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gerações

09/02/2013

texto publicaldo na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 08/02/2012

Outro dia tentei fazer uma adolescente (13 anos) compreender que não é bacana ser descuidada com seus pertences a ponto de ter que trocar de celular a cada 30 dias. Ela não entendia meus argumentos: “mas os celulares não são dados de graça pela operadora?” Expliquei pacientemente: “não existe boca totalmente livre neste mundo”; os custos do aparelho estão incluídos no plano de serviços ou são retirados dos pontos do programa de fidelidade (e não podem ser encarados como brindes). Não adiantou: eu mesmo não acreditava que minhas palavras iriam convencê-la a mudar de comportamento. Senti até vertigem ao contemplar o abismo geracional que causava ruído em nossa comunicação.

Já apontei, em vários textos desta coluna, a questão central para o desentendimento: fui criado num mundo da escassez; os novos adolescentes estão acostumados com a abundância. Não existe tradução fácil entre essas duas economias. Quem tem a minha idade se lembra do tempo em que fazer interurbano custava uma fortuna. DDDs só eram utilizadas em ocasiões solenes. Hoje qualquer pirralho pode deixar o Skype ligado 24 horas por dia para ficar em contato direto com primos que moram em Hong Kong. Ainda sinto leve pânico quando vejo isso acontecer, esperando a conta astronômica, ou encarando tudo como desperdício. Os novos habitantes deste planeta já são produtos de uma cultura do “ilimitado” (começando pelos SMSs), mesmo com bombardeio da publicidade do apocalipse ecológico.

Meu discurso “o aparelho é pago pelo plano” ainda faz algum sentido, mas qualquer pessoa pode constatar: objetos industrializados, mesmo com tecnologia de ponta, estão ficando muito mais baratos, e acessíveis para um número a todo instante maior de pessoas (portanto, não estou tratando de problema de crianças da antiga classe média – o abastamento virou característica transclasse). O mercado já sabe: pagamos cada vez mais por serviço e não por coisas. E esse barateamento daquilo que é “material” tende a se radicalizar.

Em sua coluna mais recente, publicada no jornal The Austin Chronicle (olha a abundância aí, gente: pouco tempo atrás seria impossível ter acesso rápido a essa publicação sem viajar para o Texas), meu guru Michael Ventura comenta a robotização avassaladora das fábricas de coisas palpáveis. Inclusive nas plantações, exércitos de “agribots” vieram para ficar e cortar custos na produção de alimentos. Mesmo os robôs são produzidos por outros robôs. Seus preços diminuem com velocidade espantosa, o que aumenta o número de empresas que podem utilizá-los.

Com a chegada das impressoras 3-D, nossas fábricas robotizadas particulares, outros custos desaparecem: distribuição, intermediários do comércio, manutenção de equipamento etc. O valor de todas as coisas vai se aproximar de zero? Então como ensinar para as novas gerações que as coisas (facilmente substituíveis) têm algum valor? O recurso mais óbvio é produzir escassez artificial (por exemplo: o custo de fabricação de uma mochila na China é US$5, mas ao ganhar marca “exclusiva” seu preço fica 25 vezes maior). Mas até quando esse truque simbólico vai funcionar?

Ventura se preocupa mais com outra consequência deste nosso estado “das” coisas: além do preço dos objetos, o número de empregos também encolhe (até os serviços são dominados por máquinas: você não sente um frio na espinha quando liga para a operadora do seu celular e o atendente virtual sabe sua identidade, ouve sua voz e ainda diz “entendi”?). Então: “o que as pessoas vão fazer?” Com apenas robôs trabalhando, que regime político e econômico dará sentido ao mundo da produção? Veredito: “Não há mecanismo para parar a nova revolução industrial (e não estou dizendo que deva haver). Mas a eliminação da maioria dos seres humanos dos meios de produção mudará, bem, tudo.” Outra pergunta de Ventura: estamos condenados a virar filósofos procurando resposta para a velha pergunta sobre a serventia dos seres humanos, que pelo que parece só causam problemas para um mundo que está descobrindo maneiras de se complexificar sem nossa presença?

Agostinho da Silva (ele sempre reaparece por aqui) resume assim a história da Humanidade: o desejo de cada vez mais coisas nos levou a inventar um parque industrial que agora, “se bem utilizado”, pode ser instrumento de nossa libertação, criando economia da quietação, “que não semeie em nós o desejo”. Em outras palavras: com tudo “de graça” descobriremos que não precisamos de tantas coisas, e poderemos cuidar melhor do que já temos.

Prego a quietação e desejo bom carnaval para todos. Não tão contraditório assim: a folia nos ensina que, com quase nada, podemos ser abundantemente alegres.

1967-2011

31/12/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 23/12/2011

Provavelmente, o acontecimento musical mais importante de 2011, entre “formadores de opinião”, foi o lançamento não de disco, mas sim de livro: o “Retromania”, de Simon Reynolds. Ninguém precisa ler suas 496 páginas para conhecer o conteúdo. As ideias de “Retromania” foram tão debatidas e enriquecidas na internet que o texto original parece ultrapassado. Isso vai acontecer cada vez mais com todos os produtos culturais, que se tornarão obras em progresso, sempre em modo “beta”, sem edição definitiva, ou com versão final logo transformada em matéria prima para remixagens eternas – o que vem confirmar parte da tese de “Retromania”, que vivemos um tempo em que o novo é resultado de um “revival” ininterrupto de modas passadas.

O próprio Simon Reynolds já aproveitou a onda retrô. É de sua autoria a obra (“Rip it up and start again”) que se tornou referência básica para o conhecimento sobre a era pós-punk, na qual uma parcela influente de nossa juventude vai viver para sempre, como se a cultura da humanidade inteira se resumisse a um show do Gang of Four em 1981. Vamos ter que nos acostumar com essas tribos que habitam tempos históricos culturais diferentes, tudo ao mesmo tempo agora. Mesmo cultuando o passado, elas vão ser anunciadas como o futuro – ou pelo menos como a última moda de quem está mais conectado com presente, sendo protagonista da definição do espírito do seu tempo (não importa que sua sonoridade tenha sido criada pela geração de seus pais ou avós). Então resta a dúvida: ninguém vai mais criar nada realmente novo? Em música: nunca mais vamos ouvir o que ninguém nunca ouviu antes?

Diante dessa garotada hipster-passadista, fico alegre/espantado ao constatar que os discos mais inovadores de 2011 foram produzidos por artistas de mais de 60 anos. Mais interessante ainda: meus dois lançamentos preferidos do ano têm a ver com 1967.

O primeiro foi gravado em 1967, mas não tinha sido lançado até o mês passado. É “Smile”, o disco inacabado dos Beach Boys. Imaginava que nunca iria ouvi-lo de cabo a rabo, e teria me contentar com os fragmentos que apareceram como faixas bônus de caixas de CD ou com a regravação que Brian Wilson lançou em 2004. Tudo já era uma maravilha, mas não me preparou para a mixagem/masterização que 2011 nos deu de presente. Muita música pop-experimental recente, de Jim O’Rourke a Panda Bear, tentou levar para frente as lições dos Beach Boys, mas agora comprovamos que nada foi tão radical como o “original”. Smile poderá ainda por muito anos nos servir de guia para o futuro da arte. Impossível não ficar desconcertado ao perceber que aquilo foi gravado sem mesas de muitos canais, sem computadores, sem samplers, sem softwares como Pro Tools, com músicos tocando e cantando juntos (como conseguiam fazer isso? mesmo hoje com toda a tecnologia, seria quase impossível).

Outra razão para desconcerto: o experimentalismo de “Smile” está sempre a serviço da beleza totalmente angelical, beleza que dói de tão bela, mais que aquele trecho adorado da Quinta Sinfonia do Sibelius. Não dá para existir algo que supere “Surf’s Up”, mesmo com letra escalafobética de Van Dyke Parks. É para se ajoelhar e ficar chorando na frente das caixas de som ou sob o fone de ouvido do Dr. Dre.

O outro disco mais inovador de 2011 tem a ver com 1967 por tabela. É “Recanto”, de Gal Costa. Em 1967, ela e Caetano Veloso lançaram “Domingo”. 44 anos depois os amigos baianos se reúnem novamente para nos presentear com um álbum que quase se chamou Segunda. Esperava algo assim da música popular do Brasil há anos. Imaginava que seria obra de músico de poucos anos de vida. Porém, os mais jovens pareciam vítimas de culto a um passado mais criativo, diante do qual só podemos tentar enfeitar nossa inferioridade com trinados de teclado Hammond e chiado de vinil. (Nesse ambiente o funk carioca emergiu como uma ilha futurista, com o uso mais desabusado da tecnologia em território nacional. Mas todos sabemos que funk não faz parte da tal “linha evolutiva” da MPB, e muitos críticos fizeram o possível para mantê-lo isolado na favela pré-UPP.) Foi preciso novamente a ação de heróis tropicalistas para nos salvar. (E depois reclamam da centralidade de Caetano em nossa cultura: não aparece ninguém mais jovem para fazer seu trabalho, então ele precisa continuar orientando nosso carnaval e inaugurando novos monumentos.)

Semelhança de “Recanto” com “Smile”: a radicalidade estética e a esquisitice sonora estão a serviço da canção, da bela canção. (E que safra de canções há em “Recanto”! – com as melodias que fazem falta nos discos da Bjork, ou do Alva Noto.) Reconfortado, preciso fazer coro para a letra de “Mansidão”: “está tudo onde deve estar”. Finalmente.

***

Minha coluna passada me obrigou a reler vários artigos de Michael Ventura. Redescobri o deslumbrante “Hear that long snake moan”, talvez o melhor texto já escrito sobre o rock, ou sobre a história da música popular dos EUA. Aqui tenho espaço para comentar apenas um detalhe: Ventura revela que o Brasil não é o único lugar do mundo onde se diz “aqui ninguém é branco”; há um ditado sulista norte-americano que é até mais específico: “there ain’t no white people in New Orleans” (não há brancos em Nova Orleans). Todos os branquelos iam pedir a benção de Marie Laveau, cabeleireira e sacerdotisa voodoo. Por isso o batuque se manteve vivo na cidade e hoje até neguinhos brasileiros podemos dançar “Miami Maculelê”.

Make Ventura

24/12/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 16/12/2011

Poucos meses depois do início da presidência Obama, a revista Make trazia na capa uma proposta audaciosa: ReMake America (ou ReFaça a América). A página 1 estava ocupada por um manifesto que poderia ser transformado em programa de governo, ou receita para desenvolvimento econômico mais sustentável. Vale a pena citar algumas de suas recomendações, que foram divididas em cinco tópicos básicos: faça coisas; uso de energia; transporte; comida e água; aprendizado. Veja como não se trata de nenhuma utopia: “faça coisas que outras pessoas precisem”; “faça coisas para que você não precise comprá-las”; “crie um negócio que empregue pessoas que façam coisas”; “faça coisas mais perto do lugar onde vão ser usadas”; “conserte as coisas em vez de trocá-las”; “cultive sua própria comida”; “encoraje a curiosidade e o aprendizado autodirigido”; “aceite o fracasso – o fracasso é parte do aprendizado”.

Não consegui descobrir o número de leitores da Make. A revista foi fundada em 2005 e só lança quatro números por ano. Talvez sua face mais visível não seja a publicação em papel, nem o site, mas sim grandes encontros chamados Maker Faire. O primeiro deles, realizado perto de San Francisco em 2006, reuniu 20 mil pessoal. A Maker Faire de 2011 juntou 100 mil, e já há feiras semelhantes realizadas em outras cidades americanas e até africanas. Esse crescimento chamou a atenção da revista The Economist, que no início de dezembro publicou artigo com a seguinte declaração apoteótica: “o movimento ‘maker’ pode mudar como a ciência é ensinada e impulsionar a inovação. Ele pode mesmo anunciar uma nova revolução industrial.”

Criada por Dale Dougherty, um dos fundadores da empresa O’Reilly Media (que teve início nos anos 80 com a publicação pioneira de manuais de programas de computador), a Make tem como inspiração principal a estratégia descentralizada de produção dos softwares livres, incentivando sua aplicação para muito além da informática. Seu mandamento: produza com código aberto, de modo colaborativo. A revista está repleta de textos e fotos com passo a passo para a produção sem segredos de equipamentos como uma máquina de lavar roupas que funciona sem eletricidade ou uma impressora 3-D.

Comparado com o barroquismo da Adbusters, tudo na Make tem pinta de ciberpuritanismo. A Adbusters também poderia ser vista como mais europeia, com uma profusão de citações de filósofos franceses pós-Maio 68, e a Make como mais americana – no sentido mais pé-no-chão, e mesmo ingênuo (ingenuidade diferente daquela escorada em corpos sem órgãos deleuzianos), sem floreios intelectuais, que a cultura da América pode ter.

Pensando nessa dicotomia Europa/Améria, ou Adbusters/Make, paralizante ou empobrecedora, andei à procura de um pensamento que pudesse conectar os dois lados de forma original. Foi assim que me deparei com os últimos textos de Michael Ventura em “Cartas às 3 da madrugada”, coluna – primeiro no L.A Weekly e hoje no Austin Chronicle – publicada há 3 décadas. Sua crença: movimentos como o “maker” e o “Occupy Wall Street” são sinais sim do “fim do capitalismo e de sua reposição por um modo de comércio para o qual, ainda, não há um ‘ismo’.”

Michael Ventura é meu pensador americano favorito. Seu livro “Shadow dancing in the USA” tem lugar garantido na minha lista de melhores obras do século XX. Foi ali, nos anos 80, que me deparei com palavras que – entre muitas outras coisas – me fizeram perder os preconceitos, que certa filosofia europeia me vendera como chiques, contra shopping centers: “os jovens vão para tais lugares porque se sentir em casa na cacofonia de formas é o que eles mais desesperadamente precisam aprender, e eles não estão aprendendo isso na escola. Nós estamos profundamente mais desconfortáveis no mundo do que eles estão. O que procuram não é algo que saibamos como ensinar.” Claro: nada disso é enunciado com sofisticação desconstrucionista. Tudo é meio rasteiro (fiz a citação só para mostrar que ele não é anti-consumo como o pessoal também rasteiro – e isso não é crítica – da Adbusters), mas muitas vezes precisamos de um índio americano para nos revelar o que estava oculto “quando terá sido o óbvio”.

Esse mesmo livro termina com o artigo “Previsões: os próximos 200 anos”. Foi publicado em 1985, estamos ainda no início dos tais dois séculos, mas tudo que ali foi previsto praticamente já é passado: “a criação de um sistema econômico mundial”; “avanços na cibernética, biologia, pesquisa espacial e cerebral”; “fortalecimento dos povos mulatos, negros e amarelos”; “equalização de homem e mulher”. Só falta “a criação de uma nova cosmologia que substituirá o judeu-cristão-muçulmanismo”(anunciando a “exaustão” do extremismo de origem islâmica ele dizia: isso não é aparente agora pois só extremistas aparecem na mídia e não vemos os “milhões que só querem viver vidas normais” – os milhões representados pelo pessoal da praça Tahir?)

Nesse artigo, o que mais me impressionou não era uma previsão e sim uma constatação: “as crises de nosso mundo se expressam como crises políticas mas elas não têm solução política. Isso deixa bem louco todo mundo envolvido em suas resoluções.  As únicas soluções possíveis são culturais, e soluções culturais não podem ser legisladas e geralmente elas não podem ser impostas. Soluções culturais evoluem. E as pessoas têm dificuldade de explicar como elas evoluem. O que é uma mera ideia num século vira instituição poderosa no próximo. É por isso que expressar ideias é tão importante. Nada acontece sem elas.” Eu digo: por isso é essencial ficar atento ao que a Make publica. As novas ideias, as mais poderosas delas, estão ali.