Angélique Kidjo

#GlassMinute é uma série para tempos de pandemia publicada por Philip Glass em suas redes sociais. São vídeos curtos, 1 minuto cada, mostrando artistas de todo o mundo se relacionando com suas composições. Ontem apareceu a figura e a voz imponentes de Angélique Kidjo cantando a parte da Sinfonia n° 12 (composta por Glass inspirada no disco Lodger de David Bowie) onde ouvimos a letra de Red Sails.

Pensei em Numa Ciro com seu canto a capella. Até a roupa tem semelhanças: uma Numa Ciro subitamente negra e africana, ao mesmo tempo a capella e acompanhada por orquestra sinfônica. (Aproveito para perguntar: quando Numa Ciro lançará seu excelente primeiro disco, onde o a capella aparece apenas na abertura e nas faixas seguintes é substituído por canto acompanhado por muitos instrumentos, tudo com brilhante produção de Lan Lanh?)

Pensei também na carreira cada vez mais excelente/brilhante da própria Angélique Kidjo. Quero elogiar principalmente seus dois discos mais recentes. Em 2018 lançou Remain in light, sua ousada versão para o disco do Talking Heads, regravado faixa a faixa. Em 2019 foi a vez de Celia, com suas versões para músicas gravadas por Célia Cruz (preciso tirar onda: tive a honra de entrevistar a rainha da salsa para uma série de programas de TV chamada Baila Caribe), acompanhada até pelo Sons of Kemet.

Os dois discos dão um nó no debate sobre apropriação cultural. Atualizam as transações rizomáticas do Atlântico Negro de forma surpreendente. A música afrocubana fez a viagem de volta sobre o oceano via ondas curtas (elas ainda existem?) e discos de 78rpm e foi copiada por músicos de Kinshasa na invenção da rumba zairense, acontecimento fundamental para todo o pop africano. O som de Fela Kuti, com sua releitura iorubá de James Brown, foi fundamental para a produção de Remain in light com Brian Eno. Angélique Kidjo torna essas conexões mais evidentes ainda, ou totalmente explícitas como como ao misturar o refrão de Lady de Fela Kuti com o “I’m still waiting” de Crosseyed and painless. Ou ao escolher várias canções que falam de candomblé/santeria para o repertório de Celia (Angélique Kidjo é iorubá pelo lado materno).

Idas e vindas, fluxos e refluxos, inclusive neste #GlassMinute de ontem: o disco Lodger, que também tem colaboração de Brian Eno, é o mais “africano” da discografia de Bowie, mesmo pensando no drum’n’bass de Earthling.

Angélique Kidjo sabe de tudo isso, e leva tudo isso adiante, com inteligência, criatividade e novas misturas impressionantes.

(Tenho tentado escrever sobre outras coisas, coisas fortes, animadoras. Mas está bem difícil.)

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