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Constantin Noica

08/03/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 07/03/2014

Esquerda? Direita? É cada vez mais difícil estabelecer fronteiras entre os dois lados do espectro político. Recentemente, a direita passou a copiar (a esquerda venceu?) as mesmas estratégias de marketing que antes embalavam preferencialmente opiniões de esquerda. Conservadores se vendem como transgressores, rebeldes, gente que pensa nadar contra a maré dominante. Isso combina com a pobreza do debate ideológico atual, onde oponentes se contentam com “paródia da política sectária, com todo mundo reduzindo os argumentos dos outros a caricaturas ridículas para declará-los não apenas errôneos, mas também ‘do mal’ e perigosos” (citação de David Graeber). Tento me manter distante do bate-boca histérico e inútil. Mas ao mesmo tempo procuro novos critérios para saber quem é quem, no meio dessa confusão toda.

Agrada-me especialmente esta declaração de Dimitry Vilensky, do coletivo russo “Chto delat?”: “é importante enfatizar que a pergunta ‘que fazer?’ está claramente identificada com a esquerda. Significa que admitimos que esta ou aquela situação histórica deve ser mudada, mas antes de agir fazemos perguntas e desenvolvemos um campo para a prática intelectual. A política de direita por outro lado normalmente começa com a pergunta ‘quem é o culpado?’.” Ao lado desta dicotomia culpa/ação, que envolve desejos de manutenção/mudança, vejo também cada vez mais sentido em separar o mundo em dois campos: o primeiro se contenta com a indignação (julgando que apenas o mostrar-se indignado é suficiente para apaziguar consciência culpada), o segundo – mais difícil e sem efeitos imediatos de animação das massas – se organiza em torno da busca constante pela invenção (Michel Serres afirma categoricamente: “O único ato intelectual autêntico, é a invenção”).

Outro dia, sem nenhum aviso, vasculhando estante de livraria, encontrei livrinho, intitulado “Diário filosófico”, que veio dificultar ainda mais essa minha caçada por certezas políticas perdidas. Fiquei louco por seu autor, Constantin Noica, de quem nunca ouvira falar antes. Esquerda? Direita? Difícil encontrar resposta. Poucos de seus livros foram publicados fora da Romênia (nesse sentido o Brasil é privilegiado). As escassas informações biográficas aumentam o mistério. Noica fez parte daquela turma romena da pesada, detonadora de ambiguidades/absurdos, que incluía Eliade ou Ionesco. Os comunistas o prenderam aparentemente por ter lançado livro de Cioran. Sua primeira tradução brasileira teve introdução de Olavo de Carvalho. Cada uma dessas pistas é apenas uma quebrada em grande labirinto.

Poucas vezes me deparei com pensamento tão complexo. Os exemplos de “Diário filosófico” fundem qualquer cuca quadradinha. Há a defesa de uma escola onde “não se lenciona nada.” Os jovens “vão até lá para se libertarem da tirania do professorado.” Outra visão maravilhosa, bem “meme”: a língua como “hoste”, que “quer persistir”, como “tudo que existe”, na defesa e no ataque. O francês criou Joana D’Arc (que não fala latim com seus anjos), Racine ou a diplomacia, para “conquistar”. Serres reaparece por aqui: “E quanto resiste uma língua? Quanto pode inventar.”

Isso é só aperitivo. Noica deve ser lembrado neste meu texto como reinventor de outro dualismo, colocando em luta dois modos de militância: de um lado, Abel, o filho pródigo; do outro, Caim, o irmão do filho pródigo. As diferenças se multiplicam, ao infinito. O filho pródigo se perde e se arrepende. Seu irmão se conserva e petrifica o coração. Respectivamente: um segue a ética do devir, a possibilidade de optar (liberdade), desencadeando conflitos, aprendendo com inimigos (eis aí o “substrato epistemológico” do “amai os vossos inimigos” cristão), vivendo com fome; o outro defende a ética do reconhecimento (“manter o mundo no lugar”), das escolhas já feitas (congelamento), lê Cícero e seu elogio da amizade, vive com medo. Noica prefere o filho pródigo?

Não devemos chegar a conclusões apressadas. Noica ama Ésquilo, sobretudo a Oréstia. “Um artista começa de repente do momento em que sabe dar razão a todos.” Egisto, Clitemnestra, Orestes, Apolo, Minerva: todo mundo tem razão. Até as Fúrias declaram: “Agrada-nos ter razão.” Ter razão não é ser dono da verdade. “Dogmáticos têm verdades mais que filósofos, mas não têm filosofia, porque não têm vida.”

Então quem concentra mais vida, o filho pródigo ou seu irmão? Noica sai por uma tangente deliciosa: “Porque sou eu mesmo o irmão, que procura, pela escola, a reconciliação com o mundo, com os filhos que vêm, com os filhos que saem para o mundo.” Lembre-se: é a escola onde nada se leciona. Estou biruta em farejar nessas palavras o programa para uma esquerda refundada, fazedora/inventora, não reclamona? O mundo precisa seguir adiante.

Michel Serres

12/10/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 11/10/2013

Michel Serres, com 83 anos e mais de 50 livros publicados, é finalmente best-seller. “Petite poucette”, lançado no Brasil como “Polegarzinha” (editora Betrand), já vendeu 100 mil exemplares na França, quantia impressionante para filósofo considerado difícil. No número mais recente da revista Art Forum, Serres é apresentado como “um dos observadores mais visionários e eloquentes das profundas instabilidades” contemporâneas. Mesmo assim, adverte: “permanece pouco conhecido no mundo da língua inglesa.” Bruno Latour abre sua entrevista com Serres (que deu no livro “Eclaircissements”, de 1992) mostrando que o problema não era de tradução: “Você é ao mesmo tempo muito conhecido e muito mal conhecido. Seus colegas filósofos o leem pouco.” O sucesso de “Polegarzinha” é sinal de que o “mistério Michel Serres” (para citar novamente Latour) começa a ser desvendado?

“Polegarzinha” deveria ganhar muitos leitores também no Brasil atual. Pode ter sido um acaso, mas a última palavra do livro – transcrição de discurso sobre educação – é “brasileiros”. Parece convocação, que chega a boa hora: justamente quando nas ruas tantos professores tentam mudar o futuro das escolas em nosso país. Precisamos de ousadia para inventar (Serres decreta: “O único ato intelectual autêntico é a invenção”) não apenas novos conteúdos a serem ensinados, mas principalmente novas maneiras de ensino, que escutem atentamente o “barulho de fundo” dos novos alunos, mesmo aquele produzido pela troca silenciosa de milhares de SMSs enviados com polegares escondidos embaixo dos cadernos, contra as regras de “diretoria”.

Descrição da arquitetura escolar atual: “Silêncio e prostração. O foco de todos na direção do estrado em que o porta-voz exige silêncio e imobilidade reproduz, na pedagogia, o mesmo do tribunal com relação ao juiz […] da multiplicidade com relação ao um. Bancos apertados, em fila, para os corpos imóveis dessas instituições-cavernas.” Sabemos que a estratégia não funciona mais: alunos fingindo aprender diante de professores que fingem ensinar, dentro de instituição criada num tempo em que o saber era matéria escassa. Agora, o saber “já está o tempo todo e por todo lugar transmitido”. A polegarzinha (Serres usa o feminino em homenagem à “vitória das mulheres” na história recente) é como São Denis, que decapitado carregou a cabeça nas mãos: ela “porta” seu cérebro na bolsa, dentro do celular. No lugar onde antes havia memorização devemos hoje cultivar a “intuição inovadora e vivaz” e a “alegria incandescente de inventar”.

Serres não tem dúvida: declara que vivemos “uma das mais fortes rupturas na história, desde o neolítico.” Ele foi pioneiro no estudo sobre essa nova grande transformação (no tempo de sua vida a população terrestre saltou de dois para sete bilhões de pessoas), enfrentando todo tipo de críticas. Quando, em 1969, lançou o primeiro volume de “Hermes”, obra que já percebia a centralidade das redes de comunicação em nossas sociedades, seu professor Althusser reagiu com “cólera louca” apontando o erro de “negligenciar as forças produtivas”. Tal condenação não calou o aluno: “Só aprendi a desobedecer. Entre 14 e 30 anos, todos os acontecimentos ao meu redor só me deixaram o gosto da desobediência. Eu tinha a impressão, durante meus estudos, e na universidade, que a guerra não tinha terminado, que a ocupação se perpetuava, que então era necessário resistir”. Sua resistência foi se tornando cada vez mais arriscada: escreveu livros sobre ecologia (a natureza vista como uma companheira, também falante, e não como uma escrava calada), parasitas, hermafroditas. Buscou inventar uma filosofia mestiça, acolhedora diante da diferença (“Aprender: tornar-se gordo dos outros e de si.”)

O resumo de sua trajetória está claro na apresentação do livro “A arte das pontes”: “Eu só sonhei com pontes, escrevi sobre elas, pensei sobre e sob elas; eu nunca amei outra coisa além delas. Este livro sobre as pontes termina como o livro de todos os meus livros.” Há um otimismo que foi crescendo obra a obra. A entrevista para Bruno Latour há duas décadas era mais sombria: “Toda minha vida, eu tive o sentimento patético de errar no deserto ou em alto mar.” Ou pior: “Hiroshima resta o objeto único de minha filosofia.” Agora, na entrevista para a Art Forum, em edição sobre “alto risco” ambiental, ele passa o tempo todo despistando quem queria ouvir anúncio de catástrofe. Com mais de 80 anos, em “Polegarzinha”, encontramos um espírito jovial e combativo: “Gostaria de ter 18 anos […] pois tudo tem que ser refeito, tudo tem que ser inventado. Espero que a vida me dê tempo suficiente para continuar trabalhando nisso”.

os vivos e os vídeos

09/04/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 01/04/2011

Estou ainda obcecado com os “vivos” que invadiram esta coluna via José Miguel Wisnik. Para quem não se lembra, e radicalizando suas santas palavras: a cultura pré-digital seria basicamente o culto a mortos geniais; a cultura da internet aumentou “assustadoramente” o número de vivos. (E agora que me dou conta, brincando: os vivos também viraram fantasmas? Espectros do comunismo que ronda a internet? Derrida tinha razão?) Eu acrescentei, sorrateiro: a cultura pré-digital era fundamentada na escassez; a cultura da internet é o reino da abundância. Como é abundante! Não paro de encontrar gente viva, multidões de gente viva (gente boa e gente totalmente do mal), cada vez mais a cada link.

E não só a cada link. A revolução tecnológica (o filósofo francês Michel Serres já declarou: a era neolítica finalmente acabou…) não acontece apenas online. Nos anos 70, só grandes empresas podiam ter computadores. O computador pessoal ainda não tinha sido inventado pelos nossos heróicos hackers e doidões da Califórnia. Mas também: só as grandes empresas podiam ter câmeras de vídeo ou ilhas de edição de imagens (super-8 era ainda caro e delicado para ser encarado como uma real democratização da produção audiovisual). Acompanhei a chegada dos computadores e das produtoras independentes de vídeo no mercado “caseiro”. Sou da geração dos primeiros videomakers. Foi divertido, mas certamente não imaginávamos na época como a brincadeira ia ficar animada com a chegada de muito mais gente vivíssima, vinda de todos os lugares, mesmo das florestas.

No ano passado, a Vídeo Nas Aldeias, lá de sua central de Olinda, lançou uma coleção de DVDs chamada “Cineastas indígenas: um outro olhar” (que é acompanhada por um livreto precioso, para ser usado em escolas). É uma amostra do resultado do trabalho brilhante que Vincent Carelli e sua turma vêm fazendo há décadas por todo o Brasil, capacitando diferentes povos indígenas a produzir seus próprios vídeos, documentando suas diferentes culturas. São povos que muitas vezes foram decretados mortos, ou destinados a uma morte certa, e que hoje aparecem mais vivos do que nunca. Na coleção podemos ver os filmes dos povos Kuikuro, Huni Kuĩ, Panará, Xavante e Ashaninka.

Eu tinha uma relação romântica com os índios brasileiros. Valorizava sua tradição de não produzir “História”. Considerava todos os seus povos superiores justamente pelos motivos que os tornam inferiores para muitos outros olhares: aplaudia o fato de não terem deixado documentos ou monumentos, de poderem sair por aí sem deixar traços, vestígios, pegadas, de não terem tralhas pesadas para carregar, serem leves e soltos. Eram para mim como o Kraftwerk, banda que toca muito no estúdio, mas grava pouquíssimo. Seu componente Ralf Hutter já declarou: “Fitas são históricas. No momento em que você termina a gravação, elas se tornam históricas. Você termina com um excesso de história. Nós tentamos esquecer muito da música que tocamos.” E conclui: “Nós achamos que o mundo da música é muito orientado para a história, para as gravações. Nós queremos projetar uma atividade mais anárquica.”

Tudo bem, “aceito” de bom grado a mudança. Por que os índios deveriam permanecer para sempre assim, sem nenhuma “permanência”? Vamos ver como se saem jogando o “nosso” jogo, brincando com nossas manias, inundando o mundo com o registro de outros olhares. O que esses olhares registram é também mudança, produzida no contato com os olhares dos “brasileiros” sobre suas culturas, mediadas por novas tecnologias que também, aqui do lado não-indígena, não sabemos onde vão nos levar, ou mesmo se são registros como antigamente, ou se já se transformaram em outras atividades, elevadas pela potência de sua abundância.

Um índio huni kuĩ recomenda o modo correto para mostrar sua própria vida para a câmera: tem que ser verdadeiro, não é uma representação – “Se você ficar dando pulinho, não fica bom.” Outros índios se espantam com a mudança de espectativa dos “brancos”: antes queriam civilizá-los, agora “eles querem que a gente viva com nossos próprios costumes.” Os documentários poderiam produzir pajelança para turista. Mas não escondem nada. Ainda bem que eles sabem: não precisam ficar pelados para dizer que são índios. E são muito mais índios por estarem com uma câmera “branca” (e certamente não brasileira) na mão.

Os momentos que para mim são mais reveladores dos filmes são quando as câmeras saem das aldeias e filmam as cidades dos brancos. Como por exemplo aquele acampamento que Shomõtsi, índio ashaninka, monta na beira do rio, em frente da cidade, para esperar o avião que chegará com o dinheiro atrasado de sua aposentadoria. Numa das conversas, uma observação sobre o papel-moeda, que seria mais forte que o papel de escrever – este último, quando se molha, “desmancha como bolacha”. Ao ver os filmes passei o tempo inteiro observando esses detalhes, muitas vezes quase fora de quadro, como a garrafa térmica que vai para a caçada do índio panará. Ou a maneira sempre direta de se falar de sexo, na frente das crianças, sem inibição.

Além de filmar, os índios agora também gravam seus discos. Há música tradicional, e também pop xavante ou hip hop guarani (dos Brô MCs, de Dourados, MS). O Brasil tem cerca de 200 línguas. Imagine todas elas fazendo rap, acompanhadas por bateria eletrônica. Muita gente viva, com língua viva. Que riqueza.

consumo

24/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo no dia 18/06/2010

Uma publicidade recente de relógio tenta vender seu peixe caro: “Muito mais do que um ícone, Rolex é a referência para aqueles que aceitam somente o melhor.” Convenhamos: para uma marca que deseja nos diferenciar do resto do mundo, esse discurso não poderia ser mais comum: tudo no mercado de luxo quer nos empurrar o “melhor” goela abaixo, impondo a crença de que sua compra é a pulserinha vip que nos torna reconhecíveis também como os melhores, acima do resto dos mortais. Ao ler mais essa ode ao superior, lembrei-me – por contraste – da mensagem que a Muji, cadeia japonesa de lojas que vendem de roupa a comida, publicou em seu site no ano passado: “não criamos produtos que induzem clientes a acreditar que ‘isso é o melhor’ ou ‘preciso ter isso’. Nós gostaríamos que nossos clientes experimentassem a percepção racional que vem não com ‘isso é o melhor’ mas com ‘isso é o suficiente’. O melhor se transforma no suficiente.”

Você pode achar que dá no mesmo. As duas posturas têm um objetivo central: querem nos vender alguma coisa. Mas me interessa a mudança de estilo do vendedor (ou talvez eu fique comovido com a limpeza ideológica-mercadológica, quase ou pseudo-zen, promovida pela Muji). O melhor pressupõe a comparação, a hierarquia, a raridade. O melhor é para poucos, para quem “tá podendo”. Quem não pode fica com aquilo que é pior, pelo menos comparativamente diante do melhor. Resultado: o melhor se alimenta da insatisfação (pois há sempre algo melhor ainda, nem que seja o Rolex do ano que vem) e – no limite – da humilhação da maioria que ficou com o pior. Por sua vez, o suficiente é mais igualitário, produto do contentamento. Claro que pode haver algo melhor que aquilo que é suficiente, mas a que custo? O que vinha acontecendo até agora era a democratização do luxo, com cada vez mais gente comprando ou desejando comprar uma bolsona Birkin da Hermès, TVs de infinitas polegadas ou supérfluos de maior preço. A Louis Vuitton estava já ficando com cara de Americanas Express. Algo era estranho naquela festa: como sustentar tal padrão de ostentação para as massas? Gaia, senhora vaidosa, parecia estar vivendo sob o efeito da cocaína, ou do Prozac – Dona Redonda pronta para explodir de tanto consumir. Era muito bom-gosto-platinum para uma multidão de gente ex-comum. Afinal, como disse Joãozinho Trinta, pobre gosta de luxo…

Deu no que deu, não por culpa dos ex-ou-novos-pobres (pobres-Prada ou pobres-plasma, dependendo do poder aquisitivo): a maior crise econômica desde de 29, bancos ex-eternos falindo da noite para o dia, a Grécia afundando com o Euro da Gisele Bündchen, crédito fácil e hedge funds evaporando. Não gosto do discurso moralista que parecia nos colocar de castigo: “vocês ultrapassaram os limites, pensaram que a vida era fácil, agora aprendam com a penúria.” Porém, sinto que os tempos críticos acabaram criando um outro tipo de nivelamento ou vulgarização: acordamos de ressaca percebendo que um sapato Gucci, um jatinho particular e um hotel boutique podem ser tão sem-noção, tão cafonas, ou bregas, como uma tarde de compras num outlet de Orlando. E que há outras maneiras, mais chiques, éticas e confortáveis, para se conquistar o desenvolvimento pessoal ou econômico.

Entre os livros que tentaram nos explicar o que aconteceu, para mim o mais interessante é Tempos de Crises, do filósofo Michel Serres. Várias de suas lições são semânticas, começando por nos lembrar que a palavra crise vem do verbo grego que significava julgar. Então é uma boa oportunidade para vários tipos de julgamento, sobre várias de nossas decisões, não só sobre as políticas monetárias do Banco Central. Decretando que a hierarquia, sempre baseada no segredo, é um roubo, e a democracia vive da divulgação dos segredos, o livro também chama nossa atenção para a origem de “dados” no particípio de “dar”: um banco de dados democrático não teria cofres seguros por senhas criptografadas, conhecidas apenas por uma minoria, mas seria local de partilha geral. Por fim, Serres diz que a hierarquia está para o hardware assim como a democracia está para o software. E software significa macio: o doce no lugar do duro.

Ultimamente, outro jogo semântico é cada vez mais perceptível: soft quase se confunde com slow. O slow é a grande tendência: slow food, slow design, slow-qualquer-coisa. Quase sempre, vagaroso é equivalente a eco, sustentável, orgânico. A associação Slow Food Brasil realiza o festival Terra Madre, descrito como encontro de ecogastronomia, conjugando prazer de comer com consciência e responsalidade. O site de Alastair Fuad-Luke, nome premiado do slow design, tem como lema “serviços de co-design para transição sustentável”. Co-design é design compartilhado, criação coletiva.

Tudo profundo, soft-sério, talvez demais. Hoje tenho um pouco de medo de ir ao supermercado, que ganhou ares de hospital: contém isso, não contém aquilo, cada embalagem parece ameaça. Mas outro dia comprei um sapato, todo natural e reciclável, que trazia um certificado “medindo as ecocredenciais” daquele produto individual (quanto tinha “impactado” o meio-ambiente etc.) Fiquei meio assustado: eis o mundo do suficiente. Confesso que vou sentir um pouco de saudade, não do “melhor”, mas de uma leve inconsciência ou futilidade que o acompanhava… Tudo bem, não podemos ter tudo na vida.