texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 24/05/2014
O texto que Regina Casé enviou para a imprensa expressando a tristeza imensa que todos nós, da família “Esquenta!”, estamos sentindo depois da morte do DG, nosso brilhante dançarino, terminava assim: “é preciso que a Polícia esclareça essa morte, ouvindo todos, buscando a verdade. A verdade, seja ela qual for, não porá fim à tristeza. Mas é o único consolo.” Tenho certeza que nossa dor pessoal, familiar, é compartilhada por muito mais gente. Aproveito para agradecer as mensagens de solidariedade que recebemos, todas comoventes, não apenas por lidarem com um caso de luto particular, mas também por entenderem que a morte do DG é parte de uma tragédia nacional, que precisa ser combatida imediatamente, com máximos rigor e empenho.
Sinto vergonha em listar estes números. Mas precisamos revê-los, diariamente. Sei que estão disponíveis em documentos na internet e arquivos de jornais. Porém, como disse Átila Roque, da Anistia Internacional Brasil, somos vítimas de uma “epidemia de indiferença”, que torna praticamente invisível (a não ser em instantes dramáticos como o que vivemos, que tendem a ser esquecidos por quem não é próximo) uma situação “que deveria estar sendo tratada como uma verdadeira calamidade social.” Em vez de tratamento, nossa atitude indiferente, para não dizer cúmplice, perpetua a doença. Vamos aos números, então. Quem me ajudou a coletá-los foi a cientista social Silvia Ramos, pesquisadora do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes. O conjunto forma uma imagem de guerra: há cerca de duas décadas, são assassinadas bem mais que 30 mil pessoas por ano no Brasil. Isso dá uma taxa de mais ou menos 25 assassinatos por 100 mil habitantes, o que coloca nosso país entre os dez mais violentos do planeta.
Essas mortes não são distribuídas aleatoriamente por toda nossa população. As estatísticas variam – de maneira assustadora – por sexo, idade, cor e território. As taxas da Lagoa e do Leblon são europeias, com cinco homicídios por 100 mil habitantes. Em outros pontos da cidade, nas zonas Oeste e Norte, temos taxas de 75 por 100 mil. A taxa de homicídios de jovens negros do sexo masculino no Rio de Janeiro é de quase 200 (DG estaria entre esses 200) por 100 mil. Repito que o Brasil está entre os dez países mais violentos do mundo com taxa de 25 por 100 mil. Com 200, seríamos líderes isolados nesta relação sinistra. Números absolutos são ainda mais vergonhosos: de 1981 a 2010 foram assassinados 176.044 pessoas com 19 anos ou menos no país.
Quando Silvia Ramos cita essas estatísticas em seminários internacionais, a primeira reação da plateia é de incredulidade. Muita gente pensa que há algo de errado nos números. Depois da confirmação, surgem as perguntas: “E vocês deixam isso acontecer? E vocês não fazem nada?” Passo a pergunta para quem está lendo esta coluna: o que estamos fazendo? O que fazer? Não me agradam discursos apenas indignados. Quero propostas concretas para a resolução dos problemas.
Não sou especialista em segurança, mas tenho o privilégio de conviver com pessoas como Silvia Ramos ou José Marcelo Zacchi (no ano passado ele entrou também para a família “Esquenta!”), que desde a adolescência, primeiro fundando o Sou da Paz paulistano e depois o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, se dedica a esse campo de estudos e militância. Aprendo sempre com suas lições, como na apresentação – em torno da mesa eletrônica do programa “Navegador”, na GloboNews – da proposta de pacto suprapartidário (em texto suscinto, que precisa ser lido por todos, assinado por Renato Sérgio de Lima, Cláudio Beato, José Luiz Ratton, Luiz Eduardo Soares e Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo, nomes vindos de lugares bem diversos de nosso espectro político) para uma reforma efetiva da segurança pública. Na mesma conversa conheci a PEC-51, principal projeto de reforma existente hoje no Congresso, que advoga inclusive um novo modelo de polícia para o país.
Logo após a exibição desse programa li, em redes sociais, vários comentários de policiais apoiando enfaticamente a reforma. Sinal que já vivemos em ambiente que torna possível uma conversa civilizada e democrática (sem a polarização radical que qualifica qualquer questionamento da atuação da polícia como “defesa de bandidos”) sobre as medidas necessárias para acabarmos com todos os tipos de violência. Ninguém precisa concordar com as propostas. Elas estão citadas aqui apenas como exemplos para serem debatidos. É necessario seguir adiante, lutar por mudanças urgentes. Tarefa de todos nós. Só assim passaremos a viver num país onde tragédias como a do DG não aconteçam nunca mais.