Archive for abril \30\-03:00 2020

Cristina ZE

30/04/2020

A notícia da morte de Cristina vítima do coronavírus me pegou num momento em que estava ouvindo novamente seus discos (comprei todos eles em formato digital – sim sou estranho e ainda compro discos, mesmo os que tenho em vinil ou CD) com o mesmo interesse das primeiras audições nos anos 1980. Acho que a primeira vez que li sobre sua música foi em crítica de Ezequiel Neves, exagerado como sempre, não sei em qual revista ou jornal. Começava citando os primeiros versos de Don’t be greedy: “toda vez que eu quero te beijar, você põe um cigarro entre os lábios”. Foi o suficiente para eu comprar o LP. Por um milagre encontrava todos os lançamentos da ZE Records, a gravadora de Cristina, importados, num sebo perto da minha casa. Nunca entendi como aquilo ia parar ali. Tenho ainda aquele disco natalino, com vinil branco (que inclui a maravilhosa Things fall apart de Cristina, a mais triste canção natalina de todos os tempos?). Ou aquele James White and The Blacks – com Bern Nix, na época também guitarrista de Ornette Coleman.

Acho que todos os primeiros discos de Kid Creole and The Coconuts tiveram lançamentos brasileiros. Tenho inclusive o compacto nacional das Coconuts com Did you have to love me like you did. August Darnell, que incarnava o Kid Creole, tinha fãs influentes por aqui. Lembro de uma edição do programa Mocidade Independente, uma das criações mais ousadas da TV no Brasil, com uma conversa entre Nelson Motta e Júlio Barroso comparando August Darnell a Marcel Duchamp. Isso rendeu: tanto que a banda fez pelo menos dois shows no Rio, quando não era comum turnês internacionais em território brasileiro – tive a sorte de ver uma apresentação memorável, em dia de temporal na cidade com carros boiando na Jardim Botânico, no Pão de Açúcar. Com Coatimundi, genial arranjador e percussionista (membro das sensacionais Dr. Buzzard’s Original Savannah Band e Don Armando’s Second Avenue Rhumba Band) que foi até capa da revista The Face, e tudo.

August Darnell e Andy Hernandes (Coatimundi) foram responsáveis pela sonoridade pós-latina pós-moderna do primeiro disco de Cristina. O segundo, mais “new wave”, foi produzido por Don Was (também produtor de Things fall apart). Os dois anunciaram muito o que várias cantoras (Madonna e turma) de mais sucesso fizeram conceitualmente a seguir. Tudo ali foi reprocessado pela máquina pop, inclusive a capa de Jean-Paul Goude para Sleep it off, que depois reaparece quase igual, também assinada por Goude, em capa de Grace Jones.

Essa maneira de entender/fazer arte era bem característica da ZE Records, gravadora que muitas vezes parecia um projeto situacionista de Malcolm McLaren ou happening na Factory de Andy Warhol. Sua história merece livro ou documentário. Os fundadores, Michael Zilkha e Michel Esteban, são também bons personagens para um filme. Leia todo o verbete da Wikipedia (e o verbetes biográficos sobre os dois fundadores) para comprovar. Tudo interessante e intrigante, pré e pós ZE. Zilkha, que foi casado com Cristina, virou bilionário da indústria de energia. Esteban lançou livro de Patti Smith (muito antes de Just kids) em Paris, namorou com Lizzy Mercier Descloux (é Serge Gainsbourg no início e no final deste vídeo?) e Anna Wintour (!!!) e morou em Salvador. Zilkha e Esteban foram apresentados por John Cale (em paralelo: Fear é bom disco para tempos de pandemia). Aliás, John Cale é uma espécie de “onde está Waly?” de momentos chaves do desenvolvimento estético do mundo meio século e tanto para cá.

Fiquei amigo de Arto Lindsay quando ele veio gravar com Lizzy Mercier Descloux no Rio, meio dos anos 1980. Arto, como quase todo artista interessante que atuava na Nova York pós-punk, teve conexão curiosa com o mundo ZE. Que geraram histórias ainda mais curiosas. Arto me contou que conheceu Blixa Bargeld (outro show carioca memorável: Einstürzende Neubauten no Cine Íris, mesmo lugar onde vi Stereolab acompanhado por Caetano Veloso e Pedro Almodóvar – lembranças Dolce vita de quem já é muito velho…) numa Berlim ainda com o Muro. No final deste primeiro encontro, Blixa “cantou” Pini, pini, “sucesso” da ZE. Que agora tem até um barking dog edit.

fundo de quintal no Maranhão e em Bali

29/04/2020

Vladimir Cunha é grande mestre. Sempre me apresentando novidades importantes. MUITO importantes. Foi a pessoa que me fez escutar tecnobrega pela primeira vez. Antes, num show de sua banda Mangabezo, trouxe Mestre Laurentino para o palco (um tesouro que guardo como medalha: uma camisa que Mestre Laurentino me deu, cheia de desenhos brilhosos, bem característica de sua elegância nos palcos e fora dos palcos). Hoje reapareceu num email com pergunta com sotaque paraense: “Tás acompanhando os vídeos do Fundo de Quintal? Lembrei de ti. Seria o tipo da coisa que tu colocaria no Música do Brasil.” Música do Brasil foi o projeto que me aproximou de Vlad.

Não sei em que planeta eu estava vivendo. Fundo de Quintal para mim ainda era banda que revolucionou o samba carioca. Fui pesquisar, pois dica de Vlad não se ignora. Logo descobri o mais que mega repentino sucesso do Fundo de Quintal de Santo Antônio dos Lopes, Maranhão. Aqui o vídeo preferido do Vlad, e meu também. Os vídeos são até mais interessantes (mesmo com condenável ausência de distanciamento social na pandemia – afinal há casos fatais entre adolescentes brasileiros) que a música. Tem algo de teatro de vanguarda pós-tropicalista, pós-Oficina, pós-Asdrúbal.

Tem algo deste vídeo do Gabber Modus Operandi, minha banda preferida no momento (teve mega sucesso igualmente repentino, mas em festivais de música de vanguarda de todo o mundo). Montagem de imagens reais de rituais de fundo de quintal em Bali. Fui pesquisar também: os rituais se chamam jathilan. Ficaram pop e populares entre adolescentes recentemente. Parece que têm origem numa especie de cavalhada javanesa, onde eram encenadas batalhas contra colonizadores holandeses.

Mundo doidinho este nosso, produtor de vontade sempre renovada de rave pura.

Angélique Kidjo

28/04/2020

#GlassMinute é uma série para tempos de pandemia publicada por Philip Glass em suas redes sociais. São vídeos curtos, 1 minuto cada, mostrando artistas de todo o mundo se relacionando com suas composições. Ontem apareceu a figura e a voz imponentes de Angélique Kidjo cantando a parte da Sinfonia n° 12 (composta por Glass inspirada no disco Lodger de David Bowie) onde ouvimos a letra de Red Sails.

Pensei em Numa Ciro com seu canto a capella. Até a roupa tem semelhanças: uma Numa Ciro subitamente negra e africana, ao mesmo tempo a capella e acompanhada por orquestra sinfônica. (Aproveito para perguntar: quando Numa Ciro lançará seu excelente primeiro disco, onde o a capella aparece apenas na abertura e nas faixas seguintes é substituído por canto acompanhado por muitos instrumentos, tudo com brilhante produção de Lan Lanh?)

Pensei também na carreira cada vez mais excelente/brilhante da própria Angélique Kidjo. Quero elogiar principalmente seus dois discos mais recentes. Em 2018 lançou Remain in light, sua ousada versão para o disco do Talking Heads, regravado faixa a faixa. Em 2019 foi a vez de Celia, com suas versões para músicas gravadas por Célia Cruz (preciso tirar onda: tive a honra de entrevistar a rainha da salsa para uma série de programas de TV chamada Baila Caribe), acompanhada até pelo Sons of Kemet.

Os dois discos dão um nó no debate sobre apropriação cultural. Atualizam as transações rizomáticas do Atlântico Negro de forma surpreendente. A música afrocubana fez a viagem de volta sobre o oceano via ondas curtas (elas ainda existem?) e discos de 78rpm e foi copiada por músicos de Kinshasa na invenção da rumba zairense, acontecimento fundamental para todo o pop africano. O som de Fela Kuti, com sua releitura iorubá de James Brown, foi fundamental para a produção de Remain in light com Brian Eno. Angélique Kidjo torna essas conexões mais evidentes ainda, ou totalmente explícitas como como ao misturar o refrão de Lady de Fela Kuti com o “I’m still waiting” de Crosseyed and painless. Ou ao escolher várias canções que falam de candomblé/santeria para o repertório de Celia (Angélique Kidjo é iorubá pelo lado materno).

Idas e vindas, fluxos e refluxos, inclusive neste #GlassMinute de ontem: o disco Lodger, que também tem colaboração de Brian Eno, é o mais “africano” da discografia de Bowie, mesmo pensando no drum’n’bass de Earthling.

Angélique Kidjo sabe de tudo isso, e leva tudo isso adiante, com inteligência, criatividade e novas misturas impressionantes.

(Tenho tentado escrever sobre outras coisas, coisas fortes, animadoras. Mas está bem difícil.)

visão

26/04/2020

Acabo de ter uma visão incrível. Real. Lua nova e Vênus pertinho. Anoitecer. Fui investigar o resto do firmamento armado com aplicativo de observação celeste no celular. Quando encontrei o Cruzeiro do Sul (El karma de vivir al sur…) percebi umas luzes se movimentando velozmente, uma atrás da outra. Depois outras e outras, mais ou menos na mesma direção, de sudoeste para nordeste. Achei que estava alucinando. Muito alto para ser avião. Muito baixo para ser satélite. Chamei minha sobrinha para confirmar que eu não estava ficando maluco. Pensei até numa esquadrilha de discos voadores trazendo uma vacina para salvar nosso planeta, ou trazendo outro virus (a linguagem é um vírus vindo do espaço sideral…) Ela chegou a tempo de ver a última leva de ovnis, logo os mais exibidos: dois deles se contorceram emitindo uma luminosidade poderosa e assustadora. Depois sumiram.

Fui procurar disco voador e UFO no Twitter live. Nada. Pensei que poderia ser avião, vinham de uma direção paulistana. Baixei um aplicativo que rastreia voos. Foi interessante para ver como os céus da Terra estão vazios. Quase sempre avião de carga, ou voos da Qatar Airways sobre a Índia. Aqui, sobre o mapa do Brasil, nada que justificasse a minha visão. Fui procurar sites de rastreamento de satélites. Não imaginava que eram tantos, com vida social intensa. Logo no primeiro havia um chat com muitas mensagens recentes de gente de todo o Brasil vendo a mesma coisa. E a explicação: eram satélites do Grupo 4 da “missão” Starlink da SpaceX do Elon Musk.

Incrível mesmo. E bonito demais. Fiquei pensando: se a ciência foi capaz de produzir um enxame de satélites como este (parece que podem ser vistos sobre o Brasil todos os dias), como demora tanto para desenvolver uma vacina?

Fiquei com saudade de Lou Reed. Fiquei pensando em Laurie Anderson. Ela citou Satellites of love bem antes de casar com Lou Reed. Que casal bacana. Procurando Let X =X no YouTube encontrei este vídeo de sua performance no David Letterman em 1984. Veja a música e a entrevista no final. Que visão maravilhosa.

girafas, Buster Keaton e cia.

25/04/2020

Indicação para quem tem algum tempo em tempos de pandemia (e para quem entende inglês): ouvir as 509 aulas de filosofia, cada uma com cerca de 20 minutos de duração, disponíveis no site historyofphilosophy.net. É uma grandiosa obra em progresso realizada por Peter Adamson desde 2010. Para mim representa o melhor do espírito dos pioneiros da internet, antes da maluquice das redes sociais: o conhecimento tem que ser livre e ser facilmente compartilhado/compartilhável de preferência de graça. A aula mais recente – escrevo no dia 26 de abril de 2020 – foi publicada sete dias atrás. Peter Adamson não tem pressa: está ainda na Renascença. Mas já passou por 62 aulas sobre a história da filosofia indiana, outras 65 sobre filosofia islâmica, e desenvolve uma série em paralelo chamada Africana, sobre filosofia produzida no continente africano e na diáspora africana. É uma pretensão saudavelmente enciclopédica, que respeita a diversidade e a complexidade do pensamento humano. Por isso o subtítulo da empreitada é “sem nenhum gap”.

Muitas das aulas foram publicadas em livro, pela Oxford University Press. Mas gosto da experiência de poder ouvir cada uma delas nas situações mais improváveis. Já corri muito ouvindo a reflexões sobre o Bem em Plotino. Hoje de manhã estava varrendo a casa aprendendo sobre mente e memória, e a Trindade, em Santo Agostinho.

Alguma alma caridosa poderia traduzir essas aulas para português. Mas pensando bem: seria melhor imaginar um outro curso como esse em português. Pois Peter Adamson tem um estilo não exatamente intraduzível mas muito peculiar de ensinar. Faz sempre o mesmo tipo de piadas, que são charmosas por não terem graça nenhuma. Certamente ficariam sem sentido na boca de outras pessoas. Imagino que tudo seja escrito antes e lido (mas há também entrevistas com outros filósofos, algumas das maiores autoridades em vários temas): entre um “thus” e um “futhermore” lá vem um exemplo que envolve algo sobre girafas e Buster Keaton, ou o bordão “eu sei o que você está pensando” destinado diretamente para o aluno/ouvinte (nunca é o que eu estava realmente pensando). O que no início me irritava agora, muitas aulas depois, virou uma zona de conforto. E Peter Adamson passou a ter uma das vozes que me são mais familiares. Sou só agradecimento pelo tesouro que ele coloca a nosso dispor.