Escrevi este texto no início de 2016. Foi uma sugestão da querida Ana de Oliveira, corajosa realizadora da Iyá Omin, com quem eu já havia tido a alegria de colaborar no projeto do livro sobre o disco “Tropicalia ou Panis et Circencis”. A ideia era agora fazer homenagem/reflexão semelhante para outro disco da mesma importância, o “Acabou Chorare”, com vários autores e artistas se dedicando a cada uma de suas faixas. O novo livro foi lançado no primeiro semestre deste ano. É uma maravilha. Além das muito diversas interpretações de todas as canções, há material de arquivo que só a Ana sabe coletar e publicar, como já fizera no tesouro que é o site Tropicalia. Pena que não teve a divulgação merecida nas mídias tradicionais e “novas”. Muito mais gente deveria saber da sua existência. Até porque “Acabou Chorare” deveria nos servir de guia para enfrentar a crise de hoje. Foi produto de uma das épocas mais aterrorizantes da história brasileira, mas não pode existir lição maior de liberdade e criatividade.
Minha canção escolhida foi “O mistério do planeta”:
O mistério de “Acabou chorare”: João Gilberto. O que não é novidade ou surpresa: ele é mistério maior da cultura brasileira, uma das encarnações mais esotéricas do mistério do samba, cada vez mais cercado por segredos sagrados. Sua relação com a turma dos Novos Baianos, no Rio de Janeiro, pode ser pensada como um dos momentos mais públicos de sua trajetória misteriosa, quando o próprio mistério sai de seu retiro e trabalha determinadamente para produzir um milagre que transforma eficazmente os destinos artísticos do país, e também a maneira com a qual uma nova geração inventava seu lugar no mundo. Apesar de toda determinação e eficácia, os procedimentos não são claros – algo bem adequado a todo acontecimento realmente misterioso ou milagroso.
Há, como era de se esperar, muitas versões sobre cada momento da relação. Seu mito de origem mais difundido fala da aparição inesperada de João Gilberto na porta da cobertura de Botafogo onde os Novos Baianos viviam, sendo confundido com um policial por causa de seu terno. O que seria pitoresco: a lei divina travestida de lei dos homens, a condenação que depois vira redenção. Outras narrativas menos detalhistas resumem a principal lição do encontro: João Gilberto teria revelado o Brasil para a turma de cabeludos hippies, direcionando seu olhar para “dentro”, para sua “verdade interior” vista como nacional: do rock para o samba, de Jimi Hendrix para Assis Valente. Na visão de gente que acredita na tese tola da bossa nova vista como inovação traidora do samba “de raiz”, ou o autêntico nacional submisso ao jazz internacional, tal atitude já foi interpretada como admissão de culpa ou remissão de pecado: o caminho escolhido agora seguiria sentido oposto, a mão contrária, desaprovando o fora, encaminhando ovelhas perdidas na ilusão do rock para a verdade do pandeiro.
Isso sim seria traição da bossa nova, do samba, do grande poder transformador com o qual samba e João Gilberto desafiam o Brasil. Seria também traição do rock. A lição de João Gilberto não poderia ter sido tão pequena, menor – isso não seria um milagre, e sim a voz de prisão, o enquadramento de um policial mesquinho. Seus ensinamentos foram bem diferentes, muito mais amplos, complexos, libertários, profundos, misteriosos. E seus discípulos estavam longe de serem meninos ingênuos, alienados, de costas para o Brasil.
Os meninos (e as meninas) eram espertos, informados, sabiam muito bem em que terra pisavam. A turma nasceu assim: Galvão passou na pensão de dona Maritó para encontrar Moraes. Suas primeiras palavras: “Tom Zé mandou-me aqui. Estávamos fazendo música, mas o Tropicalismo o chamou para São Paulo e ele profetizou que seríamos parceiros.” Com profecia de Tom Zé, o mais ousado estudioso do samba, não se brinca. Quando encontraram João Gilberto (para Galvão era um reencontro, mas desde 1961 em Juazeiro os dois não se viam), já tinham trocado ideias com o melhor da “avant-garde na Bahia” e com o concretismo paulistano. “É ferro na boneca”, o primeiro LP, era disco com rock sob filtro tropicalista, com sanfona, com tangolete, nem um pouco distante das contradições que movem as identidades brasileiras, como comprova a faixa “O samba me traiu“, na verdade um hino bem nietzscheano para o sol daqui (um dos hinos para o sol lançado pelos Novos Baianos). João Gilberto escutara “É ferro na boneca” com atenção, sabia quem iria encontrar. E escolheu a forma como o encontro iria acontecer.
Minha narrativa preferida do encontro está contida no livro “Anos 70: novos e baianos”, de Galvão. Para continuar em ambiente misterioso, posso chamá-lo de “Evangelho segundo Galvão”. Há contradições na comparação com outras narrativas. Não estou aqui em busca de verdade, mesmo tropical. Quero aprofundar o mistério. A letra de “Mistério do planeta” também pode nos guiar nessa empreitada. Lembrando, começa assim: “Vou mostrando como sou / E vou sendo como posso / Jogando meu corpo no mundo / Andando por todos os cantos / E pela lei natural dos encontros / Eu deixo e recebo um tanto”. A lei natural dos encontros favoreceu os Novos Baianos. Eles vinham jogando seus corpos pelo mundo, andando por todos os cantos, inclusive prisões e Arembepe, e acabaram chegando ao Rio, na cobertura de Botafogo. Segundo Galvão, João Gilberto, que também passava temporada no Rio, descobriu que Galvão estava por perto e tomou a iniciativa do encontro. O primeiro recado, com número de telefone, chegou “por um primo”. Galvão foi imediatamente para o orelhão, João Gilberto atendeu e deu as seguintes instruções: “Venha às duas da madrugada que eu tenho um presente para você. Preste atenção, Luizinho, ligue para mim às cinco da tarde. Não esqueça.” No telefonema das cinco, depois de tocar duas músicas, incluindo “Antonico” que Galvão não ouvira antes, mais ordens: “Vá descansar, temos que estar preparados. Um encontro é coisa séria. É o melhor que se pode dar a alguém. Não esqueça de telefonar quando chegar na esquina. Até mais. Seja feita a vontade divina.”
Qualquer semelhança com regras de iniciação esotérica não é, obviamente, mera coincidência. Tudo faz parte de uma lei natural dos encontros criada por João Gilberto, que sabia como cada detalhe deveria se passar, mesmo diante das surpresas aprontadas pelo acaso. Quando Galvão, o Luizinho, após passar três dias quase sem dormir na casa do mestre, pede para voltar com Moraes, Paulinho e Baby, João Gilberto reluta, diz já conhece gente demais: “só você está bom. Ou não está gostando?” Galvão responde: “não sou mais sozinho. Faço parte de um todo.” Uma hora de argumentação de Galvão depois, João reconsidera dizendo até que Baby poderia vir com “espelho na testa”, mostrando que sabia muito bem com quem estava falando, e como o admirável novo mundo baiano lhe interessava.
Repetindo: para João Gilberto, um encontro é “coisa séria”, “o melhor que se pode dar a alguém”. Ele escolheu dar seu melhor para os Novos Baianos. Contrariando seus hábitos de eremita, visitou a cobertura de Botafogo várias vezes. Parecia descobrir ali uma utopia, uma zona autônoma temporária, um sonho. Ao ouvir uma notícia ruim, João Gilberto mudou o rumo da conversa: “Não esquentem não. Vamos continuar com o som. Vamos continuar com o sonho.” Não se tratava de maneira alguma de conselho para fuga da realidade. Como a canção “Na fogueira” anunciou, no último disco dos Novos Baianos, “o sonho é o mais belo caminho para a realidade/eternidade“. (Em “Sou o caso deles”, colocar alguém no mundo, significa “botar na realidade“ e também mostrar a eternidade.)
A lição de João Gilberto para os Novos Baianos não pode ser entendida como uma exigência de brasilidade. Seus presentes foram múltiplos: vitaminas americanas (“Dizem que isso rejuvenesce e até tira rugas.”), dólares para o café da manhã, pedaço de letra para “Acabou chorare”, a descoberta de “Autobiografia de um iogue” (“Não é um livro comum para você apenas ler, mas ele mudou a minha vida e o tenho além da minha cabeceira. É o meu outro lado da Bíblia. Ele é meu guru bendito Paramahansa Yogananda.”), e samba, é claro, muito samba (os Novos Baianos aprenderam rapidamente sambas do repertório de João Gilberto, e mostraram suas versões em primeira mão para Glauber Rocha).
Outras aulas eram dadas com didática desconcertante. Gosto especialmente da descrição do momento em que ele tocou, ou deixou de tocar, com Pepeu: “Pepeu, que estava junto, e por ser um jovem de muito talento e um brilhante músico já reconhecido pela juventude, entrou no som com seu violão, mas, em minutos, Pepeu teve que parar a viola, porque João já estava em outra, com o jovem músico consequentemente sobrando. João tratou imediatamente de tranquilizá-lo: ‘Pepeuzinho, não se grile, estou apenas ensinando-lhe a fórmula'”. João Gilberto tinha Pepeu em alta conta. Conversando com Galvão, ele deixou entrever o que imaginava/desejava ser o futuro dos Novos Baianos: “Olhe, se Pepeu quiser ir para os Estados Unidos, eu falo com Stan Getz ou Sergio Mendes e ele tocará com um deles. Acho, no entanto, que o melhor seria ele ficar com vocês, porque vocês têm um grande trabalho para realizar no Brasil junto a essa juventude.”
O mestre verdadeiro é este: aquele que sabe descobrir o melhor em seus discípulos, para eles conseguirem realizar o melhor para o mundo. João Gilberto não provoca uma mudança radical nos Novos Baianos, suas lições apenas aceleram um processo natural de desenvolvimento artístico. O que havia ali como potencial, força bruta ainda desorganizada em “É ferro na boneca”, adquire rigor, clareza, segurança, mesmo mantendo sua integridade caótica e ar espontâneo juvenil. Mas a intensidade do desenvolvimento, com resultado em “Acabou chorare”, é tão fulminante, que só pode ser ouvida como milagrosa.
“Mistério do planeta” condensa todo o aprendizado em letra e som. Paulinho Boca de Cantor parece cantar o capítulo seguinte do tratado de filosofia da imanência radical contido no verso – minha opinião – central de “Besta é tu” (“por que não viver neste mundo, se não há outro mundo”): o jogo de corpo para se aproximar do grande mistério é descobrir que não há mistério nenhum, ou o mistério está todo (“o tríplice mistério do stop”) nesta vida, sem explicação escondida em outra vida, outro mundo, outro planeta. Mesmo assim, ainda há espaço para um parêntesis, onde surge o malandro/moleque brasileiro, que anda por aí como o louco (o vagabundo e a vadiagem são imagens recorrentes na lírica de Galvão) do Tarot, em andança pelos Trópicos, sabendo tornar invisível sua sacola. Não haver outro mundo não significa ausência de mágica (quem contrariar a lei do Cosmos já paga ao contrariar). E então, como do nada, ouvimos o noise também radical da guitarra malandra do moleque brasileiro Pepeu, que se mostra digno da fórmula de João Gilberto.