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A viagem de Ulisses pelo rio Amazonas

19/03/2023

Maxivelhaco. Multiastuto. Multiversátil. Multissinuoso. Arquimanhoso. Pluriardiloso. Ultraladino. Superperpicaz. Multiengenhoso. Pluriastuto. Multissagaz. Pluriarguto. Multissofrido. Plurimaquinoso. Multiardiloso. Multiperpicaz. Arquiladino. Poliastuto. Plurissolerte. Arquivelhaco. Multivaidoso. Maximatreiro. Arquifalaz. Hipersorrateiro. Arquitrapaceiro. Pluriengenhoso. Multiarguto. Arquiestratégico. Poli-habilidoso. Plurissagaz. Arquitravesso. Multifalaz. Ultramatreiro. Multimanhoso. Multiartificioso. Poliarguto. Arquimaquiavélico. Multímodo. Poliardiloso. Ultramanhoso. Arquimatreiro. Maxiladino.

Essas qualidades de Ulisses, que aparecem no livro como uma pororoca de epítetos, podem também ser usadas para qualificar o estilo literário de A viagem de Ulisses pelo rio Amazonas (no resto deste texto: AVDUPRA). Na verdade: estilos literários que travam combates e tramam alianças a cada página, com diferentes propósitos narrativos. Como hidrovias caudalosas, os fluxos de palavras (sempre “escorregadias”) nos sacodem entre entre mitologia e geografia (incluindo aquela dos rios voadores), crítica e política, História e estórias. É impressionante a sagacidade de André Gardel no manejo de tantos recursos e conhecimentos maxi-multi-pluri-ultra-super-poli-hiper-multímodos, de tantas procedências engenhosas e contrastantes, pulando de “brincadeiras” da cultura popular para a erudição de novas teorias antropológicas ou arqueológicas no piscar de olhos perspectivistas. O resultado é certamente uma proeza astuta como poucas, cheia de truques, um acontecimento artístico extremamente original e travesso, aqui e alhures.

Fui conferir as qualidades de Ulisses na recente e excelente tradução brasileira da Odisseia por Christian Werner. Para ser novamente exaustivo: excelso, atilado, divino, muito-juízo, juízo-paciente, distinto, muita-astúcia, impecável, nobre, senhor, varão, enérgico, perseverante, muito-truque, linhagem-divina, infeliz, arrasa-urbe, bem famoso, muitas-vias, ousado, ilustre, muita-astúcia, animoso, muita-tenência, glorioso, majestoso, “o atilado variegada-astúcia”. Minha impressão é que a qualidade mais repetida é “divino” (mesmo que Palas Atenas, em sua fala final, se dirija a seu protegido como “muito-truque”, como exaltação). Em sua “tradução-exu” muito esperta e cheia de segundas intenções, o Ulisses amazônico de André Gardel rejeita os elogios mais óbvios e fica só com aquilo que derrama ambiguidade para todos os lados.

Ao penetrar na selva tropical, Ulisses precisa mesmo de ardis poderosos (“um leque de ardis”) para atravessar os inúmeros “portais de interconexões intermundos” ou para transitar “pelas espirais que fazem o visível e o invisível deslizarem entre si” – ou, como sintetiza Tirésias (“peixe-prata com sete asas de espuma, metade-fêmea, metade-macho” surgindo em AVDUPRA na ilha onde Macunaíma escondeu sua consciência): “vários planos de experiência se intercomunicando, interagindo, se invadindo, se alargando”. Tarefa ou laboratório também para a narração multifocal do romance, que cria portais entre façanhas acontecidas em épocas muito distintas, camadas de redes sociais de personagens que também deslizam entre mundos literários que pareciam destinados a viver separados. Antes de Ulisses, o Hércules ctônico já tinha viajado pela Amazônia. Entre Hércules e Ulisses, temos toda a saga de Sumé e Maíra, no meio de toda a diversidade étnica do povoamento/plantação secular da floresta, passando pelo encontro de técnicas do êxtase indígenas e africanas, até chegar aos tempos de Covid e extrema-direita no poder nacional. Sim, AVDUPRA é a encruzilhada em trânsito, sempre deslizante, de todos esses enredos. 3.200 anos atrás (Guerra de Troia…), e antes, e hoje: uma mesma época psiconauta. Afinal, o mundo grego também era poeticamente xamânico.

Tudo começa, como deve ser, no inferno de Dante. Mais precisamente na oitava vala de seu oitavo círculo, onde a chama de Ulisses conta para Virgílio “os percalços de sua última peripécia”, depois de cruzar Gibraltar e navegar por cinco meses “em direção ao Sul”. Um portal adiante e estamos no réveillon de Copacabana onde os fogos detonam nos neurônios de um candidato a escritor carioca (chamado Demódoco Fêmio, duplamente rapsodo, em romance onde quem é duplo, ou mais, impera) o “insight” que o maxivelhaco herói grego morreu no Brasil e que precisaria encontrar seus rastros na Amazônia de hoje, entre tiros da milícia garimpeira e batidas do marabaixo, entre a pororoca e a nascente nos Andes (onde o Caos pode estar aprisionado). Tudo sob a proteção, mais decisiva do que a de Palas Atenas, de um Hermes-Exu (ao mesmo tempo Sumé e Maíra), senhor de passagens e metamorfoses (todo o poder para as ariranhas, as onças do mundo líquido), abrindo caminhos com muito tabaco e paricá.

Assim, a viagem de Demódoco Fêmio para escrever um livro, de Macapá para dentro/fora, só poderia ser também uma peripécia de questionamento do valor da escrita, dos limites da escrita, essa “camada distinta de vida e realidade”. Ulisses-ariranha aprende a lição dos Tupinambás: contra a eternidade, vivem “a transitoriedade da vida”, a “misteriosa pulsação do presente”, aquilo que nunca pode ser fixado em livro. Paradoxo bom então: esta é uma ficção multifalaz mordendo seu próprio rabo multissinuoso. Sua artimanha maior é o projeto de libertar Ulisses: voltar a ser “o que era antes de Homero”: “mudança constante”, com maxi-multi-pluri-ultra-super-poli-hiper-ampliação da possibilidade de inventar novas aventuras, para passar adiante, contar mais muitos contos (aumentando muitos pontos), sem volta para o clássico-cânone-fixo, em fuga sempre para frente.