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Século McLuhan

07/05/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29-04-2011

Meu amigo André Stangl, que conheci nos tempos pioneiros dos estudos ciberculturais baianos e hoje vive em São Paulo, manda avisar: Marshall McLuhan está de volta aos meios universitários paulistanos, depois de anos numa certa berlinda. Mais precisamente: segunda e terça-feira será realizado “O século McLuhan”, evento realizado pelo Atopos, centro de pesquisa “fora-de-lugar”, mas de certa forma baseado na ECA da USP (inscrições em www.atopos.usp.br/mcluhan). O leitor pode se perguntar: qual século, o XX ou o XXI? Qualquer um. Tom Wolfe, na introdução para o livro “Understand me” (cujo título é uma brincadeira com seu clássico “Understand media” e que foi publicado no Brasil, pela Ediouro, como “McLuhan por McLuhan”), afirma: “Não consigo pensar em outra figura que tenha assim dominado um campo de estudo inteiro na segunda metade do século XX. Na virada do século XIX e nas primeiras décadas do XX, havia Darwin na biologia, Marx na ciência política, Einstein na física, e Freud na psicologia. Desde então houve apenas McLuhan nos estudos da comunicação”. Outras pessoas dizem que as profecias de McLuhan só se tornarão realidade, ou dominarão nossa realidade, agora depois do ano 2000. Mesmo assim, o evento se refere a um outro século, bem mais preciso: em 2011 comemoramos os 100 anos de nascimento do cara que, entre outras coisas, nos disse que o mundo se transformou numa aldeia global e que o meio sempre foi a mensagem.

Fiquei surpreso ao ser lembrado que McLuhan nasceu em 1911. Isso significa que quando publicou suas obras mais inovadoras e de maior impacto já tinha mais de 50 anos e cerca de três décadas dando aulas. De certa forma, livros como “A galáxia Gutenberg” ou o “Understanding media” parecem ser trabalhos de uma mente mais jovem, capaz de comprar qualquer briga sem temer perder respeitabilidade conquistada em já longa carreira acadêmica. McLuhan permaneceu jovem audacioso até o final de sua vida, em 1980. Foi um desses muleks eternos como John Cage, Miles Davis, Mário Pedrosa, para quem a idade transmite não peso intelectual, mas leveza para encarar o mundo ainda com mais audácia e liberdade. É possível comprovar isso assistindo os vários vídeos com aparições de McLuhan na TV dos anos 60 e 70 que estão disponíveis na internet. Uma alma bondosa, talvez anônima para evitar problemas relativos a direito autoral, nos fez o favor de compilar todos essas imagens num único site para a comemoração do centenário. Procure por “Marshall McLuhan Speaks” em qualquer ferramenta de busca. Além da introdução de Tom Wolfe, que começa com a aparição de McLuhan no filme “Noivo neurótico, noiva nervosa” de Woody Allen, podemos ver clipes de suas respostas, divididas por assunto, que revelam como sua maior diversão era causar polêmicas, ou falar aquilo que fundia a cuca de seus interlocutores, que mesmo com vontade de não levá-lo à sério acabavam se deixando encantar pela convicção maluca, e inteligência impressionante, do mestre pop.

Quem ainda estiver desconfiado, talvez por causa dos ternos de McLuhan (afinal o meio, nesse caso corpo e roupa, passa muita mensagem), deve visitar o UbuWeb (viva Kenneth Goldsmith! Todo mundo leu sua entrevista no Prosa & Verso? Aula obrigatória…), fechar os olhos e escutar os arquivos com a gravação do LP “The medium is the massage”, lançado por McLuhan pela Columbia Records no final dos anos 60, portanto quando ele tinha quase 60 anos. O que está ali registrado é uma das experiências de colagem sonora mais radicais e psicodélicas da história da indústria fonográfica. A Wikipedia diz que a produção foi de John Simon, que já assinara a beleza minimalista de “Songs of Leonard Cohen”. Com a “massagem midiática” o espírito era de total maximalismo, imagino que uma tentativa de registrar para a posteridade como podemos aproveitar melhor aquilo que McLuhan chamava de “espaço acústico”, onde tudo convive ao mesmo tempo agora, sem centro e periferia, sem a linearidade da escrita e do campo visual.

Se possível, e os neurônios deixarem, esculache a audição lendo ao mesmo tempo a entrevista que McLuhan deu para a Playboy em 1969. Kevin Kelly (tenho que escrever uma coluna sobre este outro cara urgentemente), no blog que era apenas para preparar seu maravilhoso e já-lançado livro “The technium” mas onde há novos posts e tomara que nunca tenha fim, disse que McLuhan não escrevia: deitava no sofá e começava a falar seus deliciosos absurdos, que eram transcritos por alunos. Era um feiticeiro da oralidade, uma máquina de produzir slogans, uma campanha permanente de marketing para seu próprio pensamento. Por isso se dava tão bem em entrevistas. Na da Playboy, bem longa, estava especialmente inspirado. A primeira resposta, eu gostaria de dar hoje, para explicar o que tento produzir aqui nesta coluna: “Estou fazendo explorações. Não sei onde elas vão me levar. Meu trabalho é desenhado para o objetivo pragmático de entender nosso ambiente tecnológico e suas consequências psíquicas e sociais. Mas meus textos constituem o processo mais que o produto completo da descoberta; meu propósito é empregar os fatos como sondas investigativas, como meios de insights, de reconhecimento de padrões, mais que usá-los no sentido tradicional e estéril de classificação, categorias, contêineres. Eu quero mapear novos terrenos e não cartografar velhas fronteiras.”

ciberbahia

10/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 05/11/2010

Há uma década, Goli Guerreiro lançou “A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador” (Editora 34), leitura obrigatória para quem quiser falar qualquer coisa menos óbvia sobre o sucesso da revolução estética/industrial/social que ficou conhecida, primeiro pejorativamente, como “axé music”. Agora ela amplia e radicaliza sua análise dessa impressionante transformação com dois novos livros irmãos: “Terceira diáspora: o porto da Bahia” e “Terceira diáspora: culturas negras no mundo atlântico”, originados no blog www.terceiradiaspora.blogspot.com. São lançamentos, os livros, da editora Corrupio, que já nos brindou com, além de muita coisa essencial de Pierre Verger, alguns clássicos como “Carnaval ijexá”, de Antonio Risério, e “O país do carnaval elétrico”, de Fred Góes. É preciso sempre saudar sua resistência editorial-regional, fato raro (e a raridade é lamentável) em outros lugares do Brasil “fora do Eixo”.

“Terceira diáspora” é conceito para tentar entender o estado mutante das trocas culturais das culturas negras pós-internet. A primeira diáspora foi criada pelo tráfico negreiro. A segunda aconteceu quando populações descendentes de africanos negros se deslocaram novamente por vários continentes, mudando a cara de muitas cidades do mundo: haitianos em Nova York, senegaleses em Paris, surinameses em Roterdã e assim por diante. A terceira diáspora aconteceria agora, quando a comunicação entre todos esses mundos negros é facilitada por vídeos no YouTube, programas da rádio 1Xtra da BBC, arquivos torrent de cinema nigeriano, e muitos outros bytes.

Goli Guerreiro, mestre e doutora em antropologia pela USP, pós-doutora pela UFBA, percorre as infovias e os caminhos “reais” entre os portos da terceira diáspora com voracidade antropofágica, produzindo novas informações (em textos e imagens), sampleando pensamentos, compondo um panorama ricamente fragmentado de links transculturais recém-estabelecidos. Os livros não têm exatamente capítulos; são mais coleções de posts, todos com palavras-chaves, remetendo uns aos outros, incentivando o(a) leitor(a)/usuário(a) a continuar a navegação em outras mídias. No “Culturas negras no mundo atlântico”, podemos nos transportar do carnaval no casario Ginger Bread de Port of Spain, em Trinidad e Tobago, para o Festival de Vodun, em Uidá, no Benin, antes de mergulhar num maremoto de citações, com falas/escritos (muitas vezes saborosamente contraditórios) de gente com Cornel West e o DJ Thaíde.

“O porto da Bahia” é guia para a produção contemporânea, depois de Neguinho do Samba, de arte e ideologia negras em Salvador. Tem a união de big band com candomblé do Rumpilezz, tem o hip-hop-samba-de-roda do DJ Bandido, tem o design de carrinhos ambulantes e sonorizados de café, tem os programas de TV de Jorge Portugal.

Gosto dessa mistura, adoraria ver outras cidades do Brasil de hoje retratadas assim, de forma tão potente. Porém, já fico buscando novos navios ou servidores partindo/chegando/transmitindo dos portos mapeados por Goli Guerreiro. Dentro da “terceira diáspora”, com sua base na informática, não consegui parar de pensar, ao navegar alegre pelos livros e pelo blog, no pioneirismo baiano em termos de filosofia tecnocultural, com a formação de turma que inventou uma CiberBahia paralela, incluindo André Lemos, Marcos Palácios (lembro seus estudos sobre MOOs, os avós do Second Life, lá no início dos anos 90, até antes da web), Cláudio Manoel, Gilberto Monte, Messias Bandeira, André T, André Stangl e tanta gente boa mais.

Acho que é deformação de personalidade: gosto de ver gente diferente, com muitos tons de pele, em contato, colaborando para implodir guetos e identidades fixas. Sou discípulo de Édouard Glissant, um dos heróis do livro “Culturas negras no mundo atlântico”. Outro dia li mais uma de suas entrevistas sensacionais, desta vez publicada numa revista do Le Monde sobre o “Outre-Mèr” francês. Contra a fixidez identitária, ele propõe sempre a “identidade-relação”: devemos construir nossa personalidade na encruzilhada de nós mesmo com os outros. Essa é a receita para estarmos atentos ao incompreensível e à poesia que não é nossa. Glissant declara que só crê “nos pensamentos incertos de sua potência” – pensamentos do “tremor”, pensamentos mestiços, nunca fechados no seu mundo, por mais “atlântico” que seja. A mestiçagem das artes, e mesmo das línguas, produz o inesperado – não a uniformização, mas a difusão de novos sentidos, “maneiras de se transformar de modo contínuo, sem se perder”.

Claro, afirmar a negritude baiana, e reforçar suas conexões com o mais vibrante da terceira diáspora, é passo fundamental. Mas nunca ficar no mesmo circuito. Lembro sempre daquela música excelente da Sarajane: “abre a rodinha”. Chegamos ao limite do processo descrito por Agnes Mariano, no livro “A invenção da baianidade” (Editora Annablume). Ser baiano adquiriu outros sentidos. É preciso conectar, também e cada vez mais, a trama dos tambores da terceira diáspora com outros núcleos importantes de inovação cultural que não se situam dentro dos limites, mesmo fractais (como quer Paul Gilroy), do mundo negro. Só assim poderemos inventar novas maneiras de sermos dignos daquilo que Glissant, com Patrick Chamoiseau, chamou, em carta aberta para Barack Obama, da “intratável beleza do mundo” – todo o mundo.