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Alberto Mussa

11/11/2017

Escrevi este texto no início de 2016. Era para a revista Boca Coletiva, que parece que encerrou suas atividades. Então publico aqui atrasado. Com atualização no final, pois saiu este ano um novo volume do “compêndio mítico sobre o Rio de Janeiro”, assinado por Alberto Mussa. Talvez o correto fosse reescrever tudo. Mas não tenho tempo agora. Vai assim, com remendo:

Alguns livros de ficção provocaram efeitos concretos, talvez até biologicamente transformadores, na minha maneira de estar no mundo ou processar informações do mundo, incluindo upgrade na interface corpo/mundo. Não foi sempre assim. É fenômeno recente na minha relação com a literatura, percebido depois de cinco décadas de vida. Lembro ter ficado transtornado com a leitura de “Os três estigmas de Palmer Eldrich” (aqui a edição brasileira mais recente), de Philip K. Dick, no início dos meus vinte anos, ao absorver cada uma de suas palavras geralmente no ônibus no Aterro ou na barca atravessando a Baía de Guanabara (eu estudava na UFF e morava em Copacabana). Parecia que vivia overdose da droga intergaláctica traficada na ficção. Pensei que nunca mais voltaria ao “normal”. Mas voltei, com poucas sequelas, algum tempo depois de atingir a última página.

Coisa diferente, e surpreendente, aconteceu quando descobri Kim Stanley Robinson, lendo “2312” três anos atrás. Tenho certeza: não piso mais na Terra da mesma forma. Agora, a não ser quando estou muito distraído, tenho plena consciência de estar a bordo de um planeta totalmente especial, neste sistema solar. Aprendi a concordar, de maneira visceral, com a reflexão da personagem central de “Aurora“, seu lançamento de 2015: “Talvez a resposta adequada para ficar de pé na superfície de um planeta, ao ar livre na sua atmosfera, bem próximo de sua estrela local, é sempre terror. Talvez tudo o que os humanos fizeram ou planejaram fazer foi projetado para se esquivar desse terror.” Mesmo agora, em fevereiro de 2016, quando vejo Júpiter pairar bem brilhante sobre as águas de Copacabana, eu permaneço, por longos instantes, aterrorizado (e também de certa forma maravilhado) com a sensação física opressiva (e também de certa forma leve) de estar preso/viajando aqui neste canto do universo. Ando com o Google Sky Map ligado. Nem saberia que aquele brilho ali vem de Júpiter se meus neurônios e o resto das células do meu corpo não tivessem passado pelo tratamento radioativo da ficção de Kim Stanley Robinson.

Neste canto do universo: Rio de Janeiro, sensação térmica beirando os 50 graus. (Escrevo em pleno carnaval.) Minha maneira de pisar nos asfaltos, morros, areias e pós-manguezais da cidade se transformou radicalmente e visceralmente depois que li Alberto Mussa. Não consigo mais atravessar o Aterro sem pontadas constantes de terror/maravilhamento lembrando o delta formado pela foz do rio Carioca, terreno quase impossível de ser cruzado por terra para chegar ao Castelo há 400 anos. Em cada caminho passei a carregar todas as épocas superpostas, sem ordem cronológica, tudo junto e misturado, ficção e realidade, seguindo as lições trans-históricas do projeto de cinco romances policiais que Mussa está publicando, um para cada século do Rio, mas não lançados na ordem “certa” (o primeiro foi “O trono da rainha Jinga“, ambientado no século XVII, o segundo foi “O senhor do lado esquerdo“, século XX, o terceiro “A primeira história do mundo“, século XVI – o próximo está prometido para o século XIX).

Terror sim, basicamente, isto é, na base de tudo, todo o resto. O narrador de “O senhor do lado esquerdo”, cujo subtítulo é “O romance da Casa de Trocas”, deve anunciar o projeto de Mussa para o “compêndio mítico”, “projeto absurdo”, formado por cinco volumes cariocas: “o que define uma cidade é a história dos seus crimes”, e não arquitetura, geografia, heróis, costumes, poesia. E faz questão de explicar melhor: “Falo dos crimes fundadores, dos crimes necessários; e que seriam inconcebíveis, que nunca poderiam ter existido a não ser na cidade a que pertencem.” Não é exatamente uma teoria ufanista, mas ao mesmo tempo não é inventada ou investigada por alguém que despreza a cidade. Há certamente um amor febril, trágico, na descrição desse fundamento cruel, assustador, aterrorizante.

Cada um dos povos que passaram por aqui, sobretudo os que mais ajudaram a formar a cara da cidade, deixou sua receita para tornar a crueldade mais requintada, mais específica, sem paralelo em outras cidades. Há algo da pá virada no feng shui de seus bairros. Tudo sangue quente. Muito quente. Em “A primeira história do mundo” encontramos a descrição da mais dura lição/contribuição tupi: “essa categoria metafísica fundamental, causa última de todos os fenômenos da natureza e da cultura: a vingança.” Consequência prática: a vida é uma guerra de tudo contra tudo. Mesmo na relação entre vivos e mortos: “Porque os mortos, na verdade, cantam. Descrevem como, quando e por quem morreram. Não dizem a causa, apenas, porque esta é única, é universal: a vingança. É o canto dos mortos que os sacis aprendem e reproduzem para os pajés, durante o sono, para exigir que sejam vingados – e não termine nunca o pêndulo que move o mundo.” Dá para imaginar o terror dos portugueses, holandeses, franceses, piratas ou não, que aqui também guerrearam, diante de práticas/teorias da crueldade tão diferentes das suas. Era preciso rachar a cabeça dos inimigos mortos, para ganhar um nome e poder ter filhos. Portanto, sem inimigos não havia reprodução da vida, biológica e social: “quando os parentes eram muitos, e havia poucos inimigos, se dividiam em metades que passavam a se matar.” Quem era comido por inimigos ia direto para a “terra sem mal”. A crueldade era também piedade, uma forma alienígena de bondade, incompreensível para europeus cristãos e também cruéis.

Em “O trono da rainha Jinga” somos apresentados a uma seita de africanos com sua peculiar maneira de lidar com e explicar a existência do mal no mundo. Haveria desde sempre e para toda a eternidade, uma quantidade finita de maldade para ser cometida. Por isso, nos crimes que praticavam nas ruas do Rio de Janeiro do início do século XVII, com a cidade fundada há pouco mais de cinquenta anos, não bastava matar inimigos. Era necessária uma morte com crueldade horripilante. Na verdade, quem morria, ou era torturado em meio aos mais violentos rituais e piores venenos, nem precisava ser inimigo. Aquela irmandade comandada por gente de Angola praticava atos de maldade aleatória. Cada ato mais cruel que o anterior, para dar baixa na cota de mal, e o resto do mundo – principalmente os membros da irmandade – poder ficar em paz: “quer o máximo de mal sobre os outros, para que nada lhes reste.” (Estranha semelhança com a tese central de um dos sete romances que compõem “7”, de Tristan Garcia: para cada rosto belo que existe, há um rosto horrível – a cota de beleza no mundo também é finita.)

Então, no compêndio mítico de Mussa, a cidade se converte em campo de batalha para todas essas metafísicas conflitantes sobre a origem e o destino do mal no mundo. Ou laboratório onde novas possibilidades de crimes fundadores são testados, atraindo gente de todos os cantos do planeta, como o polonês de “O senhor do lado esquerdo”, que chega no Rio para realizar experiências pré-Wilhelm-Reich ou pós-Marquês-de-Sade da sexualidade humana, logo na casa que foi da Marquesa de Santos. Gente que acredita que a vida tem que ter necessariamente dois lados, não exatamente espelhados no par yin-yang chinês, mas em “velhas tradições africanas que associam o homem à luz, aos números ímpares, às florestas e ao lado direito. Femininos são, portanto, a noite, os números pares, as profundezas aquáticas e o lado esquerdo. Trata-se, como se vê, de mundos incomunicáveis.” Assim como não havia possibilidade de comunicação entre um pajé tupinambá e um jesuíta catequizador. A cidade é resultado dessa falta de comunicação em série. Ainda que tenha produzido alianças inesperadas, ou possivelmente esperadas demais. Um exemplo: “Herdeiros imediatos da filosofia tupi – já incorporada à cidade -, segundo a qual o indivíduo só se torna pleno se tiver um inimigo, os capoeiras passaram a se dividir em maltas, com territórios definidos e emblemas específicos (como fitas de cor, assobios e espíritos tutelares).” Origem bem diferente das congêneres da Bahia, de Cuba, da Venezuela, onde tudo começou como “brincadeira e jogo de piruetagens”. No Rio, explica o narrador de “O senhor do lado esquerdo” o fundamento é “tática de guerra”.

Nesse sentido é possível entender o elogio que esse mesmo narrador faz para o prefeito que resolveu derrubar o morro do Castelo, algo impensável (e quando vi pela primeira vez as tais fotografias da derrubada achei que contemplava Serra Pelada) em qualquer cidade que cultiva sua memória em modo linear: “Para mim, todavia, Carlos Sampaio foi um místico: primeiro, porque – ao destruir os sítios de fundação – ratificou a condição atemporal do Rio de Janeiro, cidade que existe desde sempre, não apenas a partir de 1565.” Por isso sua opção de estabelecer mito de fundação “fora da cronologia” (opção também de Mussa), pois “o conceito de cidade independe da noção de tempo”.

Herdamos assim uma eternidade urbana cruel. Mussa, com seus novos mitos cariocas, escreve a biografia (as biografias) desse nosso coração das trevas particular, e – nas entrelinhas – aponta as linhas de fuga e túneis secretos (inclusive ligando os cinco romances), para quem quiser enxergar, virar onça, e fugir para frente.

*****

REMENDO 2017: apenas alguns trechos de “A hipótese humana“, que reforçam/expandem os diagnósticos – transétnicos, transclasses, transtudo… – do Rio de Janeiro (em qualquer século de sua história) e os objetivos ontológicos/metafísicos da literatura de Alberto Mussa descritos acima:

  • “era uma criminalidade essencialmente endógena: capoeiras vitimavam capoeiras, membros de grupos rivais” (p. 24)
  • “homens de verdade não se importam com justiça; apenas com vingança” (p. 40)
  • “a morte natural é logicamente impossível.” (p. 135)
  • “O transe não constitui uma perda dos sentidos: é precisamente o fenômeno inverso; a conquista de uma plenitude cognitiva, perceptiva e perspectiva, relativamente às várias configurações do mundo.” (pp. 136-137)
  • “Um homem triste não pode ser inteligente” (p. 142)
  • “não pode haver literatura , no sentido mais essencial do termo, se se prescindir do Mal. Porque 0 Mal é a exceção; o Mal é o Outro – elemento contrastivo necessário que cria em nós a noção de humanidade.” (p. 70)
  • “Embora eu mesmo tenha escrito o livro, não sei tudo. Presumo apenas.” (p. 89)
  • “E todas as versões, mesmo as mentirosas, contribuem para a composição da verdade.” (p. 130)
  • “o que não é segredo, não se pode descobrir.” (p. 137)
  • “nem todas as verdades podem ser provadas.” (p. 151)

carnavais

14/02/2015

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 13/02/2015

No início dos anos 1980, durante o carnaval, eu circulava sempre pela Rio Branco, para me misturar aos desfiles do Cacique de Ramos e do Bafo da Onça. Fausto Fawcett, na mesma década, cantava/ordenava a dissolução de egos na matéria em movimento. Não havia nem superego que resistisse ao movimento browniano daquela multidão que ocupava nossa avenida central. Em questão de segundos, todos seus quilômetros eram preenchidos por um único corpo pulsante misturando jaguares e índios arquetípicos. Anos depois, aquela coisa toda – como por um milagre – foi desaparecendo. Eu insistia em voltar para a Cinelândia, mas o ambiente era triste. Gatos pingados fantasiados não conseguiam produzir sensação de folia. Quem é muito jovem não acredita quando conto que houve anos em que o carnaval no Rio tinha clima de “Adeus, batucada”.

Hoje, novos blocos, cada vez mais gigantescos, reconquistaram as ruas, para surpresa geral. Não foi obra de política pública de “resgate” do carnaval popular de rua. Tudo aconteceu como um experimento de ciência do caos, fora das previsões das autoridades mais “antenadas”. Foi como rebelião do inconsciente carioca, que não se conformou com a obrigação de ter que viajar para Salvador ou Recife se quisesse brincar na rua durante os feriados carnavalescos. Seguimos o grito de guerra do Cacique: “vou festejar”. Aqui mesmo.

Bela lição para quem estuda ou promove a cultura: ainda bem que o mundo é imprevisível. Festa é vontade mutante. Ninguém sabe onde, quando e como vai aparecer ou desaparecer. (Talvez como tudo na vida, mas na festa essa característica geral é mais evidente.) Nenhum MBA vai enquadrá-la em modelo de negócio estável. É possível apenas aproveitar o embalo, eterno enquanto dura.

Sonho com uma rede global de carnavais, uma organização das nações unidas da folia. Seria a atualização Século XXI de um efeito colateral da imposição do catolicismo por colonizadores lusitanos. Pensei nisso quando passei um carnaval em Goa, na Índia (uma das músicas que faz mais sucesso no seu desfile ainda é “Mamãe eu quero”). Tive contato também com manifestações carnavalescas em Malaca, na Malásia (era uma espécie de entrudo, com o povo que fala cristão – ou kristang, ou papiá kristang, idioma crioulo descendente do português com estrutura gramatical do malaio – fazendo batalha de baldes d’água na rua), e na Guiné Bissau (o maior carnaval africano – ver algumas imagens no episódio do Navegador, programa da GloboNews, na próxima segunda-feira). Todos: locais em que Portugal deixou suas marcas malucas. Tanto em Goa, quanto em Bissau há um fenômeno curioso: indianos fantasiados de indianos, africanos fantasiados de africanos, como se a festa fosse a única ocasião em que podem ser quem “verdadeiramente” são (e então percebemos que tudo é mesmo fantasia e que “verdade é uma ilusão”, ou ao contrário, dependendo do contexto).

Claro que seria justo ter o português como língua oficial da ONU foliã. Mas não poderia ser o único. Há carnavais em Veneza, na Alemanha. E há o carnaval de Trinidad e Tobago, com seu filho, no meio de cada ano, em Notting Hill, Londres, Inglaterra. É a maior folia do Caribe, a grande festa do calypso, hoje soca (corruptela de soul-calypso, filha da união do calypso com o funk). Essa apropriação do pop dos EUA revigorou a tradição festiva de Trinidad e Tobago, que cresce a cada ano e se mantém única, “tipicamente” local. Assim como o reggae foi incorporado ao carnaval de Salvador transformando-se em samba-reggae, que é baiano demais. Sempre escrevo: identidade nunca pode ser pensada como algo estático, acabado. Ou frágil, a ponto de qualquer ameaça externa, ou mudança mais decisiva, condená-la à extinção. Os carnavais são laboratórios que testam e expandem os limites das tradições. Como se identidade fosse uma grande brincadeira (e não é?). Como se o mundo fosse terminar na quarta-feira.

Quando a soca se tornou muito popular, pensei que steel bands – orquestras com aquelas panelas de aço, deliciosa invenção de Trinidad e Tobago – poderiam desaparecer. Mas elas continuam lá, criativas e magníficas. Essa constatação não quer dizer que boas tradições não correm riscos de extinção. Afirmo apenas que a dinâmica é incontrolável. A melhor política de preservação não é garantia de eternidade. Eterno Deus Mu-dança.

Os instrumentos das steel bands foram novidade um dia (assim como os surdos das escolas de samba), mais recente do que parece. Quem pode saber se no próximo século um dos melhores carnavais do planeta não acontecerá na Suiça e na Áustria, com bandas de hang, o novíssimo instrumento de percussão (criado depois de 2000) tocado com maestria pelo percussionista dos shows da Bjork, Manu Delago?

Dorival Caymmi e a medicina da alma

07/06/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 06/06/2014

Ainda é tempo de celebrar o centenário de Dorival Caymmi. Gilberto Gil, na canção “Buda nagô”, afirma que Dorival é, entre muitas outras coisas, índio. Então faço um remix Gil & Jorge. Pego “todo dia era dia de índio” e decreto: “todo dia é dia de Dorival”. Deveríamos acordar sempre, todo dia, não só em 2014, cantando Dorival.

Participei de entrevista com Dorival quando ele fez 80 anos. Havia redes no cenário. Chegando ao local da gravação, Dorival comentou, incomodado: “sempre pensam que vivo deitado numa rede.” Não vivia: ele passou grande parte de sua vida como cidadão de apartamento de Copacabana. Contradição? Só na cabeça de quem o imaginava isolado em aldeia de pescadores sem contato com a modernidade. Volto a “Buda nagô”: “Dorival é impar / Dorival é par”.

Por um período, eu passava frequentemente na calçada de seu prédio de Copacabana. Era muito bom encontrá-lo na janela, olhando o movimento da rua cosmopolita, com a atitude de quem estava numa pacata cidade do interior. Aquela visão iluminava meu dia. Fazia questão de cumprimentá-lo (“oi Dorival”), como se Copacabana fosse Itapuã, nos anos 1940. Tudo para ver, com os olhos bem abertos, a Copacabana do presente. O título do livro de Antonio Risério sobre Dorival é “Caymmi: uma utopia de lugar”. Encontrar Dorival na janela tinha o efeito de medicina para minha alma: transformava Copacabana, com sua beleza e seu caos, em utopia imediata.

Dorival é grego, é romano. Suas canções podem ser ouvidas como máximas de Epicuro, como cartas de Sêneca. Nada disso é garantia de felicidade geral, eu sei. E reaprendi essa lição trágica em cada página de “Medicina da alma – artes do viver e discursos terapêuticos”, livro precioso do filósofo (e também iniciado nos mistérios do samba) Paulo Henrique Fernandes Silveira. Pré-socráticos, platônicos, epicuristas, estóicos, céticos, cínicos: aquele momento do pensamento humano foi pródigo em experimentações com “pharmakon” (veneno/remédio) de todas as espécies. Paulo Henrique mostra como filósofos tentam ocupar o lugar do “therapeutés” (palavra que significa “aquele que trata ou cuida de outrem, mas também aquele que cultua os deuses”). Adianto logo a conclusão: “Independente das divergências entre as várias escolas, certos princípios norteiam as ‘therapeíai’ de que tratamos aqui. Talvez o mais importante seja a busca da autossuficiência (‘autárkeia’).” Dorival sereno na janela de Copacabana era a imagem mais justa dessa autossuficiência, como uma antena transmitindo tranquilidade para o mundo.

Na entrevista dos 80 anos, ao escutar a pergunta “quando fica triste, o que faz para recuperar a alegria?” ele respondeu “eu nunca fico triste”. Insistimos: “mas quando a tristeza vem lá longe?” Bem melhor que Prozac (será que algum psiquiatra ainda receita Prozac? saiu de moda?): “tomo água”. E começou a elogiar o azul do plástico das garrafas de água mineral, e depois o azul do papel que antigamente embrulhava as maçãs nas barracas das feiras livres. Não era um devaneio tolo. Havia bom humor budista ali, de contato radical com a realidade.

Exercício para guerreiro de Chögyam Trungpa: “Para começar, temos de olhar a realidade doméstica: as facas, os garfos, os pratos, o telefone, a lavadora, as toalhas – as coisas triviais. Nelas não há nada de místico ou de extraordinário, mas, sem um vínculo com as situações triviais, cotidianas, sem examinarmos a vida diária, nunca encontraremos nenhum senso de humor, nenhuma dignidade ou, em última instância, nenhuma realidade.” Porém, isso tem mais a ver com trecho de carta de Sêneca, que trata da futilidade de planejar o futuro: “Como fugiremos dessa inquietação? De um único modo: não deixando a vida depender do futuro, reconduzindo-a sobre ela mesma. […] Como a inconstância e as mudanças do acaso poderiam perturbar aquele que permanece estável na instabilidade?”

Permanecer estável na instabilidade. Ímpar/par. Lição da medicina da alma greco-romana. Lição de Dorival Caymmi, um dos melhores brasileiros de todos os tempos (incluindo os vindouros), cantando suas canções perfeitas, bebendo água azul, na janela de seu apartamento de Copacabana, dando outro rumo para a agitação da realidade.

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Ilan Waisberg, artista plástico que também faz trabalhos de cibermarcenaria (lembram canções de Dorival?), ao ler minha coluna (sobre o erro) da semana passada, gentilmente me mandou a seguinte citação de seu grande mestre Montaigne (Dorival francês?): “Sinto-me muito mais orgulhoso da vitória que obtenho sobre mim quando, no ardor mesmo do combate, deixo-me curvar sob a força do argumento de meu adversário do que me sinto gratificado pela vitória que obtenho sobre ele devido a sua fraqueza.” Palavras do lado bom da força.

Bruno Carvalho

05/04/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 04/04/2014

Bruno Carvalho, professor em Princeton, acaba de criar novo epíteto para o Rio de Janeiro. Além de maravilhosa e partida, agora a cidade pode ser chamada de porosa, termo que propõe interpretação original para um velho problema: a coexistência de uma cultura/autoimagem definida pela mistura com a disparidade socioeconômica evidente/brutal. “Cidade porosa” é o título de seu livro publicado no final de 2013 pela editora da Universidade de Liverpool. Deveria ter tradução imediata, pois é leitura essencial para enfrentarmos melhor as transformações urbanísticas que vão se acelerar até as Olimpíadas. Precisamos escolher bem que rumo dar para nossa porosidade.

“Cidade porosa” pode ser descrito com mais precisão como história detalhada, surpreendente e deliciosa de um bairro carioca, a Cidade Nova, desde sua criação a partir da chegada da família real portuguesa no Brasil até a destruição da Praça Onze para a passagem da Avenida Presidente Vargas. Cito alguns endereços daquela área. A casa da Tia Ciata ficava no 117 da Visconde de Itaúna, bem perto do Iuguend Bund, clube para a juventude israelita que ocupava o número 203 da mesma rua. A biblioteca judaica Bialik dividia a mesma casa com a gafieira Kananga do Japão. Bruno Carvalho – que chegou a conhecer, como conta no livro, o casal Pinduca e Celi, ele afrodescendente, ela filha de judeus russos – lembra que na maioria das cidades do mundo um endereço frequentemente revela a origem étnica de seus habitantes (quando morei em Chicago sabia que até numa mesma avenida, ao mudar de quarteirões bem determinados, eu saía de uma pequena Croácia, atravessava uma Rússia ortodoxa e encontrava uma Índia tâmil). Na Cidade Nova isso seria impossível. A Praça Onze era ao mesmo tempo o centro da Pequena África e da vida “Ashkenazi” carioca, isso para não falar dos pontos de encontro dos ciganos, imigrantes portugueses e italianos, ou da babel linguística criada (em fantasia ou realidade) pelas prostitutas do Mangue. Tudo prova de maior porosidade, que marcava a vida da cidade como um todo.

Porém, cuidado: todos sabem que estamos em terreno minado. Bruno Carvalho lança mão do conceito de porosidade justamente para evitar armadilhas como as conotações celebratórias de termos como miscigenação ou sincretismo. Ou mesmo, mais em voga, hibridismo: “Toda religião ou forma musical, por exemplo, pode ser entendida como composta por elementos heterogêneos, não importa quão puras elas pareçam ao olhar dos praticantes. Isso não quer dizer, evidentemente, que todas as religiões ou formas musicais possam ser consideradas porosas.” Mas importante: a porosidade não é necessariamente algo desejável ou positivo. José Miguel Wisnik dá o mote: é ao mesmo tempo um veneno e um remédio. Formas culturais porosas podem sustentar desigualdades e injustiças. O modo poroso de vida tem complexidade estonteante: “mistura e divisão aqui são como dois lados de uma mesma moeda.”

Que sina, a do Rio de Janeiro. Querendo simplificar as coisas, em nome do progresso, muitos urbanistas criaram planos (ou pior, impuseram a realização de planos) para acabar com a confusa porosidade de seus bairros e espaços públicas. A Avenida Presidente Vargas tinha esse objetivo: abrir via reta, a mais larga possível, para o futuro passar à força (e o futuro naquela época era uma frota de automóveis) acabando com territórios “pantanosos” (havia manguezais sim, mas as condições sanitárias da Cidade Nova podiam em vários períodos ser consideradas mais “arejadas” que as de outras partes da cidade tidas como menos “doentias”). Muitas vezes, os resultados dessas experiências são opostos aos esperados. Bruno Carvalho cita o texto “Ponte e porta” de Georg Simmel: uma ponte pode separar mais do que conectar; uma porta conecta e separa no mesmo ato. Na história carioca, a moderna Avenida, que parecia tão integradora, mais dividiu do que juntou/misturou ou fez circular.

Uma das qualidades de “Cidade porosa” é justamente ter uma escritura de máxima porosidade, que junta e mistura o que disciplinas diferentes tentam separar. Saímos de uma festa cigana, acompanhamos a perambulação de personagem de Machado de Assis, pegamos um bonde como João Pinheiro Chagas (que depois seria o primeiro primeiro-ministro português), encontramos romance esquecido (só teve duas edições) de Graça Aranha, pulamos atrás de um rancho italiano dos irmãos Baroni, acompanhamos as filmagens de Orson Welles na Praça Onze. Tudo isso para chegarmos num lugar mais segregado? Que nada, sou otimista: a leitura atenta do livro de Bruno Carvalho nos dá boas lições para o bom uso dos poros resistentes desta cidade.

Arrastão!

07/12/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 06/12/2013

Parece que o espectro que ronda nossa cidade maravilhosa não é o do comunismo (anunciado por Marx e Engels naquela primeira frase enigmática de seu “Manifesto”), mas sim o do arrastão. Mês passado, ele reapareceu de sunga branca, fazendo búú nas praias (que, para infelicidade de alguns, não são tão chiques quanto as de Mônaco, mesmo em frente ao Fasano). Eu pensei: já vi esse filme trash antes, e não era cena do Gasparzinho. Voltando à minha filosofia marxista customizada: a história se repete em farsa da farsa da farsa, ad infinitum, como no loop eterno da instalação “Ão” de Tunga, com trecho repetido de “Night and Day” (não confundir com a saltitante “Day’n’Nite” de Kid Cudi) servindo de trilha sonora para passeio onde não há luz no fim do túnel (meu primeiro contato com sua película rastejante foi nos anos 1980 em galeria de Ipanema; hoje está exposta no Inhotim).

Recapitulando: em 1992, também no perigosíssimo Arpoador, houve tumulto animado, durante domingo de muito sol. No dia seguinte as manchetes dos jornais berravam irresponsáveis: Arrastão! Eu me arrependo de ter escrito artigo para o Jornal do Brasil tentando explicar que aquilo não fora assalto “serial” e em massa, mas sim (os dados policiais já confirmavam: quase ninguém roubado) a reencenação, nas areias escaldantes, de conflitos dançantes entre turmas de favelas diferentes que costumavam acontecer em baile funk. Resultado: os ataques se voltaram contra o funk. Quase todos os bailes de clube (Mackenzie, Cassino Bangu etc.) foram fechados. Deu origem a um atraso enorme na vida cultural da cidade, pois o desenvolvimento de sua nova música eletrônica teve que acontecer malocado em favelas patrulhadas por “comandos” cada vez mais armados. O poder público, com ajuda da imprensa, foi coinventor do “proibidão”.

21 anos depois, agora, depois do feriado da Consciência Negra, abro os jornais e as manchetes estão histéricas novamente: Arrastão! Parece flashback de viagem de droga muito ruim. Foi arrastão mesmo? Não importa: até o consulado dos EUA emitiu alerta falando em “roubos de massa”. Qual será o próximo bode expiatório? Qual será o próximo “proibidão”? Por que essa compulsão na “reincidência” interpretativa, que já se provou equivocada anteriormente?

O autosubversivo Albert O. Hirschman, um dos maiores pensadores do Século XX (ele teve ilustres discípulos/amigos brasileiros, que poderiam lucrar com doses mais generosas de autosubversão também), fez comentário absolutamente inspirador (no final de sua obra-prima “As paixões e os interesses” – que acaba de ter nova edição americana, com prefácio de Amartya Sen e posfácio de seu biógrafo Jeremy Alderman) sobre a máxima de Santayana: “aqueles que não se lembram do passado estão condenados a repeti-lo”. Essas palavras são tão citadas (recentemente foram inspiração para vários textos da Batalha das Biografias) que passamos a acreditar que fatos históricos se repetem mesmo.

Para Hirschman, a máxima tem maior probabilidade de “aplicar-se rigorosamente à história das ideias do que à história dos fatos”. Sua explicação, deliciosa: “Esta última, como sabemos, quase nunca se repete, porém, circunstâncias vagamente similares, ocorridas em dois diferentes e talvez distantes momentos do tempo, podem facilmente dar origem a pensamentos-respostas idênticos e identicamente imperfeitos se o episódio intelectual anterior for esquecido.” Na minha humilde opinião, foi isso que mais uma vez aconteceu com o tal arrastão. Fatos diferentes (e talvez somente espectrais), circunstâncias diferentes, mas desencadeando o mesmo pensamento-resposta, que educadamente podemos considerar “imperfeito”.

Sou cada vez mais cético (incluindo convicto relativismo fora de moda). Por isso fiquei comovido com a profissão de fé no valor da História que multidões externaram na Batalha das Biografias. Senti até uma ponta de inveja, a mesma que entristece meu coração quando, diante do delírio de torcida de time de futebol, percebo que nunca vou dar aqueles urros/pulos de felicidade.

Fui formado por livros errados, na idade errada.  Entre eles: “O inventário das diferenças”, com aula inaugural de Paul Veyne no Collège de France. Ali aprendi coisas horríveis que viraram bandeiras inconvenientes. Exemplo: “uma cultura está bem morta quando a defendem em vez de inventá-la.” Ou (crianças, tapem seus ouvidos!): “a verdade não é o mais elevado dos valores do conhecimento”, pois “é mais importante ter ideias do que conhecer a verdade”. Pior ainda: “a História é feita para divertir os historiadores, é tudo.” Que sina: não consigo nem ter raiva ou piedade daqueles que acreditam no espectro do arrastão.