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Shigeru Miyamoto

10/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 12/11/2010

Na semana passada, a Microsoft lançou o Kinect para Xbox 360. Foi o terceiro console a seguir a tendência, iniciada pelo Wii da Nintendo, e depois pelo recente Playstation Move da Sony, de tirar os games da tela e misturá-los com o mundo. O Kinect tem câmera, microfone e sensores 3D que captam movimentos e falas. Assim o jogador não precisa mais de controle para interagir com os games: ele está dentro do jogo. A empresa de Bill Gates diz que vai vender 5 milhões de kinects em 2010. A Sony diz que já vendeu 2,5 milhões de moves só nos EUA e Europa. Números impressionantes. Mas ainda merreca se comparados com o 1 bilhão de dólares que a Nintendo arrecadou só com o WiiFit, aquela “balança” de malhação do Wii. Shigeru Miyamoto, o gênio por trás de tudo que a Nintendo lançou nestes últimos 25 anos, continua em outro “level”, muitos pontos à frente nesse jogo feroz que vai determinar o futuro do entretenimento.

25 anos é a idade de Mario, aquele simpático encanador bigodudo que hoje tem imagem tão reconhecivelmente pop quanto Mickey Mouse. Mario foi criação de Miyamoto, primeiro participando do triângulo amoroso de “Donkey Kong”, que é considerado decisivo na história dos games não apenas por ter lançado personagens que hoje são celebridades, mas por sua concepção engenhosa de plataformas e obstáculos, que depois se tornaram elementos triviais em muitos outros jogos.

Além de Mario, Miyamoto é também pai das oníricas personagens da série Zelda, que inclui alguns campeões de lista de melhores games de todos os tempos, influenciando o imaginário de várias gerações de adolescentes. Todas as suas séries reunidas (Mario, Zelda e vários games, entre eles aqueles estrelados pelos fofíssimos nintendogs) venderam mais de 350 milhões de exemplares. Não contente com esse sucesso na criação de jogos, Miyamoto passou também a ser inventor de equipamentos que expandiram em muito a “jogabilidade” de seus universos ficcionais paralelos, lançando novas maneiras de brincar com a informação eletrônica, reinventando a indústria da qual faz parte. Quando eu vi pela primeira vez alguém usando o controle do Wii como se fosse uma raquete de tênis, batendo na bola que era “arremessada” da tela da TV, eu pensei: “Será que tenho mesmo que encarar isso com naturalidade?” Nunca tinha presenciado algo tão parecido com ficção científica maluca. Hoje aquilo é totalmente natural.

Miyamoto é nosso melhor professor para a vida nessa nova natureza, desenvolvida em sua mente e seus laboratórios. Mas quem é esse cara que tem tanto controle sobre nossas vidas? Pouca coisa é realmente interessante na vida dele. Não é como Will Wright, outro gênio dos games, que tem atuação midiática mais “condizente” com artistas de sua estatura. Miyamoto parece trabalhador comum da indústria japonesa, nem considera o que faz uma arte, não dá entrevistas citando filósofos e cientistas, é figura tímida e quase apagada. Até hoje, quando tem 58 anos, fica religiosamente na Nintendo de 9 às 22/24 horas, tendo mesmo se casado com outra funcionária da empresa. Algumas de suas declarações famosas soam simplórias, jogando contra suas invenções, ou contra seu papel nessas invenções. Nos autógrafos para fãs crianças, ele escreve: “em dias de sol, brinque ao ar livre”. Sobre o que busca em novos profissionais: “quando alguém se destaca demais na fase de seleção, geralmente acabamos descobrindo que ele é do tipo que trabalha melhor sozinho e, atualmente, para atuar na criação de jogos, é vital saber trabalhar em equipe.” Tudo bem japonês.

Na realidade, como diz Jesse Schell, “a maioria dos mundos transmídia de sucesso estão enraizados na imaginação e no estilo estético de um único indivíduo. Gente como Walt Disney, Shigeru Miyamoto, L. Frank BaumTajiri Satoshi e George Lucas”. Schell é o pensador “da hora” quando o assunto é game. Foi catapultado para o mundo dos gurus há pouco tempo, através do vídeo de sua conferência na D.I.C.E (Design Innovate Communicate Entertain), encontro fundamental para a indústria dos jogos eletrônicos (em 2011 terá sua décima edição), que acabou tendo mais de um milhão de views nos YouTubes da vida. Uma palestra mais recente, proferida na Long Now Foundation, é uma maratona de boas idéias, um mapa essencial para nos guiar no mundo pós-Miyamoto, pós-Wii. Vale a pena ser assistida na íntegra, apesar de suas duas horas de duração (e uma alma generosa poderia colocar legendas em português no vídeo).

Schell é profeta do “game-apocalípse”, o momento em que estaremos envolvidos em jogos a cada segundo de nossas vidas. Por exemplo: você acorda e vai escovar os dentes, a escova tem sensores conectados via wi-fi à internet, a cada escovada você ganha pontos que poderão significar descontos na próxima ida ao dentista. Ou então: na caixa do sucrilho do café da manhã haverá uma tela através da qual você poderá se comunicar com seus amigos do Orkut que gostam daquela marca de cereais. E assim por diante. Schell diz que os games ainda estão no estágio cinema mudo. Todo mundo achava engraçadinho, mas ninguém levava os filmes muito a sério. Até que surgiu o cinema falado. O que vai ser a “fala” no mundo dos games? Esperemos as próximas invenções de Miyamoto. Quietinho lá em Quioto, ele ainda vai nos surpreender muito, e mudar nossas vidas várias vezes.

ciberbahia

10/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 05/11/2010

Há uma década, Goli Guerreiro lançou “A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador” (Editora 34), leitura obrigatória para quem quiser falar qualquer coisa menos óbvia sobre o sucesso da revolução estética/industrial/social que ficou conhecida, primeiro pejorativamente, como “axé music”. Agora ela amplia e radicaliza sua análise dessa impressionante transformação com dois novos livros irmãos: “Terceira diáspora: o porto da Bahia” e “Terceira diáspora: culturas negras no mundo atlântico”, originados no blog www.terceiradiaspora.blogspot.com. São lançamentos, os livros, da editora Corrupio, que já nos brindou com, além de muita coisa essencial de Pierre Verger, alguns clássicos como “Carnaval ijexá”, de Antonio Risério, e “O país do carnaval elétrico”, de Fred Góes. É preciso sempre saudar sua resistência editorial-regional, fato raro (e a raridade é lamentável) em outros lugares do Brasil “fora do Eixo”.

“Terceira diáspora” é conceito para tentar entender o estado mutante das trocas culturais das culturas negras pós-internet. A primeira diáspora foi criada pelo tráfico negreiro. A segunda aconteceu quando populações descendentes de africanos negros se deslocaram novamente por vários continentes, mudando a cara de muitas cidades do mundo: haitianos em Nova York, senegaleses em Paris, surinameses em Roterdã e assim por diante. A terceira diáspora aconteceria agora, quando a comunicação entre todos esses mundos negros é facilitada por vídeos no YouTube, programas da rádio 1Xtra da BBC, arquivos torrent de cinema nigeriano, e muitos outros bytes.

Goli Guerreiro, mestre e doutora em antropologia pela USP, pós-doutora pela UFBA, percorre as infovias e os caminhos “reais” entre os portos da terceira diáspora com voracidade antropofágica, produzindo novas informações (em textos e imagens), sampleando pensamentos, compondo um panorama ricamente fragmentado de links transculturais recém-estabelecidos. Os livros não têm exatamente capítulos; são mais coleções de posts, todos com palavras-chaves, remetendo uns aos outros, incentivando o(a) leitor(a)/usuário(a) a continuar a navegação em outras mídias. No “Culturas negras no mundo atlântico”, podemos nos transportar do carnaval no casario Ginger Bread de Port of Spain, em Trinidad e Tobago, para o Festival de Vodun, em Uidá, no Benin, antes de mergulhar num maremoto de citações, com falas/escritos (muitas vezes saborosamente contraditórios) de gente com Cornel West e o DJ Thaíde.

“O porto da Bahia” é guia para a produção contemporânea, depois de Neguinho do Samba, de arte e ideologia negras em Salvador. Tem a união de big band com candomblé do Rumpilezz, tem o hip-hop-samba-de-roda do DJ Bandido, tem o design de carrinhos ambulantes e sonorizados de café, tem os programas de TV de Jorge Portugal.

Gosto dessa mistura, adoraria ver outras cidades do Brasil de hoje retratadas assim, de forma tão potente. Porém, já fico buscando novos navios ou servidores partindo/chegando/transmitindo dos portos mapeados por Goli Guerreiro. Dentro da “terceira diáspora”, com sua base na informática, não consegui parar de pensar, ao navegar alegre pelos livros e pelo blog, no pioneirismo baiano em termos de filosofia tecnocultural, com a formação de turma que inventou uma CiberBahia paralela, incluindo André Lemos, Marcos Palácios (lembro seus estudos sobre MOOs, os avós do Second Life, lá no início dos anos 90, até antes da web), Cláudio Manoel, Gilberto Monte, Messias Bandeira, André T, André Stangl e tanta gente boa mais.

Acho que é deformação de personalidade: gosto de ver gente diferente, com muitos tons de pele, em contato, colaborando para implodir guetos e identidades fixas. Sou discípulo de Édouard Glissant, um dos heróis do livro “Culturas negras no mundo atlântico”. Outro dia li mais uma de suas entrevistas sensacionais, desta vez publicada numa revista do Le Monde sobre o “Outre-Mèr” francês. Contra a fixidez identitária, ele propõe sempre a “identidade-relação”: devemos construir nossa personalidade na encruzilhada de nós mesmo com os outros. Essa é a receita para estarmos atentos ao incompreensível e à poesia que não é nossa. Glissant declara que só crê “nos pensamentos incertos de sua potência” – pensamentos do “tremor”, pensamentos mestiços, nunca fechados no seu mundo, por mais “atlântico” que seja. A mestiçagem das artes, e mesmo das línguas, produz o inesperado – não a uniformização, mas a difusão de novos sentidos, “maneiras de se transformar de modo contínuo, sem se perder”.

Claro, afirmar a negritude baiana, e reforçar suas conexões com o mais vibrante da terceira diáspora, é passo fundamental. Mas nunca ficar no mesmo circuito. Lembro sempre daquela música excelente da Sarajane: “abre a rodinha”. Chegamos ao limite do processo descrito por Agnes Mariano, no livro “A invenção da baianidade” (Editora Annablume). Ser baiano adquiriu outros sentidos. É preciso conectar, também e cada vez mais, a trama dos tambores da terceira diáspora com outros núcleos importantes de inovação cultural que não se situam dentro dos limites, mesmo fractais (como quer Paul Gilroy), do mundo negro. Só assim poderemos inventar novas maneiras de sermos dignos daquilo que Glissant, com Patrick Chamoiseau, chamou, em carta aberta para Barack Obama, da “intratável beleza do mundo” – todo o mundo.

Jorge Caldeira

10/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29/10/2010

Jorge Amado, escrevendo sobre o lançamento de “Casa-grande e senzala”, não economizou o tom bombástico: “Foi uma explosão […] Quem não viveu aquele tempo não pode imaginar a sua beleza […] o livro de Gilberto deslumbrava o país, falava-se dele como nunca se falara antes de outros livros.” Monteiro Lobato foi até mais apoteótico: “qual o Cometa de Halley, irrompera nos céus da nossa literatura…” Diante desses comentários, fiquei com inveja. Não me lembro, desde que me tornei devorador de livros, de um lançamento sobre o Brasil que tivesse gerado tal deslumbramento. Ou mesmo que tivesse provocado apenas em mim surpresa capaz de desnortear minha visão de país, propondo uma maneira realmente nova de pensar nosso lugar no mundo.

Talvez os livros, não apenas quando falam do Brasil, tenham perdido esse poder. Games e softwares ganharam corações e mentes, de forma contundente, apesar de pouco analisada, e sem produção nacional de peso. Por exemplo: Halo:Reach, game recém-lançado, vendeu 200 milhões de dólares no primeiro dia, em todo o planeta. Isso é que é um cometa de Halley mercadológico, que irrompe nos céus da consciência contemporânea fora do radar da crítica artística, sem deslumbrar figurões da literatura de país algum. Porém, mesmo com essa competição “desleal” de outros estímulos culturais, provavelmente o verdadeiro problema não seja somente mídia (game ou livro), mas também o tal “conteúdo” (o “Brasil”, o “nacional”), e assim – abruptamente – a ausência desses livros em nossa vida atual fica bem explicada, ou eternamente sem explicação.

Então – quando eu já estava conformado, jogando “Little big planet” – surge o “História do Brasil com empreendedores”, de Jorge Caldeira. Terminei a  leitura há meses. Tentei fazer pouco caso, ou abafar meu espanto. Claro que ouvia elogios, mas todos meio “blasés”, ou distanciados, como se proferidos por personagens do Dolce Vita de Fellini, naquela festa final, quando – diante do oferecimento de um strip-tease – alguém diz: “Não novamente, todo mundo já viu você nua.” Prudente, fiquei esperando a contestação de algum historiador, metralhando dados para provar que o que Caldeira diz está errado. Nada, até agora. Isso quer dizer que todo mundo aceitou a nova interpretação do Brasil? Ou ninguém leu direito, ou deu importância ao que leu?

Estranhíssima situação. No meu pensamento, as teses de Caldeira foram – como naquela música do Peninha“crescendo, crescendo, me absorvendo e de repente eu me vi completamente” delas, tomado pelo livro. E tenho que confessar: o Brasil deixou de ser o mesmo país em que eu vivia antes da leitura. Não é exagero: se vamos, a partir de agora, levar a sério o que está escrito em suas páginas, mesmo os livros didáticos precisam ser reescritos. Nas escolas, aprendemos que a economia colonial brasileira não se desenvolveu pois tudo que era produzido aqui ia para Portugal. Caldeira revela um outro início de país, com mercado interno mais dinâmico que o da metrópole, com vida rica fora da casa-grande e da senzala. Somos ensinados, desde criancinhas nas primeiras aulas de História, a pensar uma colônia apenas com senhores e escravos. “História do Brasil com empreendedores” fala de uma terra que tinha, na pior das hipóteses, mais de dois terços da população composta por homens livres. Meu espanto: como os outros livros nos “esconderam” essa gente toda, esse tempo todo? E o que fazer, a partir de agora, com o aparecimento dessa “nova” e decisiva população?

Como se isso não bastasse, Caldeira ainda lança várias outras idéias que para mim são alegremente pertubadoras, e exigem revisão cuidadosa de várias de crenças anteriores. Com Gilberto Freyre, eu imaginava que a mestiçagem brasileira tivesse origem ibérica, talvez árabe. Vários bons momentos de “História do Brasil com empreendedores” viram essa idéia pelo seu avesso “perspectivista”: nossos índios se tornam os “miscigenadores” mais radicais e obstinados. Certa vez, em entrevista, Aílton Krenak me disse que os índios não tinham lugar em “Casa-grande e senzala” – eram os que ficavam fora, à espreita, prontos para o ataque. Para Caldeira, o ataque já aconteceu, na surdina, mudando os corpos de senhores e escravos, sem que eles percebessem ou escrevessem sobre isso em seus livros de História, ou contra-História.

Fui procurar outros livros de Caldeira. Dei sorte de encontrar um exemplar da edição esgotada de “A construção do samba”, que reúne ensaios dos anos 1980. Incrível não ter conhecido esses textos antes de ter escrito o meu “O mistério do samba”, com tantas preocupações em comum. Foi interessante reencontrar Donga, que agora pode ser “lido” como um empreendedor, inventor de um “negócio”, o da música popular no Brasil, entre o “mercado” e a autenticidade, entre a “roda” e o consumo de massa. Na perspectiva de Caldeira, o sambista – como o trabalhador livre da colônia – deixa de ser apenas o excluído, para se tornar também – ao mesmo tempo – agente de sua própria história, mesmo de forma informal.

A informalidade, “o fio do bigode” e o favor acabam se tornando os maiores inimigos dos empreendedores. O crescimento da periferia – ainda que exuberante – fica contido, à margem. Com metade da sua força de trabalho na informalidade, o Brasil precisa enfrentar esse problema mais que central. Pense nisso, antes de votar no domingo.

minha (anti)ideologia

09/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 22/10/2010

Entre as várias declarações inesquecíveis de Andy Warhol, gosto de citar esta aqui: “Não estou tentando educar as pessoas para verem coisas ou sentirem coisas em minhas pinturas; não há nelas nenhuma forma de educação.” Gosto sobretudo por encarnar uma contradição pessoal: Warhol continua sendo um dos meus mais exigentes educadores, com lições que marcaram profundamente a maneira como vejo o mundo ou como quero que o mundo seja. Foi isso que redescobri com a leitura de “Andy Warhol – o Gênio do Pop” (tradução torta, mas não absurda, para “Pop – the genius of Andy Warhol”), livro imagino que recém-lançado no Brasil, encontrado numa mesa de saldos da Livraria da Travessa.

É uma biografia dos anos mais importantes da carreira de Warhol, praticamente toda a década de 60, da sua entrada para mundo das galerias até o tiro de Valerie Solanas. Foi escrita por dois jornalistas mais ligados ao universo da música, Tony Scherman e David Dalton. Um deles, Dalton, foi fundador da revista Rolling Stone. A crítica do New York Times resume minha desconfiança ao ler essas informações na orelha, e depois o meu alívio ao reconhecer que tinha feito uma boa compra, apesar de impulsiva: “A idéia de dois connoisseurs do rock trabalhando na enésima biografia de Warhol não soa muito sedutora, mas eles de fato escreveram um livro excelente, um trabalho de grande clareza e concisão que dá novo frescor para Warhol (e os críticos de rock).”

Esse frescor não vem apenas de fofocas bem pesquisadas, várias delas reunindo até então muito esparsas informações sobre a vida sexual do biografado, ele mesmo um fofoqueiro convicto (“Uma das coisa que sempre gostei de fazer é ouvir o que as pessoas pensam uma das outras – você aprende tanto sobre a pessoa que fala quanto sobre a pessoa que está sendo esculachada. Isso é chamado fofoca, claro, e é uma das minhas obsessões.”) Mas confesso que não sou o melhor juiz para medir o grau de novidade de mexericos do meio das artes plásticas norte-americanas. Não sabia nem que Robert Rauschenberg namorava com Jasper Johns, formando casal abençoado por John Cage. Vivendo e aprendendo.

Para além dos detalhes apimentados, o que mais me interessou na biografia foi a quantidade exuberante de informações sobre o processo criativo de Warhol, com minúcias sobre a gênese das idéias que estão na base da maior parte dos trabalhos produzidos nessa época, das latas de sopa Campbell’s aos shows com o Velvet Underground. Se, mesmo para o samba, idéia é que nem passarinho (“é de quem pegar primeiro”), no Pop o ambiente incentivava constante criação coletiva, e o esvaziamento glamuroso da noção de autoria. Tudo bem assumido, com humor e densidade filosófica: “Eu nunca fiquei envergonhado ao perguntar para alguém, literalmente, ‘O que devo pintar?’ porque o Pop vem de fora”.

O gesto de Marcel Duchamp, que ainda produziu objetos únicos, entrou para a linha de produção de massa. Fazer mais do mesmo, como uma máquina, ou deixar que os outros cuidem do artesanato de cada obra, virou motivo de orgulho: “Eu fiz 50 telas com Elvis em um único dia!” A mesma coisa dita com outras palavras: “Todo mundo pode fazer o que eu faço.” Tudo fora. Plástico, artificial, não-original. Nada dentro. Ele mesmo dava a fórmula: “Se você quiser saber alguma coisa sobre Andy Warhol, olhe apenas para a superfície de meus quadros e filmes e de mim mesmo – e ali estou. Não há nada atrás disso.” No vazio, pop-zen, e no gosto pelas coisas do mundo (“tudo é bonitinho”) está a salvação. “Se eu vou me sentar e ver a mesma coisa que vi ontem, não quero que ela seja essencialmente a mesma – quero que seja exatamente a mesma. Quanto mais você olha para a mesma exata coisa, mais o sentido vai embora, e você se sente melhor e mais vazio.”

A estratégia de Warhol foi tão inteligente, e tão profissional, que a arte depois da Factory tem que partir de onde ele nos deixou, desamparados e iluminados no grande supermercado da vida, transformada num grande vazio, renovador da possibilidade de crítica. Qualquer ação artística que não leve esse golpe em consideração vira tentativa ingênua e burra de restauração de uma ordem caduca ou simplesmente fascista. Sempre considerei Warhol de esquerda, da melhor esquerda. Como lembra um componente do coletivo russo Chto Delat?: a pergunta da direita é “quem é o culpado?”, a da esquerda é “que fazer?”. O Pop, em seu momento de maior genialidade, era um plano de ação para um mundo sem nenhuma ilusão, sem boba “interioridade”, sem culpados (porque sem Culpa).

Fiquei animado ao reler essas coisas, parte essencial de minha (anti)doutrina, no meio desse tiroteio religioso-eleitoral, sob o qual o Rio vive um momento privilegiado em termos de exposições, com a série Apocalipse de Keith Haring (o melhor discípulo de Warhol junto com o Kraftwerk?) e William Burroughs (Warhol declarou querer viver dentro de uma cena de Naked Lunch) exposta até novembro, em algum lugar do Centro (a Caixa Cultural) entre o buraco na rede de pingue-pongue de Waltércio Caldas, os aviões-árvores de Nuno Ramos, as araras arrancadas da Tropicália de Hélio Oiticica (nunca mais penetraremos na obra completa?), o Islã do CCBB e qualquer mídia dos 2 RochaPittas. Muita coisa para fazer, e fazer novamente, para nos inspirar no dia da votação.

The Wire

09/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 15-10-2010

Há poucas semanas, Arthur Dapieve, companheiro colunista das sextas-feiras aqui no Segundo Caderno, revelou seu espanto ao constatar que os artistas que enfeitam as últimas capas de sua revista de música pop favorita, a Mojo, têm em média 60 anos. Fui logo conferir as capas da minha revista de música favoritiva, a The Wire. A comparação aparentemente não faz muito sentido. Afinal, a The Wire  (não confundir com a Wired) não trata só de música pop. Em suas páginas lemos também sobre jazz, música clássica, world music, dub, metal e vários outros gêneros, sobretudo em suas fronteiras mais extremas. Mas por não ser novidadeira, como a Mojo, talvez a experiência comparativa possa dar o que pensar.

Este ano, a The Wire publicou capas com os seguintes artistas: Chris Watson, The Bug, Felix Kubin, Excepter, Konono No. 1, Alasdair Roberts, Wadada Leo Smith. Não sinta vergonha se não ouviu falar em nenhum deles. Isso é bem The Wire, uma revista de nicho, para quem tem gosto fora da norma. Mas procure por esses nomes no Google. Além de escutar música boa e supreendente, você descobrirá que a banda noise-improv Excepter foi fundada em 2002 e que Wadada Leo Smith vive na vanguarda do jazz desde os anos 60. Muitos grupos étnicos, gerações, orientações sexuais e filosofias artísticas convivem na revista. Para a música avançada, depois de tanto tempo de modernismo, idade não é mesmo documento. Terry Riley foi capa com barba de Papai Noel, aos 73 anos. Joanna Newson foi capa com vestidinho neo-folk, aos 24. O público da revista deve gostar dessas mudanças bruscas. Ou pelo menos eu gosto, e provavelmente por isso essa seja a única revista que assino. Outras revistas que leio têm similares. A The Wire é única.

A soma dos assinantes com quem compra a The Wire em bancas do mundo inteiro não lotaria o Maracanã (mas incluiria nomes como Matt Groening, criador dos Simpsons, e Thurston Moore, do Sonic Youth – os dois assinantes há mais de 15 anos). Tive oportunidade de conversar com Tony Herrington, editor da revista, no final de um recente debate sobre música experimental londrina. Ele me disse que o número de assinaturas se mantém constante há algum tempo, na marca de 85 mil. Esse público fiel paga as contas da revista e a excelência de seu jornalismo ousado, que não se importa com o que está na moda ou o que é conhecido. Com essa segurança, a revista nem pensa, como a maioria das outras publicações, em deixar de lado o impresso para virar apenas site na internet. É o papel que sustenta a empreitada toda. Adoro receber meu exemplar pelo correio, quando confirmo mensalmente que ajudo a financiar a produção daquele conteúdo de qualidade. Sinto que faço parte de um coletivo com responsabilidade global. Um mundo sem a The Wire seria um mundo bem mais pobre.

Falo tudo isso com segundas intenções, que não se resumem somente em fazer propaganda e conseguir mais algumas assinaturas para a revista. A lição pode ser mais geral: revista boa e jornal bom não vão acabar por causa da internet. Precisamos cada vez mais de filtros confiáveis que nos ajudem a navegar pelo maremoto informacional digital, com estonteante abundância de ofertas de todos os tipos de produtos, para todos os tipos de público. O que importa é encontrar esse público, o seu público. Não é preciso necessariamente pesquisa de marketing, para saber o que o público quer. No caso da The Wire, seu público quer o que não sabe, quer descobrir o novo radical. Se as capas viessem com tudo o que conheço e gosto, cancelaria minha assinatura. É claro que para ser assim, ninguém pode esperar ter sucesso estrondoso de vendas. O público vai ser pequeno, mas nunca vai trair seu “modelo de negócios”, pois sabe que em nenhum outro local poderá encontrar a seleção e o aprofundamento que sua publicação apresenta e garante. A ambição vem a reboque: o pequeno pode se tornar referência poderosa, como é a The Wire, que indiretamente acaba influenciando outras revistas e o modo como as pessoas vão ouvir música no futuro.

Sem ilusões: é claro que no futuro as massas não vão consumir Eliane Radigue – mas traços de Eliane Radigue estarão cada vez mais presentes em todas as músicas, assim como a música concreta influenciou o hip hop. Nesse sentido, o debate sobre música experimental em Londres, mediado por Tony Herrington, foi revelador. Eu até me senti superior, vindo do Rio, terra do Plano B, nosso templo experimental da Lapa. A mesma situação, aqui e lá. Apesar de cenas vibrantes, com muitos músicos talentosos, poucos lugares para tocar. Em Londres hoje praticamente só existe o Café Oto, e alguns espaços nas galerias de artes plásticas. Para radicalismos, as artes plásticas sempre tiveram mais grana, principalmente numa cidade onde a Tate Modern virou atração turística tão popular quanto o Big Ben. Então todo mundo se vira como pode. Kaffe Matthews, charmosa debatedora, disse que tem feito cada vez menos performances ao vivo com seu laptop. Em vez disso, se dedica à criação de “móveis sonoros”, que pelo menos por enquanto não podem ser copiados em redes P2P.

PS: Vivienne Westwood nos persegue. Agora está toda vanguarda sustentável na publicidade da DHL: ela “tem um dedo no pulso e um olho no planeta”. Just like us. Nós, quem, cara-punk-pálida?