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ostentação 12014.0

01/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 31/10/2014

Tempos atrás, a Maison Martin Margiela era grife estabelecida fora do radar do consumo de luxo de massa (sim, luxo e massa não são mais termos contraditórios, como comprovam as bagagens de turistas Classe C vindos de Miami). Toda sua estratégia de marketing incentiva exclusividade radical, ostentação camuflada de invisibilidade, atitude de artista conceitual (obra cara contra o mercado). Por isso é surpresa acompanhar hoje sua transformação em objeto de desejo do hip hop. “Maison Margiela” é nome de música do Future, nova sensação do rap. Ou citação na letra de “Se joga” (“o swing dela” rima com “eu tô de Margiela”), pós-funk-carioca de Naldo Benny.

Talvez essa tendência – podemos chamá-la de Ostentação 2.0? – tenha sido fundada por Kanye West. Não por acaso o figurino de sua turnê mais recente, que também tem a colaboração da artista conceitual Vanessa Beecroft, pode ser pensado como desfile das peças mais “icônicas” da história da Margiela. Ítens do vestuário usado no palco foram colocadas à venda com preços amargos, mas sempre esgotaram suas tiragens limitadas. É uma confusão high/low, abundância/escassez bem característica de nossos tempos, que tem nos astros do hip hop seus principais comentaristas/arquitetos-de-sensibilidade.

Mesmo quando era cultura de gueto, e periferia ainda não tinha a centralidade cultural atual, o hip hop já construía as pontes artísticas mais improváveis entre mundos artísticos nascidos para viver sem contato uns com os outros. Sonoramente, havia a aliança entre o pop e as ferramentas menos populares da música erudita contemporânea (as colagens concretas, por exemplo). Visualmente, o grafite logo colocou as ruas nas galerias.

Indumentariamente, os rappers também anunciaram a reinvenção do mercado das grifes de luxo que aconteceria, com sucesso avassalador, nas décadas seguintes. O início dessa história está bem contado no artigo “Harlem Chic”, que o crítico Kelefa Sanneh publicou em março de 2013 na New Yorker (que maravilha que essa revista tenha seu arquivo aberto na internet – aproveite enquanto a política é mantida). Sim, havia a celebração das marcas esportivas (a dupla Run-DMC lançou hit chamada “My Adidas”), mas já nos anos 1980 grifes como Gucci ou Louis Vuitton, quando eram consumidas apenas por milionários, fizeram sua estreia em capas de LPs. Tudo por culpa de Dapper Dan, criador das melhores roupas dos primeiros rappers (e de vários traficantes da época), fazendo com as agulhas de costurar o que os DJs inventavam com as agulhas dos toca-discos: remixes juntando (contra a legislação de copyright) elementos de procedências/propriedades diferentes.

Kanye West e sua geração (terceira ou quarta na história do hip hop?) levou essa nova tradição para o próximo nível. Quando grava seus primeiros discos, o rap já não é mais periferia, mas sim o centro econômico da indústria fonográfica, com sua rede de artistas ricos e poderosos, constituindo uma nova elite do entretenimento (hoje as revistas de celebridade acompanham a vida de Jay Z/Beyoncé/Blue Ivy com tratamento de família nobre). Usar Vuitton ou Gucci não impressionava, era a regra. Kanye começou a explorar universos mais exclusivos, que não são comprados apenas com muito dinheiro. Passou a andar cercado de arquitetos, designers, artistas, que possuem outros códigos de ostentação. Daí Margiela.

Todos sabem: Kanye é megalomaníaco, egocêntrico, se acha o tal. E é o tal. Nunca verei outro show com tanto swag como aquele perfeito que apresentou no Tim Festival (para horror da crítica local) ocupando sozinho um palco imenso em viagem intergaláctica. Logo depois (ou logo antes?) da vinda para o Brasil, ele fez apresentação para o canal VH1 que depois foi lançado em disco (pena que com cortes em muitos discursos confessionais que fazia durante as músicas). Adoro o medley “Heartless/Pinocchio Story”, com sua entonação especial para versos que dizem que pode comprar Gucci/Vuitton/YSL mas nada disso poderá tirar “sua mente desta prisão”. Mas o trecho mais comovente, terapia pública sobre a tragédia desse grau de celebridade, está nos momentos finais de “Flashing lights”: “cometi erros, mas eles me fazem crescer, como se eu tivesse que lutar para ser eu mesmo, mas tenho que liderar a luta, pois isso ajuda todos a ser quem querem ser.”

Ostentação de erros que não podem ser cometidos por mais ninguém fora do círculo íntimo dos superpoderosos. Estou lendo “Antes da história”, de Alain Testart (mais uma vez obrigado pela dica, Marco Veloso). Os primeiros ricos, no neolítico, davam festas para construir megálitos. Pura ostentação. Hip hop como megálito do agora. Vitória do Bronx.

barulho novamente

09/11/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 08/11/2013

Ainda vou demorar muito tempo para aprender a viver num mundo sem Lou Reed. Saber que ele estava vivo em algum lugar entre Manhattan e Long Island servia para mim como garantia de sanidade ou – talvez contraditoriamente, como convém para discípulo de Andy Warhol – de radicalidade protopunk. Soube de sua morte primeiro por um tweet de Alê Youssef (pausa para comercial: amanhã estreia Navegador, programa que faço com Alê, Ronaldo Lemos e Zé Marcelo Zacchi na GloboNews, conversando sobre muitas das inovações que também formam a pauta desta coluna). Quase automaticamente, fui visitar o site do New York Times, para conferir como o principal jornal da cidade que foi inspiração central para a obra de Lou Reed dava a notícia.

Chegando lá, encontrei – com destaque na home, para mim um pouco surpreendente devido à tradicional distância que o jornalismo sério dos EUA tenta manter diante da cultura popular – texto de outro amigo, Ben Ratliff (autor de livro extraordinário sobre John Coltrane, que ainda vou comentar aqui), onde encontrei o link para aquela que pode ter sido a última intervenção artística de Lou Reed, um texto sobre o disco Yeezus, de Kanye West, publicado em julho no site The Talkhouse, que eu não conhecia mas aprendi que se especializa em músicos falando de música.

Foi assim, navegando, que me deparei com este parágrafo maravilhoso, que resume – com argumento oposto aos louvores de sua arte como simples “contestação” – a filosofia estética que guiou a criação de Lou Reed: “eu nunca pensei em música como um desafio – você sempre imagina que o público é pelo menos tão inteligente quanto você é. Você pode fazer isso, porque você gosta disso, você acha que você está fazendo é lindo. E se você pensa que é bonito, talvez eles pensem que é bonito. Quando eu fiz ‘Metal Machine Music’, o crítico do New York Times John Rockwell disse: ‘Isso é realmente um desafio.’ Eu nunca pensei nisso assim. Eu pensei nisso como: ‘Wow, se você gosta de guitarras, é guitarra pura, do começo ao fim, em todas as suas variações. E você não está preso a uma batida.’ Isso é o que eu pensava. Não, ‘eu vou desafiá-lo para ouvir algo que eu fiz.’ Eu não acho que [Kanye] West nem por um segundo tenha tentado fazer isso, também. Você faz coisas porque é o que você faz e você ama o que faz.”

Adoro Kanye West e sua vontade de fazer belas obras-primas. “Yeezus”, na minha opinião, é o melhor disco de 2013 (junto com o choro do violão de 7 cordas de Gian Correa em “Mistura 7”, é claro). É um barulho radical e divino, para o qual fomos preparados por “Metal Machine Music”, mesmo quem nunca escutou a lição de microfonia de Lou Reed. Não estou sendo original ao fazer essa ligação. Repito, com outras palavras, um trecho de “Words and music”, livro sagrado do crítico inglês Paul Morley: “Se você gosta mesmo desse tipo de coisa, o tipo de coisa que determina que sua vida seja vivida dentro do barulho, […] se você realmente pensa que o barulho pode ser libertação, […] então ‘Metal Machine Music’ é, você sabe, o Bill Haley and The Comets desse tipo desse tipo de coisa.”

Quando fui ouvir finalmente “Metal Machine Music”, eu já tinha passado pelo hip hop (que para mim sempre foi, antes de qualquer outra coisa, arte do barulho herdeira direta e sem dúvida da música concreta e eletroacústica), por performances do Chelpa Ferro e por shows de drone music/extreme metal sinistro e belo da banda encapuzada Sunn O))). Minha reação foi parecida com a de Alexandre Hacke, do Einstürzende Neubauten (também vi seu show com britadeiras e máquina de rodar concreto cheia de pedras no Cine Íris): “Eu realmente escutei o disco inteiro, muitas, muitas vezes, e me lembro de me perguntar qual a razão de tanta celeuma, tipo a decepção de não ter ficado assustado com um filme de horror muito esperado.”

Retirei essa declaração de Alexandre Hacke da homenagem póstuma para Lou Reed publicada no site da revista The Wire, onde também está disponível artigo de Alan Licht, um dos grandes criadores/pensadores da música atual. Licht cita entrevista que fez com Reed: “Tudo que eu queria fazer [com o Velvet Underground] era escrever canções nas quais pessoas como eu pudessem se reconhecer.” Que eu tenha me reconhecido em “Metal Machine Music” não tem a menor importância. Crucial foi o reconhecimento de outros músicos, como Irmin Schmidt, que falou para a The Wire, lembrando a primeira vez que ouviu o Velvet Underground: “foi como um súbito despertar. Eu deveria mudar minha vida. E mudei. Formei o Can.”

Que beleza que o último texto de Lou Reed tenha sido o elogio de Kanye West. Nada de nostalgia. Viva o futuro do barulho!

a onda do rap

16/04/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 08/04/2011

El Général não deve ser confundido com El General. Repare os acentos do primeiro nome: são detalhes que fazem toda a diferença e nos transportam do Panamá para a Tunísia, no ritmo de uma batida perfeita e globalizada. El General, sem acento, pronuncia-se com sonoridade castelhana: o “g” tem quase som de “rr” em português ou de “h” em árabe, emitido com a garganta. El Général é pronunciado seguindo as regras fonéticas francesas, com sotaque do norte da África. Apesar das diferenças, os dois são nomes artísticos. El General nasceu como Edgardo Franco, e é considerado um dos pais do “reggae en español”. El Général foi registrado como Hamada Ben Amor, e ficou conhecido agora no início de 2011 como criador do rap que virou hino das manifestações de rua que estão mudando vários regimes políticos do mundo árabe.

El General, sem acentos, causou grande impacto quando surgiu, no início dos anos 90, com sua música galhofeira, que parecia ter como objetivo único sacudir os popozões em hits como “Ta pum pum” ou “Rica y apretadita”. Segurando as pontas da diversão libidinal, sua sonoridade de mestre mixava o mais novo dancehall jamaicano com rap e vários ritmos/timbres da América Central, da metaleira das “bandas” mexicanas (com não sair pulando e com o cérebro mais inteligente ao ouvir os primeiros acordes de “Las chicas” em sua “version banda reggae”?). Sua ousadia serviu de exemplo para muitos rapazes (e moças) latino-americanos fazerem suas antropofagias particulares, gerando – em Porto Rico – a invenção do reggaeton, um dos estilos mais emblemáticos do século XXI.

El Général – 21 anos – tem história bem mais recente e ninguém pode adivinhar as consequências própriamente artísticas que sua música vai ter, para além dos efeitos políticos já evidentes. Até o final do ano passado, como explicou Andy Morgan (que foi empresário da banda tuareg Tinariwen e hoje tem importante blog dedicado à “world music”), ele era figura escondida do terceiro escalão do rap tunisiano, por sua vez obscurecido internacionalmente pela maior criatividade do rap marroquino ou daquele feito pelos imigrantes árabes na França. O fato de também não ser contratado por nenhuma gravadora não teve a menor relevância para sua meteórica ascensão ao protagonismo político/pop planetário. Tudo o que El Général precisou foi de dois raps e uma conexão com a internet.

Em 7 de novembro de 2010 ele publicou o primeiro rap – “Presidente, seu país” – no YouTube, causando furor no Facebook e indo parar nas telas da al-Jazeera. Resultado: o governo tunisiano fechou sua página no MySpace e até emudeceu seu telefone. Tarde demais, pois a música já tinha sido copiada milhares de vezes e era cantada nas ruas. Em dezembro, El Général encontrou uma maneira de subir para a internet outro rap, “Tunísia nosso país”, e no dia 6 de janeiro deste ano foi preso, passou três dias sendo interrogado pela polícia e a reação popular foi tão forte que a polícia teve que soltá-lo. Nascia uma estrela, um herói nacional que logo virou internacional: seus raps foram cantados pelas massas da praça Tahrir, no Cairo, e hoje podem ser ouvidos em manifestações na Síria ou na Líbia. Poucas vezes outras músicas – a Marselhesa? a Internacional? – tiveram tanta importância política.

Enquanto escrevo sobre El Géneral, vejo o rosto de Kanye West, em fotografia de Karl Lagerfeld (conhecido como o tsar da moda, o chefão da Chanel), na capa da revista VMAN, irmã masculina da Visionaire, publicação que permanece central para o imaginário fashionista contemporâneo. Kanye é provavelmente o artista mais influente da música atual, influência que não fica restrita apenas ao ambiente musical. É também milionário, como muito outros rappers norte-americanos (o ex-aposentado Jay-Z, o recém-ex-presidiário Lil’ Wayne, ou mesmo a novata extraordinária Nicki Minaj), que hoje devem produzir a metade do PIB pop dos EUA.

Quem diria: o rap surgiu – sob influência caribenha – no Bronx, periferia miserável de Nova York, com todos os problemas sociais imagináveis. Era uma música barulhenta (“faz barulho aí!”), bastarda (até hoje muita gente ainda questiona se é música), feita com colagens de músicas dos outros e até com o arranhar da agulha no vinil dos outros. Aquilo que era considerado algo bizarro, condenado como modismo passageiro, já tem mais de 30 anos e continua a nos surpreender, produzindo ao mesmo tempo grana e rebelião, mega-status-quo e voz para todos os tipos de oprimidos, em qualquer lugar e língua. O rap não foi uma invenção da indústria fonográfica norte-americana, veio de fora e subjugou a indústria que teve que passar a trabalhar para propagar ainda mais seu “vírus”. Ao que tudo indica, a indústria vai desaparecer e o rap vai ficar cada vez mais forte, rico.

Para isso é vital a capacidade do rap de se adaptar a cada realidade que encontra. Chegou no Brasil e virou Racionais MCs, Bro MCs (rap indígena!), CUFA e funk carioca (eu estava do lado de Afrika Bambaataa quando ele chegou no baile do Complexo do Alemão, reconheceu seu filho e abriu largo sorriso); em Houston deu na desaceleração radical do DJ Screw; na Nova Zelândia fortaleceu a militância maori do King Kapisi; na Tanzânia foi dar pulos maasais com o X-Plastaz; na Tunísia fez Hamad Ben Amor virar El Général. Qual o mistério do rap, meu querido D2? Essa onda que ele tira, qual é?