texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 23/12/2011
Provavelmente, o acontecimento musical mais importante de 2011, entre “formadores de opinião”, foi o lançamento não de disco, mas sim de livro: o “Retromania”, de Simon Reynolds. Ninguém precisa ler suas 496 páginas para conhecer o conteúdo. As ideias de “Retromania” foram tão debatidas e enriquecidas na internet que o texto original parece ultrapassado. Isso vai acontecer cada vez mais com todos os produtos culturais, que se tornarão obras em progresso, sempre em modo “beta”, sem edição definitiva, ou com versão final logo transformada em matéria prima para remixagens eternas – o que vem confirmar parte da tese de “Retromania”, que vivemos um tempo em que o novo é resultado de um “revival” ininterrupto de modas passadas.
O próprio Simon Reynolds já aproveitou a onda retrô. É de sua autoria a obra (“Rip it up and start again”) que se tornou referência básica para o conhecimento sobre a era pós-punk, na qual uma parcela influente de nossa juventude vai viver para sempre, como se a cultura da humanidade inteira se resumisse a um show do Gang of Four em 1981. Vamos ter que nos acostumar com essas tribos que habitam tempos históricos culturais diferentes, tudo ao mesmo tempo agora. Mesmo cultuando o passado, elas vão ser anunciadas como o futuro – ou pelo menos como a última moda de quem está mais conectado com presente, sendo protagonista da definição do espírito do seu tempo (não importa que sua sonoridade tenha sido criada pela geração de seus pais ou avós). Então resta a dúvida: ninguém vai mais criar nada realmente novo? Em música: nunca mais vamos ouvir o que ninguém nunca ouviu antes?
Diante dessa garotada hipster-passadista, fico alegre/espantado ao constatar que os discos mais inovadores de 2011 foram produzidos por artistas de mais de 60 anos. Mais interessante ainda: meus dois lançamentos preferidos do ano têm a ver com 1967.
O primeiro foi gravado em 1967, mas não tinha sido lançado até o mês passado. É “Smile”, o disco inacabado dos Beach Boys. Imaginava que nunca iria ouvi-lo de cabo a rabo, e teria me contentar com os fragmentos que apareceram como faixas bônus de caixas de CD ou com a regravação que Brian Wilson lançou em 2004. Tudo já era uma maravilha, mas não me preparou para a mixagem/masterização que 2011 nos deu de presente. Muita música pop-experimental recente, de Jim O’Rourke a Panda Bear, tentou levar para frente as lições dos Beach Boys, mas agora comprovamos que nada foi tão radical como o “original”. Smile poderá ainda por muito anos nos servir de guia para o futuro da arte. Impossível não ficar desconcertado ao perceber que aquilo foi gravado sem mesas de muitos canais, sem computadores, sem samplers, sem softwares como Pro Tools, com músicos tocando e cantando juntos (como conseguiam fazer isso? mesmo hoje com toda a tecnologia, seria quase impossível).
Outra razão para desconcerto: o experimentalismo de “Smile” está sempre a serviço da beleza totalmente angelical, beleza que dói de tão bela, mais que aquele trecho adorado da Quinta Sinfonia do Sibelius. Não dá para existir algo que supere “Surf’s Up”, mesmo com letra escalafobética de Van Dyke Parks. É para se ajoelhar e ficar chorando na frente das caixas de som ou sob o fone de ouvido do Dr. Dre.
O outro disco mais inovador de 2011 tem a ver com 1967 por tabela. É “Recanto”, de Gal Costa. Em 1967, ela e Caetano Veloso lançaram “Domingo”. 44 anos depois os amigos baianos se reúnem novamente para nos presentear com um álbum que quase se chamou Segunda. Esperava algo assim da música popular do Brasil há anos. Imaginava que seria obra de músico de poucos anos de vida. Porém, os mais jovens pareciam vítimas de culto a um passado mais criativo, diante do qual só podemos tentar enfeitar nossa inferioridade com trinados de teclado Hammond e chiado de vinil. (Nesse ambiente o funk carioca emergiu como uma ilha futurista, com o uso mais desabusado da tecnologia em território nacional. Mas todos sabemos que funk não faz parte da tal “linha evolutiva” da MPB, e muitos críticos fizeram o possível para mantê-lo isolado na favela pré-UPP.) Foi preciso novamente a ação de heróis tropicalistas para nos salvar. (E depois reclamam da centralidade de Caetano em nossa cultura: não aparece ninguém mais jovem para fazer seu trabalho, então ele precisa continuar orientando nosso carnaval e inaugurando novos monumentos.)
Semelhança de “Recanto” com “Smile”: a radicalidade estética e a esquisitice sonora estão a serviço da canção, da bela canção. (E que safra de canções há em “Recanto”! – com as melodias que fazem falta nos discos da Bjork, ou do Alva Noto.) Reconfortado, preciso fazer coro para a letra de “Mansidão”: “está tudo onde deve estar”. Finalmente.
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Minha coluna passada me obrigou a reler vários artigos de Michael Ventura. Redescobri o deslumbrante “Hear that long snake moan”, talvez o melhor texto já escrito sobre o rock, ou sobre a história da música popular dos EUA. Aqui tenho espaço para comentar apenas um detalhe: Ventura revela que o Brasil não é o único lugar do mundo onde se diz “aqui ninguém é branco”; há um ditado sulista norte-americano que é até mais específico: “there ain’t no white people in New Orleans” (não há brancos em Nova Orleans). Todos os branquelos iam pedir a benção de Marie Laveau, cabeleireira e sacerdotisa voodoo. Por isso o batuque se manteve vivo na cidade e hoje até neguinhos brasileiros podemos dançar “Miami Maculelê”.