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biografias 2

23/11/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 22/11/2013

Outra lição da “Batalha das Biografias”: também foi impressionante ver a união de vários grupos, que até então me pareciam inconciliáveis, formando tropa de elite animadíssima contra os componentes do Procure Saber. Não me lembro de ter visto antes a imprensa xingada de PIG abraçada com seus detratores, os cibermalucos de direita elogiando os de esquerda, a(o)s dona(o)s de casa fazendo coro para o juridiquês de ex-ministro(a)s do STF, todos caminhando e cantando com as mesmas palavras de ordem, em manifestação nacional.

Dava para perceber a alegria da perda da virgindade: estamos pela primeira vez falando mal de Caetano, Gil e Chico! Os medalhões juntos e misturados na berlinda! O clima era de travessura, que tomou conta do país inteiro, ou pelo menos das multidões que acreditam – com alguma razão – que biografias são versões intelectualmente corretas – estilo New Yorker – de números antigos da revista Caras.

Para ser mais preciso: em muitos momentos as biografias não pareciam ser o foco, mas sim pretexto para linchamento, como se o público da MPB estivesse há anos esperando qualquer deslize de seus ídolos para dar vazão a um ódio que ninguém notava dentro de nossos corações vagabundos.

Logo surgiram tentativas para explicar a comoção carnavalesca, com pierrôs e colombinas decepcionados. Na Folha, Vinicius Mota celebrou a “derrota esmagadora do (ex-)grupo Procure Saber” como “sinal de amadurecimento do país” que finalmente deixa para trás um padrão no qual “Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil nunca perdiam.” Seria pensamento isolado, se não tivesse sido complementado dias depois por editorial da mesma Folha, transformando a opinião do jornalista em visão corporativa. O texto, algo panfletário, tinha como título “Crepúsculo dos ídolos”, mas com conteúdo distante da transvaloração dos valores pregada por Nietzsche.

O jornal paulistano apurou que Eduardo Campos e Marina Silva estariam programando encontro com artistas no Rio. Em tom professoral admite que “não há nada de condenável em tais confraternizações”, mas questiona sua eficácia eleitoral: “A dúvida é se a presença dessas celebridades ainda se reveste da importância que teve em momentos mais turvos da história política.” Mencionando a Batalha das Biografias, chega a um diagnóstico: “as celebridades, em especial as da música popular, veem diminuir a admiração que mereciam.” A Folha bate palmas encabuladas: “Melhor assim, talvez; humanizam-se todos”. Afinal a democracia estimula “a participação sem distinção”.

Ao ler esse editorial, foi inevitável me lembrar de outro filósofo alemão, Peter Sloterdijk. Em seu livro “O desprezo das massas”, ele afirma que a “mais poderosa máxima política” da modernidade está relacionada com o projeto de “desenvolver a massa como sujeito”, isto é, “vale a motivação de cuidar para que todo poder e todas as formas válidas de expressão partam de muitos.” Então, é preciso acabar com todas as hierarquias verticalizantes que antes distinguiam os poucos poderosos das multidões servis. As distinções se tornam “não apenas supérfluas como também indecentes”: “todo tipo de diferença antropológica teria de ser declarado irreal e inválido.”

Abaixo os “achadores de diferenças”. Abaixo os nobres, os santos, os sábios, e – última trincheira – os talentosos. A abolição dos talentosos é “mais dificultosa para a sociedade moderna”, pois a burguesia, ao deslegitimar a nobreza feudal, “se reportou a uma nobreza mais válida, à aristocracia natural do talento e do gênio.” Não importa: o trator da “paixão da dignidade para todos” passa por cima de qualquer bastião hierárquico. Sloterdijk arremata: “Talento, como até agora foi entendido, só incomoda. Para aquele que o possui ele não passa de uma armadilha; para aquele que não o possui, somente um aborrecimento. Genius go home.”

No Brasil, a democratização política coincidiu com a invenção/popularização da internet. Seguindo “alguns intérpretes de Hegel”, Sloterdijk desenvolve a hipótese de ser o mundo moderno “uma arena de lutas generalizadas por reconhecimento”, cujo valor “está correlacionado com a escassez.” Ou estava. Agora temos a abundância da realidade virtual, com microespaços de reconhecimento até para o look do dia/verdade política de adolescentes de qualquer vereda do Grande Sertão. O crepúsculo não é só dos ídolos (que, afinal de contas, sempre perderam – lembro aqui apenas um exemplo: o disco “Muito”, com “Terra” e “Sampa”, foi estraçalhado pela crítica e fracasso de vendas), mas de todos os “formadores de opinião”, incluindo os órgãos de imprensa que antes comercializam a escassez de canais para emissão opinativa.

Monteiro Lobato

26/11/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 18/11/2011

Fui convidado para participar de “Livros que amei”, programa criado por Suzana Macedo a ser exibido em breve na TV Futura. A missão: escolher três livros marcantes e comentá-los numa entrevista. Parece simples, mas demorei meses até chegar na seleção definitiva. Resolvi não pensar em “melhores livros”, nem nos que conheço mais, nem nos que me deixariam bem na fita. Escolhi os livros que são meus melhores companheiros, aqueles aos quais sempre volto para aprender a produzir alegria e força quando tudo parece conspirar para nos entristecer/enfraquecer. Pensei inicialmente na “Descoberta do mundo”, de Clarice Lispector, sobretudo por causa daquelas páginas sublimes sobre o estado de graça. Queria também falar sobre “A invasão divina”, de Philip K. Dick. Mas acabei optando por “Vida conversável”, de Agostinho da Silva, e “Uma estranha realidade”, de Carlos Castaneda. Muito estranho. Nunca li esses livros do começo ao fim. Mas sempre releio vários de seus trechos, e o efeito é certeiro: saio da releitura reanimado.

Minha única escolha que nunca mais tinha relido foi “O minotauro”, de Monteiro Lobato. O programa da Suzana me fez retomar a paixão da infância, talvez o motivo principal para eu gostar de ler, ou até ser quem eu sou. Minha memória é péssima. De “O minotauro” só me lembrava da cena que revela que Tia Nastácia se manteve viva por causa de seus bolinhos, que fritava para o monstro do labirinto de Creta. Gosto dessas narrativas em que pequenas delícias resolvem grandes problemas. Isso também acontece nas “Cosmicômicas” de Ítalo Calvino, onde o Big Bang teve início devido a um tagliatelle. Porém, sabia que deveria haver outras coisas deliciosas nas aventuras da turminha de Monteiro Lobato pela Grécia antiga e mitológica.

A releitura, mais de 40 anos depois, me deixou novamente encantado. E espantado. Não tinha ideia da quantidade de informações concentradas a cada página. Era aula mesmo: de história, filosofia, arquitetura, geografia, política. Acho difícil também existir mais convicto ou mais belo elogio da democracia. Quando Pedrinho pergunta para Dona Benta a verdadeira causa para a Grécia ter sido “uma danadinha” com tantas maravilhas legadas para a humanidade (“nunca houve no mundo tão intensa produção de beleza”), Dona Benta é clara: “Liberdade, meu filho.” E acrescenta: “Porque para o homem o clima ‘certo’ é um só: o da liberdade. Só nesse clima o homem se sente feliz e prospera harmoniosamente.” A conclusão, depois de pequena lição de pedagogia contra “os cordéis do ‘não pode'”, é fabulosa: ” A Grécia, meus filhos, foi o Sítio do Picapau Amarelo da antiguidade, foi a terra da Imaginação às soltas. Por isso floresceu como um pé de ipê.”

Claro: Dona Benta não era boba, conhecia igualmente os defeitos gregos, sobretudo a escravidão. Chegou a repreender seu ídolo Péricles: “Não é o povo quem governa Atenas, sim a pequena classe dos cidadãos. Povo é a população inteira e aqui há 400 mil escravos que não têm direito ao voto. Isto é injusto e será fatal para a Grécia.” Mesmo assim, toda essa convicção democrática não impede que o livro seja vítima de inúmeros preconceitos, que revelam um elitismo perigoso de seu autor. Ao perceber que Fídias, o arquiteto do Partenão, não sabe o que é máquina ou gasolina, Emília ri: “Vivemos no nosso mundo moderno a falar da inteligência grega e no entanto os gregos não entendem nem o que qualquer negrinho lá do sítio entende…” Caímos então no racismo de Monteiro Lobato, aspecto que alguns críticos julgam suficiente para sugerir a retirada de sua obra juvenil mesmo da lista de sugestões do nosso currículo escolar.

Pronto vou falar: considero essa sugestão tão estúpida quanto o racismo. Esses críticos acreditam que as crianças são imbecis com cabeças facilmente feitas pelos livros, games, filmes, programas de TV. Ao reler “O Minotauro” passei a me considerar uma prova viva contra essa tese simplista. (Quem quiser pode me acusar de ingenuidade.) Não tenho dúvida de que a obra de Monteiro Lobato foi a que mais me influenciou na vida. Li tudo, várias vezes, numa época em que, diz a tese, somos mais influenciáveis. Não sabia o que era racismo naquele tempo – hoje sei que Tia Nastácia era tratada com inadmissível preconceito. Isso não me tornou preconceituoso. Acho até que Tia Nastácia é a principal origem de meu amor pela cultura afrobrasileira e do meu combate ao racismo.

Porém, nessa releitura de agora, fiquei mais impressionado com outro preconceito de Monteiro Lobato, aquele contra tudo que é moderno, da arte pós-cubista às cidades grandes. Há muitos trechos intoleráveis. Por exemplo: ao notar a calma das ruas de Atenas, “Dona Benta concordou que o progresso mecânico só servia para amargurar a existência dos homens.” Em outra passagem ela conta que a beleza grega foi “substituída por outra, isto é, pelo horrendo grotesco que para os meus modernos constituirá a última palavra da beleza.”

Logo Dona Benta, que sempre considerei avó querida. Não gosto menos dela por ter tanto tempo depois descoberto esse seu lado tão reacionário. Ainda bem que livros não fazem nossa cabeça, desse jeito literal. Quanto ao modernismo, virei o oposto de Dona Benta. Sinal de que ela me ensinou também a ser crítico, crítico de tudo, inclusive de seus próprios ensinamentos. Tomara que outras crianças não sejam condenadas a viver sem conhecer os seus serões.

Gov 2.0

23/02/2011

texto publicado em minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/01/2011

Na coluna da semana passada, apenas para introduzir o debate sobre classificação indicativa, falei de Gov 2.0. O assunto merece mais atenção do que aquele parágrafo introdutório. Tudo bem, o Segundo Caderno não é lugar para falar de política sem ligação clara com o mundo da cultura. Porém, não tenho nem dúvida: por trás do Gov 2.0 está acontecendo uma das transformações culturais mais interessantes deste novo século, que redefine o lugar da política em nossas vidas. O fato de ter o onipresente 2.0 na sigla é apenas mais uma evidência de suas conexões para além do Estado, para além da política convencional.

Hoje tudo é 2.0. Há medicina 2.0, educação 2.0, marketing 2.0 etc. Isso tem a ver com a utilização da internet em todos esses ambientes, mas não é só a tecnologia que importa, ou o que mais importa. A mudança principal acontece no relacionamento entre as pessoas, sendo praticamente irrelevante se estão em contato para fazer publicidade, política ou tratamento médico. Cada uma dessas áreas, mesmo com a resistência de antigos detentores do poder, tem agora que se abrir para a colaboração de todos. Não são mais caminhos de mão única, do centro para a periferia dos vários saberes e práticas. São redes, de muitos para muitos, sem distinção precisa entre quem fala e quem escuta, quem produz o “conteúdo” e quem o consome, quem manda e quem obedece.

2.0, em muitos contextos, é quase sinônimo de aberto, seguindo o modelo informático do “código aberto” (ou “open source”, em inglês, que por sua vez é quase sinônimo de “free software“, mas não há espaço aqui para abordar as sutis – e não tão sutis assim – diferenças políticas nas quais essas denominações se fundamentam). Gov 2.0 pode ser traduzido por governo aberto, ou “open government”. Tem gente que diz que hoje a abertura da internet está ameaçada (ou “a web está morta“) por causa de fatores tão díspares quanto o modelo de negócios do iPad, as “apps” de celulares, a reação anti-ou-pró-wikileaks, ou o cada vez mais poderoso combate reacionário contra a “neutralidade da rede“. Talvez tenham razão, se olharmos só para a rede. Mas se considerarmos a maneira como os princípios “libertários” da abertura da rede se “infiltraram” no mundo “off-line” (será que ainda dá para separar on-line de off-line?), o panorama é mais favorável a ambições democráticas. Um dos elementos dessa “expansão” aberta é bem visível: os pensamentos de muitos governos estão cada vez mais parecidos com os dos hackers.

As experiências do governo brasileiro felizmente não são únicas. Há países em que a “abertura” do modo de se governar acontece de forma mais planejada e consistente. A Casa Branca, por exemplo, criou a Open Government Initiative, que tem como lema “transparência, participação, colaboração”. São palavras do presidente Obama: “A abertura vai fortalecer nossa democracia e promover eficiência e eficácia no governo.” Já os australianos criaram um termo mais viril: não fizeram uma iniciativa e sim uma Government 2.0 Taskforce, que busca “promover transparência, inovação e agregar valor à informação governamental.”

Acompanho com mais atenção as experiência do governo do Reino Unido, até porque muitas delas são lideradas por Tim Berners-Lee, o inventor da web 1.0, que já promete a 3.0 (ou web semântica, em que os dados poderão “conversar” entre si, produzindo novos usos para as informações, sem interferência humana). Na “Spending challenge“, a Secretaria do Tesouro de Sua Majestade organizou uma elaborada consulta para que todos os cidadãos pudessem sugerir cortes de orçamento. Em “YouFreedom“, os súditos da Rainha podiam dizer que leis queriam ver abolidas.

Na semana passada, o site O’Reilly Radar (capitaneado por Tim O’Reilly, o inventor do termo “web 2.0” e o organizador do Gov 2.0 Summit que aconteceu em Washington em 2011) publicou uma lista de organizações de “inovação cívica” cujos trabalhos devem ser acompanhados de perto em 2011. Só ideias extremamente bacanas. Como a da organização “Code for America“, que tem como objetivo criar aplicações que ajudarão o governo a oferecer melhores serviços para os cidadãos. Ou a “Civic Commons“, que inventa sistemas para que prefeituras possam compartilhar softwares, não precisando pagar para criar programas que já foram desenvolvidos em outras cidades, ou mesmo em outras secretarias da mesma cidade.

Claro que nada disso significa a conquista da utopia. O motor da democracia é a crise, e maiores liberdades são conquistadas em meio a crises constantes. Como diz o historiador Pierre Rosanvallon, do Collège de France, em debate recente promovido pela revista “Le nouvel observateur“: o ideal democrático se sustenta sobre eternas contradições: entre a representação e o “movimento direto”; entre votar em quem pensa como pensamos e votar nos governantes mais eficientes; entre o “povo” e o “indivíduo”; entre a eleição como momento do “yes we can” e a pós-eleição como império das dificuldades para se fazer o que podemos…

Rosavallon alerta: “formas de progresso democrático podem também mascarar tentações de regressão.” É preciso que todas essas ferramentas de governo colaborativo não se aliem a populismos que querem promover a descrença total em processos eleitorais.  O Gov 2.0 vai precisar sempre de um bom Gov 1.0.