Archive for junho \30\-03:00 2020

missão

30/06/2020

Minha intenção era publicar o post de ontem apenas para recomendar um podcast. A evolução da escrita me surpreendeu: o texto virou um manifesto para salvar o mundo. Já era tarde, eu estava cansado, com pressa para ir dormir, o terceiro parágrafo ficou totalmente incompreensível. Volto aqui para tentar esclarecer. Melhor aproveitar a argumentação de David Baltimore, que não é apenas excelente cientista de laboratório, mas homem de ação em muitos outros campos (e ele declara: “eu amo instituições”, por isso foi reitor de universidades etc.). Aproveito para fazer uma tradução e um resumo MUITO livres de trechos da sua entrevista para o Mindscape Podcast (o original está aqui em áudio e transcrição):

Precisamos ter em nosso armamentário, remédios que inibirão o desenvolvimento dos coronavírus. Todos os coronavírus estão relacionados uns com os outros. Todos fazem basicamente o mesmo conjunto de coisas. Eu diria que a indústria farmacêutica, com tempo e dinheiro suficientes, poderia produzir um remédio contra os coronavírus, e não seria necessário saber qual coronavírus específico para ter moléculas inibidoras. […] Deveríamos nos dedicar a isso agora, mesmo que seja tarde para a COVID-19. Para a COVID-20 e 21 e 22 não é tão tarde, e deveríamos nos dedicar a isso para que nunca mais sejamos atingidos como agora. […] Não vejo essa dedicação acontecendo. […] Enquanto dependermos do lucro, não vamos nos dedicar a isso […] Temos que encontrar uma maneira de financiar e incentivar a pesquisa pública e das universidades […] E não só para coronavírus. A mesma coisa é verdadeira para toda uma variedade de outros vírus. […] O novo coronavírus não é algo fora da curva, e deveríamos estar nos preparando uma pandemia como a atual. Houve os alertas com a SARS e a MERS que revelaram que os coronavírus tinham a habilidade de aparecer em novas formas que não conhecíamos, que estavam por aí no mundo. Deveríamos trabalhar para identificar cada vírus num morcego pois os morcegos parecem ser um reservatório eficaz para vírus que podem atacar seres humanos. Mas não são só os morcegos. Todo o mundo natural tem vírus com os quais precisamos nos preocupar. […] Devemos levar tudo isso muito a sério. Agora, faremos isso? Eu não sei. […] E eu não sei porque já sabemos disso há muito tempo. Isso é saúde pública. E a história da saúde pública nos mostra que quando uma coisa deixa de ser um problema imediato, então perdemos nosso foco e passamos a usar os recursos para outros fins e essa precisa ser a lição das lições

Que fazer? Hoje acordei com as notícias de um novo vírus parente do H1N1 entre porcos de fazendas chinesas. Vamos viver assim? Esse é o novo normal? Como encarar a lição das lições, inventar um novo movimento político para que essa pesquisa seja realizada com os recursos que precisa, com a transparência necessária? Esse novo movimento político tem que ter a força de uma pandemia. Não pode deixar por menos. E não dá para esperar que Bill Gates ou a OMS nos salvem. É missão para todo mundo, que não deve ser pensada apenas como uma batalha científica contra um vírus – para dar certo, certamente vai exigir mudanças profundas em todas as áreas de nossa vida atual. Mas não tem jeito: teremos que enfrentar o desafio.

física e virologia – e o mundo

29/06/2020

Essa moda de podcast me irrita. Mas é preciso reconhecer: o formato é ideal para os tempos que correm, com tanta (pre)ocupação de todos os lados. Colocamos os fones e podemos realizar outras tarefas pesadas. Música me distrai muito. Ouvir um podcast aperfeiçoa meu foco. Então aqui mais uma dica: o Mindscape Podcast. O apresentador, Sean Carroll, é físico, professor da Caltech, especializado em cosmologia, incluindo ondas gravitacionais e outros assuntos cabeludos. Sabe explicar bem questóes teóricas de ponta, extremamente complexas. Gosto dos episódios solo. Mas o podcast tem mais entrevistas, com uma lista incrível de cientistas estrelas de todas as áreas. Este ano começou com Daniel Dennett, uma conversa sobre consciência e reconhecimento de padrões. Recomendo especialmente o episódio com Jenann Ismael, autora do livro How Physics Makes Us Free, que eu não conhecia, mas agora considero uma das pessoas mais inteligentes habitando o planeta.

Ontem ouvi a entrevista com outra inteligência fascinante: David Baltimore, Nobel de Medicina, especialista em vírus. No site do podcast havia link para seu vídeo no iBiology, canal que disponibiliza pequenas aulas dos melhores biólogos do mundo de língua inglesa, tudo de graça. Passeando por ali, olhando os “veja também” do YouTube, comecei imediatamente a fazer o excelente curso de virologia de Vincent Racaniello na Columbia University (mas este vou demorar para completar, pois exige ficar sentado por várias horas na frente de uma tela). Repito: andei de mal com a internet, que se transformou neste perigoso trem fantasma de trolagem. Mas quando tenho acesso imediato a essa abundância de bom conhecimento percebo que nem tudo está perdido.

No iBiology encontrei também este vídeo importantíssimo sobre a transmissão de vírus de outros animais para seres humanos e a pesquisa para produção de vacinas. Estou convencido: ali há todo um projeto que precisa ser colocado em prática com urgência (David Baltimore fala a mesma coisa no final de sua entrevista no Mindscape Podcast, até bem mais enfaticamente). Não é só um projeto científico, ou de financiamento da pesquisa científica. Para virar realidade, e produzir uma vacina que evite também as próximas e inevitáveis pandemias (e a terrível pandemia atual é até leve se comparada ao que pode vir por aí – já aprendi que os vírus são bem impŕevisíveis, instáveis, em constante mutação – e os seres humanos, cometendo atentados contra o meio ambiente, cada vez mais próximos de focos de contaminação – no vídeo há a informação de que quase a totalidade dos coronavírus tem alguma relação com morcegos e no mapa que mostra as áreas onde há mais espécies de morcegos o Brasil é quase totalmente vermelho), precisamos de uma nova maneira de fazer política (ou diplomacia, vide Bruno Latour), de uma nova estratégia para identificar o que é prioridade econômica, de um novo entendimento sobre nosso lugar (o lugar da Humanidade) no planeta (que inclui a ação também urgente para evitar a catástrofe climática). Não é pouca coisa: é juntar todo mundo (naturezas e culturas) para salvar o mundo. Sou ingênuo o bastante para acreditar que é possível encontrar recursos e vontades para travar essa batalha. Já estou arregaçando minhas mangas e descobrindo como posso participar da luta.

PS: continua neste post

saudade

28/06/2020

Quem lê este blog há muito tempo sabe que sou fã de Benjamin Biolay. Mesmo assim, não tive tempo ainda para escutar o disco que lançou na sexta-feira. Ouvi apenas a faixa de encerramento, curioso com seu título Interlagos (Saudade). Estava receoso, o álbum se chama Grand Prix. Nunca tive paixão por Fórmula 1. Então me aproximei com distanciamento sociocultural cuidadoso, mascarado. Mas logo a canção me conquistou, principalmente quando entra a voz de Bambi (que herança, ser filha e neta de gente tão brilhante) no refrão que fala em saudade, usando a palavra da língua portuguesa, e cantando que chora um Oceano Índico. Isso já seria o suficiente para me deixar totalmente satisfeito. Porém, há mais beleza: quase no final da letra surge o verso para São Paulo: “nesta cidade maior e menos suja que minha vida”. Que nossas vidas. Nesta Sampa francesa em quarentena.

The Meters

27/06/2020

Como passei tanto tempo da minha vida sem ouvir The Meters todos os dias? É vitamina pura. Estava planejando escrever sobre essa banda desde que soube da morte de Art Neville, seu tecladista, há quase um ano. Mas só agora consegui escutar todos os oito discos. Não com a atenção planejada. Sempre como trilha sonora para outras atividades pesadas-confinadas. Mas tudo fica leve e livre com essa música vigorosa e alegre (mesmo com tantas evidentes conexões com o blues do Delta do Mississipi). Então deu vontade de recomendar esse remédio, que pode ser útil para muita gente, artigo de primeira necessidade, atividade essencial.

Os dois primeiros discos, lançados em 1969, são instrumentais. Não pode haver banda – de guitarra, baixo, bateria e órgão – melhor. A mais perfeita lição do básico (incluindo toda a sofisticação) do funk, comparável aos mais celebrados momentos dos J.B.’s ou da Africa 70 (que eram quase big bands se comparadas ao minimalismo Meters). Tudo com produção de Allen Toussaint (preciso escrever também um post sobre sua obra aqui, agradecendo todo o bem que ele já me fez), som claríssimo e poderoso, poderia ser gravação de hoje (muita gente, em atitude vintage, tenta copiar aqueles sons de teclado). E como sempre digo: é música para se acabar de dançar sim, mas simultaneamente incentivando o processamento cerebral dos mais complexos conceitos estéticos.

Depois aparecem algumas faixas cantadas no disco Struttin’. A primeira é uma versão soul muito sutil de Wichita Lineman, uma das canções mais bonitas de todos os tempos, com aquela letra aparentemente surreal, mas muito concreta, de trabalhadores trepados em postes consertando cabos de linha telefônica, sozinhos no descampado no meio do nada dos EUA. O que era aéreo na voz de Glen Campbell se reconecta com a Terra sob o tratamento matemático dos Meters. A bateria de Zigaboo Modeliste (que nome incrível, que baterista divino) comenta tudo de forma inesperada.

O quarto álbum, Cabbage Alley, tem início heavy, com riffs que poderiam ser de Jimmy Page. A banda agora também tem percussionistas não oficiais. Há uma faixa chamada Gettin’ Funkier All the Time. Como se fosse possível. E é. Todos os detalhes merecem atenção, como o break de guitarra Shaft, ou os segundos iniciais que soam como ritmo de trás para frente. Depois vem Rejuvenation, disco de Hey Pocky A-Way (onde New Orleans fica totalmente evidente) ou Africa (que para meus ouvidos anuncia a Nação Zumbi). Sua capa sempre torna mais chique qualquer lista responsável de melhores discos da História.

Neste momento, The Meters fica chique mesmo. É a banda que toca na festa de lançamento de Venus and Mars, no transatlântico Queen Mary (época de pico na indústria fonográfica, Paul McCartney podia queimar dinheiro da gravadora). Mick Jagger estava na plateia. Resultado: convidou a turma de Art Neville para abrir as turnês de 1975 e 1976 dos Rolling Stones, não por acaso a época em que o disco Black and Blue estava em acabamento. Mesmo com essa exposição, e lançando o arrasta-pé (tem até um Mardi Gras Mambo, escancaradamente carnavalesco) que é Fire on the Bayou, os Meters não decolam comercialmente ou em popularidade, tanto que até hoje não são conhecidos por multidões. Bem que tentaram, o disco seguinte tinha um popozão na capa e uma primeira faixa que declarava já no título Disco is the Thing Today. Gosto de quem segue moda assim sem vergonha. E anuncia outras modas, como gravando Stop that Train, de Peter Tosh – lançada pelos Wailers (mais uma prova da ponte New Orleans/Jamaica, elemento fundamental para a invenção do reggae), no último album dos Meters. Um disco, com os metais do Tower of Power, chamado New Directions.

Depois tem muita coisa nova. Incluindo a maravilha Neville Brothers.

Mas todo dia é dia para (re)descobrir The Meters. Como se fosse o primeiro dia do mundo.

literatura e história

22/06/2020

Ouvi falar pela primeira vez no podcast Literature and History ouvindo outro podcast, o Arts and ideas da BBC, que embala muitas de minhas atividades há muito tempo. Era um episódio em que Philip Dodd entrevista até Larry Summers, ex-presidente de Harvard e secretário do Tesouro americano na presidência de Clinton etc., sobre o futuro das universidades, com atenção especial para o “declínio catastrófico” das Humanidades, cada vez com menos alunos e fundos. Dodd citou o exemplo contrastante do sucesso de Literature and History, com mais de 1 milhão de downloads, como elemento para apimentar o debate. Se um podcast que dedica quatro episódios, cada um com mais de 1 hora de duração, para a Eneida de Virgílio consegue atrair tantos ouvintes, por que os cursos universitários sobre os mesmo assuntos estão cada vez mais à míngua?

Não quero aqui entrar nesse debate muito complicado. Nem conheço bem esses números “catastróficos”. Quero apenas aumentar um pouquinho o número de downloads dos episódios de Literature and History. Doug Metzger, seu apresentador, certamente fala pelos cotovelos (mais de 2 horas sem parar sobre O Asno de Ouro!), mas é um contador de histórias literárias encantador. Como aprendo coisas novas (e a coisa que mais gosto na vida é aprender coisas novas) ouvindo sua voz nos fones. Foi assim, que descobri, por exemplo, que faço aniversário no dia em que a Oréstia foi encenada pela primeira vez. Isso deve explicar algumas de minhas maluquices cognitivas. Mas de qualquer forma: é sempre reconfortante ser lembrado, em tempos de pandemia, que a humanidade já enfrentou eras nas quais a barra pesou tanto quanto agora. O episódio mais recente é sobre a Judeia sob Herodes…

E no podcast descubro outros podcasts, ao infinito. Doug Metzger já recomendou, por exemplo, The Mirror of Antiquity ou Trojan War. Muita gente bacana compartilhando conhecimentos preciosos.