texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 17-06-2011
Kevin Kelly fará 60 anos em 2012. Fiquei surpreso ao descobrir sua idade. Até então lia seus textos como parábolas de um guru milenar, tipo Yoda, que “viveu” 900 anos. Estranho: Kelly escreve sobre o que há de mais novo, com o entusiasmo (e até ingenuidade) jovem. Não sei o que me levava à ideia de antiguidade, talvez um tom de sabedoria calma que envolve seus textos longos (mesmo os posts de seus blogs parecem não ter fim), lembrando ensinamentos religiosos, desses reveladores das profundezas sagradas do real e do virtual. Isso fica bem evidente em seu livro lançado no final de 2010, o tratado “O que a tecnologia quer”, no qual o mundo técnico é descrito – mesmo com linguagem pop – quase como a natureza em Spinoza – isto é, quase como Deus. Porém, não existe nada de místico ali. Tudo é explicado como fenômeno mundano, não mais mágico do que a produção da vida.
Nunca tinha tido curiosidade para investigar sua biografia, coisa que fiz apenas quando me sentei para escrever esta coluna. Agora entendo melhor a impressão que me causava, fora de todos os rótulos imagináveis. No seu site pessoal, encontramos logo a informação de que não tem nenhum diploma universitário. Ganhou a vida como fotógrafo por quase uma década, viajando pela Ásia e terminando como editor da newsletter dos helicópteros Bell no Irã (!). Nesse mesmo ano iraniano, visitou Jerusalém, onde teve uma conversão religiosa. Até hoje é cristão. Cruzou os Estados Unidos de bicicleta, escreveu livro de haikais, lançou uma revista para andarilhos. Só nos anos 80 encontrou com outra figura yodesca, Stewart Brand, mestre de todos os pensadores ciberculturais que mantêm seu coração hippie, mesmo sob todas as tentações robóticas.
Brand estava deixando a direção editorial da Whole Earth Review, revista que tem origem nos catálogos “do-it-yourself” dos anos 60 californianos e rompeu as próximas décadas como Bíblia contracultural, extremamente influente (há uma exposição sobre sua história em cartaz, até julho, no Museu de Arte Moderna de Nova York). Kelly surgiu como substituto ideal, e ficou no comando da publicação até o final dos anos 80, documentando toda a popularização da cibercultura e elaborando a “ideologia” libertária que deu rumo aos anos pioneiros da internet, mesmo em seu lado mais delirante, quando parecia que mergulharíamos na realidade virtual e seríamos felizes para sempre, com anarquismo – às vezes individualista, às vezes comunitarista – triunfante. Ainda tenho guardado vários números, inclusive o que trazia na capa o dossiê “O corpo está obsoleto?” Praticamente o mais interessante da pauta da revista Wired dos anos 90, da qual não por acaso Kelly foi editor executivo, está por ali, em semente. Hoje, com muitos dos artigos ainda sendo digitalizados e publicados na internet, dá para ver que nosso futuro ainda está ancorado naquelas páginas, girando em torno daquela turma, a turma de Stewart Brand e Kevin Kelly.
Essa turma experimentou as possibilidades da vida on-line antes mesmo que o acesso à internet fosse realidade fora de poucos departamentos de universidades americanas, com a criação – em 1985 – do The WELL, braço ciberespacial da Whole Earth, que funcionava basicamente como um fórum com listas de discussões sobre vários assuntos queridos dos tecnohippies. Um pouco antes, em 1984, organizou uma Conferência Hacker (talvez a primeira com esse nome) reunindo muitos pioneiros do mundo da computação pessoal, hoje frequentadores do “jantar dos bilionários” promovido pelo site Edge, já cantado em verso e prosa aqui nesta coluna. Kelly viveu esse tempo como um de seus principais e mais entusiasmados articuladores, promotores, agitadores. Continua com o mesmo espírito, até hoje, mesmo quando observa seu filho de 14 anos jogando videogame.
Seus principais livros são “Fora de controle”, “Novas regras para uma nova economia” e “O que a tecnologia quer”. O primeiro, lançado em 1994 (um calhamaço que agora está disponível online, de graça), tinha como subtítulo “A nova biologia das máquinas, dos sistemas sociais e do mundo econômico”, e já anunciava o papel cada vez mais central de Darwin e dos estudos pós-darwinianos em nosso novo século. “Nova economia” foi lançado na euforia Wired, pré-primeira-bolha, quando o ciberespaço parecia sem limites. Mesmo com tudo que aconteceu depois, ainda pode dar boas lições para tantas empresas apegadas ao mundo centralizado e centralizador do passado. “O que a tecnologia quer” tem pinta de mais ousado, de obra que vai demorar décadas para ser digerida, que nem seu autor sabe exatamente qual seu real significado.
Acompanhei a pesquisa e escritura desse livro através do blog The Technium, mantido por Kelly desde a época em que era apenas uma ideia embrionária até hoje, meses depois do livro lançado, mantido como obra em progresso. Foi uma experiência de transparência intelectual radical, sem segredos para aumentar vendas, incorporando comentários dos leitores. Mesmo tendo lido quase tudo antes, continuo a descobrir novidades no produto “acabado”, paralelo, em papel, com cheiro do que a tecnologia aparentemente deixou de querer. Pois nem a tecnologia pode prever o que vai querer daqui a pouco. Ela vai inventando/renovando o que quer a medida que evolui. Não muito diferente de nossos humanos quereres.