no meio do que imagino ser uma pista de dança – pulando de terno e braços levantados. Não pode existir imagem mais explícita de redenção modernista pau-brasil, como se fosse um Gilbert & George (os artistas ingleses – os dois juntos, num só corpo e terno) possuídos pelo espírito do samba ou de Hélio Oiticica.

Por favor, tome alegria: leia esse livro. Muito mais bacana que “Meia-noite em Paris”. A volta no tempo em Cícero Dias  não objetivo de vida, é só um incentivo para tornar o presente mais animado e interessante. Não pensei no filme de Woody Allen a partir de uma colagem dadaísta de ideias. Grande parte da narrativa de “Eu vi o mundo” se passa igualmente na capital francesa dominada por Picasso (e depois pelos nazistas). Ele conviveu com seu compadre Picasso – e com Breton, Léger, Cendrars, Duchamp, Dalí, Max Ernst e até Mário Pedrosa. Comentando a abertura da mítica “Exposition internationale du surréalisme”, da qual quase participou, continua o “name-dropping” e a memória-doce-de-caju-ilha-de-edição-não-linear: “Óscar Domínguez, ébrio, falava sozinho. Arp dizia-me que essa exposição surrealista fazia lembrar o Cabaré Voltaire, em Zurique, onde se encontrou pela primeira vez com Tristan Tzara. Éluard inaugurou a exposição lendo suas palavras claras e poéticas. Bailarina nua, em movimento, às vezes deitada. Odeurs du Brésil, cheiro de café.”

Claro, Paris nessa época tinha seu charme. Porém (e essa é outra repetição de algo que já disse aqui na coluna), fico muito mais encantado, e contraditório-nostálgico-fugindo-para-frente, com as lembranças do modernismo do Rio de Janeiro dos anos 20: é a época para qual eu queria viajar se tivesse um túnel do tempo. O que era aquele triângulo boêmio-artístico-intelectual entre o bar Nacional, o bar Brahma e o bar do Palace Hotel?! Como ninguém fala dele nos livros de história do Ensino Fundamental? E a lista do pessoal que frequentava o ateliê do Cícero Dias? “Manuel Bandeira , Jayme Ovalle e o irmão, Dante Milano, Murilo Mendes, Di Cavalcanti, Dodô Barroso do Amaral, Ismael Nery, Josué de Castro e tantos outros… O que posso dizer é que vivíamos a década de 1920.” Em outras páginas aparecem Mário de Andrade, Graça Aranha, Tristão de Ataíde, Villa-Lobos, Sérgio Buarque de Holanda, Arinda Houston (sogra de Mário Pedrosa, mãe de Elsie e Mary, cuja história familiar merece um outro livro), Heloísa Alberto Torres, Eugênia Álvaro Moreyra, Juliano Moreira e até Blaise Cendrars. A cidade vivia um de seus momentos mais possantes: “Tudo explodia, um vulcão.”

Entre o Rio e Paris, duas passagens são cheias de lições de modernidade descentralizada. A primeira é a exposição em Escada, interior pernambucano. Tudo era curto-circuito: “foi inaugurada ao som de uma viola, folha de canela pelo chão perfumando o ambiente, foguetes explodindo pelos ares, uma festa.” A experiência faz Cícero Dias chegar à seguinte conclusão: “o povo apreciara positivamente minha obra. Ao contrário da burguesia com seus preconceitos invioláveis que mantinha uma posição negativa.” A segunda passagem é a travessia do Atlântico de navio, com parada no Senegal e a revelação: “Tudo de moderno se realizava na África negra.” Outra conclusão esperada para quem afirmou: “Não cultivo a penumbra, mas a resplandecência. Nada é obscuro na minha obra.”