texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 08-07-2011
Eliane Radigue, que completará 80 anos em 2012, apareceu nesta coluna na semana passada, entre Brian Eno e Luc Ferrari, e como compositora pioneira de música eletrônica/concreta, além de parceira de xadrez de Marcel Duchamp. Ela merece muito mais espaço. O melhor seria realizar no Rio de Janeiro uma retrospectiva de sua obra, como a que aconteceu em Londres, entre 12 e 26 de junho. Tive a sorte de estar nas margens do rio Tâmisa num desses dias e fui ouvir a apresentação de “Jetsun Mila”, uma de suas criações mais amadas, na igreja de St. Stephen Walbrook. Adoraria poder ter a mesma experiência dentro da Igreja de São Francisco da Penitência, ali no Convento de Santo Antônio, deslumbrantemente restaurada, um dos lugares mais bonitos do mundo.
“Jetsun Mila” é composição de 1986, já da fase budista de Eliane Radigue, feita em sintetizador ARP. Inspirada na vida de Milarepa, iogue e poeta tibetano do século XI, a música tem 84 minutos. Na igreja londrina o som estava distribuído em seis alto-falantes, cuja fonte era um único laptop, comandado por assistente da compositora. Interessante notar a simplificação recente dos concertos de música eletrônica, ou eletro-acústica, ou concreta. Ainda nos anos 90 vi apresentações com muitos equipamentos no palco, sobretudo gravadores de rolo. Já neste século, estive num concerto de Pierre Henry, de quem Eliane Radigue foi assistente, que tinha início com a introdução de um CD numa máquina, gesto realizado com solenidade. A banalidade tecnológica da situação – um clique de mouse no laptop – não faz o ritual perder sua pompa. O público reage como se estivesse diante de uma orquestra e seu maestro genial.
A igreja de St. Stephen Walbrook (nosso querido Santo Estevão, que também já foi homenageado em coluna passada, quando escrevi sobre a banda St. Etienne) reforça o clima solene. Mesmo sendo o templo mais racional, limpo, exato no qual já estive presente (por isso gostaria de ouvir a mesma música em ambiente barroco carioca), as vibrações místicas são evidentes (a razão é também portal para a iluminação…) Seu arquiteto foi Christopher Wren, que ali experimentou várias idéias que depois ficariam mais grandiosas na Catedral de St. Paul. Em St. Stephen tudo tem escala reduzida, e a simetria é muito mais rigorosa, sem ornamentos excessivos. Tal limpeza incomodou gerações de fiéis que tentaram embelezar o ambiente com pinturas, madeiras e até vidros coloridos nas janelas. Só depois da reconstrução da igreja, que foi vítima dos bombardeios da Segunda Guerra, é que suas características originais reapareceram. Com uma adição fundamental/monumental, mas totalmente harmônica com os planos de Wren: um altar do escultor Henry Moore.
O altar é uma enorme pedra redonda de mármore (vindo da Itália, do mesmo local onde Michelangelo se abastecia), que pesa várias toneladas – e o peso é bem “visível”. Sua localização também mudou: não fica mais num dos lados da igreja, mas no centro, e os bancos para os fiéis, de design igualmente moderno, formam vários polígonos (palavra que tem lugar de destaque em Crystalline, nova excelente música da Bjork) em torno da obra radicalmente moderna de Moore. Deus está no centro e não em um dos cantos do edifício sagrado.
Escutamos a música de Eliane Radigue sentados nos bancos da igreja, virados para o altar central, sem padre para celebrar a cerimônia. A música vinha de nossas costas, ou dos alto-falantes colocados no outro lado da igreja. À nossa frente o bloco de mármore de Henry Moore, que apesar de branco, lembrava (na minha imaginação sempre surpreendente, até para mim mesmo) o monólito negro de 2001, de Kubrick. Contei quantos éramos no público: 62 pessoas, entre elas 17 mulheres e um homem de terno preto, camisa preta e gravata vermelha. Quase todos com os olhos fechados (o cara do meu lado não moveu um único músculo durante os 84 minutos da música). Eu me sentia meio traidor por estar olhando os outros, em vez de meditar no meu cantinho. Mas garanto que estava meditando de olhos abertos e andando, com consciência certamente alterada, tendo que encontrar meu não-lugar entre duas tradições religiosas: aquela visualmente cristã, mesmo com o contraste clássico-moderno Wren-Moore, com a outra auditivamente budista Milapera-Radigue, talvez tudo unido por uma terceira (sub)corrente, absolutamente moderna, Radigue-Moore.
O resultado psicodélico de tudo isso (peço desculpa mais uma vez pela minha imaginação destrambelhada): era como nós, o público, fossêmos aqueles hippies que nos anos 60 tentaram fazer o Pentágono levitar. O altar pesadão de mármore, que ganha beleza de seu peso, agora – sob efeito da música – parecia leve, sua concretude se esvaziava com o toque da varinha de condão sonora tibetana-eletrônica. A pedra, duplamente abençoada (pelas rezas cristãs e budistas), tornava-se milagrosamente vazia.
Brian Eno acaba de lançar um novo disco, chamada “Drums between the bells”, que pode ser escutado na íntegra no site da revista Wired. É uma colaboração de Eno com o poeta Rick Holland. A música acompanha a poesia falada por muitas vozes diferentes (e uma capa com foto de São Paulo, não a catedral, mas nossa vizinha de ponte aérea – segundo Eno “a cidade mais cidade-esca do mundo ocidental” [“the most city-ish city in the Western world”]). Quando ouvi a primeira faixa, fui transportado novamente para a igreja de St. Stephen: seu título é “Abençoe este espaço”. Só posso responder: amém.