A notícia da morte de Cristina vítima do coronavírus me pegou num momento em que estava ouvindo novamente seus discos (comprei todos eles em formato digital – sim sou estranho e ainda compro discos, mesmo os que tenho em vinil ou CD) com o mesmo interesse das primeiras audições nos anos 1980. Acho que a primeira vez que li sobre sua música foi em crítica de Ezequiel Neves, exagerado como sempre, não sei em qual revista ou jornal. Começava citando os primeiros versos de Don’t be greedy: “toda vez que eu quero te beijar, você põe um cigarro entre os lábios”. Foi o suficiente para eu comprar o LP. Por um milagre encontrava todos os lançamentos da ZE Records, a gravadora de Cristina, importados, num sebo perto da minha casa. Nunca entendi como aquilo ia parar ali. Tenho ainda aquele disco natalino, com vinil branco (que inclui a maravilhosa Things fall apart de Cristina, a mais triste canção natalina de todos os tempos?). Ou aquele James White and The Blacks – com Bern Nix, na época também guitarrista de Ornette Coleman.
Acho que todos os primeiros discos de Kid Creole and The Coconuts tiveram lançamentos brasileiros. Tenho inclusive o compacto nacional das Coconuts com Did you have to love me like you did. August Darnell, que incarnava o Kid Creole, tinha fãs influentes por aqui. Lembro de uma edição do programa Mocidade Independente, uma das criações mais ousadas da TV no Brasil, com uma conversa entre Nelson Motta e Júlio Barroso comparando August Darnell a Marcel Duchamp. Isso rendeu: tanto que a banda fez pelo menos dois shows no Rio, quando não era comum turnês internacionais em território brasileiro – tive a sorte de ver uma apresentação memorável, em dia de temporal na cidade com carros boiando na Jardim Botânico, no Pão de Açúcar. Com Coatimundi, genial arranjador e percussionista (membro das sensacionais Dr. Buzzard’s Original Savannah Band e Don Armando’s Second Avenue Rhumba Band) que foi até capa da revista The Face, e tudo.
August Darnell e Andy Hernandes (Coatimundi) foram responsáveis pela sonoridade pós-latina pós-moderna do primeiro disco de Cristina. O segundo, mais “new wave”, foi produzido por Don Was (também produtor de Things fall apart). Os dois anunciaram muito o que várias cantoras (Madonna e turma) de mais sucesso fizeram conceitualmente a seguir. Tudo ali foi reprocessado pela máquina pop, inclusive a capa de Jean-Paul Goude para Sleep it off, que depois reaparece quase igual, também assinada por Goude, em capa de Grace Jones.
Essa maneira de entender/fazer arte era bem característica da ZE Records, gravadora que muitas vezes parecia um projeto situacionista de Malcolm McLaren ou happening na Factory de Andy Warhol. Sua história merece livro ou documentário. Os fundadores, Michael Zilkha e Michel Esteban, são também bons personagens para um filme. Leia todo o verbete da Wikipedia (e o verbetes biográficos sobre os dois fundadores) para comprovar. Tudo interessante e intrigante, pré e pós ZE. Zilkha, que foi casado com Cristina, virou bilionário da indústria de energia. Esteban lançou livro de Patti Smith (muito antes de Just kids) em Paris, namorou com Lizzy Mercier Descloux (é Serge Gainsbourg no início e no final deste vídeo?) e Anna Wintour (!!!) e morou em Salvador. Zilkha e Esteban foram apresentados por John Cale (em paralelo: Fear é bom disco para tempos de pandemia). Aliás, John Cale é uma espécie de “onde está Waly?” de momentos chaves do desenvolvimento estético do mundo meio século e tanto para cá.
Fiquei amigo de Arto Lindsay quando ele veio gravar com Lizzy Mercier Descloux no Rio, meio dos anos 1980. Arto, como quase todo artista interessante que atuava na Nova York pós-punk, teve conexão curiosa com o mundo ZE. Que geraram histórias ainda mais curiosas. Arto me contou que conheceu Blixa Bargeld (outro show carioca memorável: Einstürzende Neubauten no Rival, mesmo lugar onde vi Stereolab acompanhado por Caetano Veloso e Pedro Almodóvar – lembranças Dolce vita de quem já é muito velho…) numa Berlim ainda com o Muro. No final deste primeiro encontro, Blixa “cantou” Pini, pini, “sucesso” da ZE. Que agora tem até um barking dog edit.