texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 20/07/2012
Já passou o bombardeio literário? Fico sempre bem impressionado com a repercussão da FLIP na imprensa. É um dos poucos eventos culturais – junto com as Fashion Weeks e o Rock in Rio – que sai dos segundos para os primeiros cadernos, disputando espaço e urgência editorial com as notícias mais importantes do dia. Considero divertido encontrar Jennifer Egan e Teju Cole, ou Carlito Azevedo homenageando Carlos Drummond de Andrade, entre inauguração pré-sal de Dilma Rousseff ou reunião de Angela Merkel para conter a crise do Euro.
Esse acompanhamento “em cima da hora” das palestras é antecedido, durante meses a fio, por muitas entrevistas exclusivas com convidados. Os anúncios das confirmações de cada escritor também ganham as manchetes. Até hoje, uma busca pelo meu nome na internet vai encontrar entre os primeiros resultados, e repetido em centenas de sites, o press-release da minha participação, em mesa secundária, na FLIP 2010. É a união entre trabalho de assessoria de imprensa impecável com receptividade extraordinária por parte dos jornalistas.
Amor eterno enquanto dura? Neste ano de 2012, notei um esfriamento no namoro FLIP-imprensa, que por pouco não virou momento tenso para discutir a relação. A participação de várias estrelas literárias foi descrita como “morna” ou “pálida”. Só me acalmei quando a Folha de S. Paulo decretou que a edição foi salva “aos 45 do 2º tempo”. O jornal reatou o romance com manchete bem assanhadinha na sua geralmente sisuda primeira página: “Com debates divertidos, Flip empolga no último dia”. (Vinha logo abaixo de “Novo presidente do Egito restaura Parlamento”.)
Divertido? Empolga? Fique tranquilo, não vou passar aqui sermão em jornalista e público que vão a encontros literários em busca de entretenimento. Não vou esbravejar contra a “lógica do consumo” que tomou conta da cobertura e da atitude da plateia mesmo em eventos de Alta Cultura. Sou contraditório (esse é meu bordão): gosto de Guy Debord e também do espetáculo. Porém, preciso defender com unhas e dentes o nosso direito ao morno, ao pálido, e – radicalizando – ao chato. Alguns dos espetáculos mais marcantes da minha vida, ou alguns livros que mais amei, foram de uma chatice avassaladora – e só atravessando vastos desertos de tédio (pois sou muito disciplinado) consegui perceber suas belezas. Se a chamada Alta Cultura perder essa permissão de nos entediar, muitas obras primas da Humanidade deixarão de ser criadas.
Também preciso defender os escritores malas. É muita crueldade exigir que, além de escrever bem, tenham talento para divertir ou esquentar plateias impacientes, com déficit de atenção ou com hiperatividade só controlada com muita ritalina. Ficou chato, não está a fim de enfrentar a chatice? Navegue pela internet do seu smartphone, mas mantenha um ouvido ligado no palco: quem sabe daqui a vinte minutos o escritor morno não solte uma frase brilhante de poucos caracteres e perfeitamente retuitável?
Sempre que participo de palestras, penso em Elizabeth Costello, personagem ranzinza de J. M. Coetzee. Suas falas públicas são desastrosas. Mesmo seu filho admite: “Não é o métier dela, a argumentação. Ela não deveria estar ali.” Mas os convites continuam, até para participar de ciclos de debates em cruzeiros marítimos. É uma escritora famosa e o mundo tem uma quantidade assombrosa e crescente de feiras literáriase eventos de “pensamento”, criando um mercado enorme que precisa ser alimentado com mais e mais atrações. O escritor aceita os convites insistentes. Dizer não a todos eles seria tão difícil quanto – para usar lugar comum em artigos sobre a FLIP – andar de salto alto nas ruas de Paraty. (Antônio Prata sugeriu, em coluna na Folha, que escritores emburrados, blasés e que não respondem “educadamente às perguntas que lhes fazem” deveriam ser tragados por um alçapão. Recomendo a mesma punição para algumas plateias, que poderiam procurar diversão alhures. Estou em dia raro de defesa de poderosos e eruditos: os escritores também voaram meio mundo, e o público muitas vezes os recebe com perguntas imbecis, que tiram qualquer um do sério. Cito novamente o filho da Elizabeth Costello: “palestras públicas atraem malucos e pirados como um cadáver atrai moscas.”)
Mesmo assim, com tanta demanda, talvez as Elizabeths Costellos do mundo (e esse tipo de maluco) tenham seus dias contados. Eventos tipo TED já nos acostumaram com conferências de 10 minutos todas embaladas por imagens velozes no power point e performances impecáveis/ensaiadas de palestrante transformado em show-man, com tiradas bem-humoradas, indignadas ou politicamente incorretas (é isso que esquenta o público) emitidas com timing perfeito. Ler demora, é chato: o grande público quer um resumo divertido.
Ou quer apenas um ponto de encontro badalado, para ver e ser visto, e depois ter assunto para comentar no Facebook. O Facebook parece ser destino e modelo para tudo (é o condomínio fechado que engoliu a cidade). Como bem identificou meu amigo José Marcelo Zacchi, hoje diretor do IETS (e uma das pessoas que mais gosto de copiar): essa rede social se tornou tão poderosa por apostar que a desculpa para interagir (FLIP, show de pagode etc.) é secundária. O que o povo quer é interação. A rede de pessoas toma o lugar da rede dos conteúdos – o que pode ser frustrante pra quem gosta de conteúdo, “mas é inegavelmente humano até o fim.”