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BaianaSystem

21/04/2020

Já na primeira audição, no início de 2019, não tive nenhuma dúvida: O futuro não demora é um dos melhores discos da música brasileira. Quando digo “melhores” estou falando bem sério: está ali na turma de Acabou Chorare, Minas ou Sem Suingue. No topo da criatividade nacional/mundial. Passado este tempo todo desde o lançamento, minha convicção só se fortaleceu. Tente escutar esse disco agora, na quarentena – é uma injeção de alegria/energia que até nos torna bem mais dispostos para enfrentar o pânico. Ideal para trilha sonora de uma “existential dance party” ou atividade semelhante para recolocar nossos corpos/mentes no seu devido lugar (não do velho normal, mas do outro normal possível que vamos ter que inventar num futuro que não demora). Por isso tudo, pela sua exuberante consistência estética inovadora, ao mesmo tempo prestando homenagem e dando continuidade ao espírito de inovação de antes/agora (“Zulu Nation, Nação Zumbi, Ilê Aiyê, Rumpilezz”, entre muitos outros mestres, incluindo os mestres da guitarrada), fiquei meio perplexo de não perceber que o disco tenha recebido o reconhecimento e os elogios todos que merece. Talvez até tenha, mas tudo hoje é tão disperso (não há mais uma única instância crítica de reconhecimento de obras-primas), que impede – para o bem e para o mal – a arrumação dos acontecimentos culturais dignos de nota numa “linha evolutiva” (“gosto quando evolui”, quando flui) que possa nortear a produção artística “como um todo”, para seguir em frente, fugir para frente. Talvez Da lama ao caos tenha sido o último álbum a formar esse tipo de consenso, ou ter essa reverberação mais profunda, ampla e duradoura (mesmo sendo um trabalho que anuncia bem a ciberfragmentação futura), inclusive tornando possível a existência de um BaianaSystem. Curiosamente, e parte do problema (ou da solução, quem vai saber), isso não tem nada a ver com sucesso ou popularidade: BaianaSystem é banda que arrasta multidões, com culto dançante e fiel quase religioso.

Talvez minha cabeça seja muito antiga, e funcione com método ultrapassado: por isso esta minha necessidade de gritar (talvez para nínguém): O futuro não demora é um obra-prima. Todo mundo (o que é “todo mundo” hoje?) deveria se beneficiar da audição de suas canções. O álbum (e é bem um álbum mesmo) vai de Água para Fogo, elementos que linkam as faixas, as pessoas, todas as coisas do mundo. É aquilo: já aconteceu com você e comigo, e vai acontecer mais, mesmo com isolamentos e distanciamentos sociais (que impedem o BaianaSystem de realizar uma de suas melhores mágicas: a produção pop-up de multidões guerreiras pacíficas, algo como a filosofia dos Filhos de Gandhy baixando e dominando o bloco pipoca, sem parar de pipocar – a serenidade em tempo de tempestade que BNegão identifica em Salve), pois no ponto futuro – certamente – “o doce e o sal vão se misturar”. E todas as sonoridades se misturam num ijexá com swingueira e samba de lata e afrosinfônica brega funk e hip hop sempre iluminados pela baiana do Roberto Barreto (talvez o mais elegante guitarrista do Brasil hoje?). Um sonho realizado de Moraes Moreira. Assim pintou Moçambique: tudo é limpeza/beleza.

O futuro não demora não é apenas uma obra-prima, é uma obra em progresso. Já deu em versões estendidas de Água e Fogo. Já deu no remix Topkillaz para Saci (com vídeo que resume muito do que quero dizer aqui em passos de dança). Deu nas faixas paralelas Cabeça de papel (que também ganhou remix do Tropkillaz) e Miçanga (assim pintou Moçambique, via trilha de filme português). E agora entorta deliciosamente mais uma vez nossas cabeças e nossos quadris com Futuro dub, todas as faixas “adubadas” por Buguinha. Sobre dub, já fiz minha exaltada declaração de amor em texto antigo:

“Jamaica, para mim, sempre foi país amado e respeitado por, antes de ser a terra do reggae ou de Bob Marley, ser a terra do dub. Muita gente pode não ter noção do que estou falando. O dub foi a maneira que os produtores musicais e os engenheiros de som jamaicanos inventaram, desde meados dos anos 60, para fazer música e pensar a música. As canções deixaram de ser encaradas de maneira linear. Os sons passaram a ser montados não-linearmente, antecipando a maneira de editar textos/ barulhos/imagens (o cortar-e-colar ou “cut-and-paste”) que se tornou dominante a partir da personalização dos computadores. As técnicas do dub, desenvolvidas por gênios -para mim tão geniais quanto Ludwig Wittgenstein ou Roman Jakobson, mas não quero impor meus critérios de julgamento para ninguém- como King Tubby ou Lee “Scratch” Perry, estão hoje na base da totalidade da produção musical de todo o mundo. Sem dub não haveria hip hop, tecno, drum’n’bass ou mesmo o mais recente sucesso de Britney Spears ou Zeca Pagodinho. […] O dub não é um estilo musical: é mais um procedimento filosófico. O dub não é uma forma, mas sim um “modo de agenciamento de formas”.”

Penso tudo isso novamente, igualzinho, ao escutar um Futuro dub que, abrindo espaços arquitetônicos e/ou filosóficos entre diferentes sons, revela ainda mais a força e a contundência de O futuro não demora. Milagres acontecem: por exemplo: a faixa Navio já era devidamente adubada em O futuro não demora a partir de uma mixagem genial do mestre Adrian Sherwood. Buguinha, ousado, conseguiu ser ainda mais radical: o samba-reggae voltou para Kingston e se afrociberdelificou – uma delícia, para mim poderia haver uma versão estendida eterna deste dub, eu nunca me cansaria de escutar e dançar. Neguinho do Samba deve estar orgulhoso da reinvenção de sua invenção. E que maravilha a festa candomblé em Certopelocertoh ou as guitarras pegando fogo em Fogo. Esse disco faz bem para o mundo todo. Continua bem a saga da avant-garde na Bahia. Como diz Fogo: o futuro não demora, já aconteceu. E vai continuar acontecendo.

PS: Quando Roberto Barreto me enviou o link para baixar O futuro não demora, ele me mandou também por email cópia deste texto pré-BaianaSystem publicado no Overmundo. Em retribuição passei para ele este texto que escrevi na volta de um daqueles carnavais mais inovadores de Salvador (eu estava lá também nos carnavais de Fricote, de Faraó e de Eu sou negão) – alguém deveria lançar a gravação deste desfile do AraKetu, diferente de tudo que o bloco fez antes e depois:

Bloco Afro – box para a revista Caos
escrito em março de 1990
Não custa nada repetir: a explosão dos blocos afros de Salvador foi o mais importante acontecimento pop no Brasil dos anos 80. Parece exagero, mas é a pura verdade. Que outro estilo musical soube criar novos ritmos, inventar sua própria mitologia, desenvolver repentinamente seu mercado de massas? Que outro estilo musical conseguiu, tão eficazmente, superar velhas dicotomias como tradição e modernidade, diversão e política, raízes e antenas?
Quem nunca viu o Olodum no Pelourinho, o Ara Ketu em Periperi ou o Ilê Aiyê e o Muzenza na Liberdade (alguns dos bairros mais pobres da capital baiana) não deve ter uma idéia precisa do que eu estou falando. Os discos são legais. Mas é preciso sentir o poder da bateria completa, é preciso constatar as ligações musicais e extra-musicais que os blocos mantêm com o espaço físico da cidade (reluzente, florescente, suja, miserável) para entender o meu entusiasmo.
É preciso ter os ouvidos acordados para escutar tanto desconstrucionismo rítmico. Os percussionistas misturam samba com reggae com merengue com o escambau. Enganam-se aqueles que, ao se defrontar com uma música que utiliza apenas percussão acústica e voz, pensam em sobrevivências folclóricas. Os blocos são mais modernos que os trios elétricos. A bateria do Olodum é tão pop quanto os toca-discos de Afrika Bambaataa.
Mas este é um assunto do passado. No carnaval 90, o Ara Ketu colocou seus percussionistas em cima de um trio e eletronificou/amplificou sua música com sintetizadores, guitarras e baixo elétrico, além de um naipe de metais totalmente funk. O bloco de Periperi é agora a mais ousada banda eletro-pop brasileira, chutando para o ciberespaço a bola da eletrificação do samba, justamente de onde Jorge Ben a largou.
Hoje, isso só poderia ocorrer em Salvador. Guardadas as devidas proporções, a atitude do Ara Ketu é tão radical quanto a Mangueira resolver sair no sambódromo tocando uma mixagem, feita com tamborins e drum machines, de pagode com hip hop. Impossível? Alguém pode me explicar porque o samba carioca é tão medonhamente “enraizado”?
O Ara Ketu era o bloco de aparêcia mais tradicional na cena pop baiana. Seu tema predileto é o candomblé. Foi maravilhoso ver seus integrantes, incluindo várias senhoras com aparência de mãe-de-santo, saindo dos arredores da favela de Alagados, onde fica o Periperi, e indo para o centro de Salvador dançar aquela música assumidamente pós-moderna.
Para mim foi a lição do ano. A união de candomblé com os sintetizadores desfilando pela Avenida 7 de Setembro: este é o país no qual eu quero morar.

ciberbahia

10/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 05/11/2010

Há uma década, Goli Guerreiro lançou “A trama dos tambores: a música afro-pop de Salvador” (Editora 34), leitura obrigatória para quem quiser falar qualquer coisa menos óbvia sobre o sucesso da revolução estética/industrial/social que ficou conhecida, primeiro pejorativamente, como “axé music”. Agora ela amplia e radicaliza sua análise dessa impressionante transformação com dois novos livros irmãos: “Terceira diáspora: o porto da Bahia” e “Terceira diáspora: culturas negras no mundo atlântico”, originados no blog www.terceiradiaspora.blogspot.com. São lançamentos, os livros, da editora Corrupio, que já nos brindou com, além de muita coisa essencial de Pierre Verger, alguns clássicos como “Carnaval ijexá”, de Antonio Risério, e “O país do carnaval elétrico”, de Fred Góes. É preciso sempre saudar sua resistência editorial-regional, fato raro (e a raridade é lamentável) em outros lugares do Brasil “fora do Eixo”.

“Terceira diáspora” é conceito para tentar entender o estado mutante das trocas culturais das culturas negras pós-internet. A primeira diáspora foi criada pelo tráfico negreiro. A segunda aconteceu quando populações descendentes de africanos negros se deslocaram novamente por vários continentes, mudando a cara de muitas cidades do mundo: haitianos em Nova York, senegaleses em Paris, surinameses em Roterdã e assim por diante. A terceira diáspora aconteceria agora, quando a comunicação entre todos esses mundos negros é facilitada por vídeos no YouTube, programas da rádio 1Xtra da BBC, arquivos torrent de cinema nigeriano, e muitos outros bytes.

Goli Guerreiro, mestre e doutora em antropologia pela USP, pós-doutora pela UFBA, percorre as infovias e os caminhos “reais” entre os portos da terceira diáspora com voracidade antropofágica, produzindo novas informações (em textos e imagens), sampleando pensamentos, compondo um panorama ricamente fragmentado de links transculturais recém-estabelecidos. Os livros não têm exatamente capítulos; são mais coleções de posts, todos com palavras-chaves, remetendo uns aos outros, incentivando o(a) leitor(a)/usuário(a) a continuar a navegação em outras mídias. No “Culturas negras no mundo atlântico”, podemos nos transportar do carnaval no casario Ginger Bread de Port of Spain, em Trinidad e Tobago, para o Festival de Vodun, em Uidá, no Benin, antes de mergulhar num maremoto de citações, com falas/escritos (muitas vezes saborosamente contraditórios) de gente com Cornel West e o DJ Thaíde.

“O porto da Bahia” é guia para a produção contemporânea, depois de Neguinho do Samba, de arte e ideologia negras em Salvador. Tem a união de big band com candomblé do Rumpilezz, tem o hip-hop-samba-de-roda do DJ Bandido, tem o design de carrinhos ambulantes e sonorizados de café, tem os programas de TV de Jorge Portugal.

Gosto dessa mistura, adoraria ver outras cidades do Brasil de hoje retratadas assim, de forma tão potente. Porém, já fico buscando novos navios ou servidores partindo/chegando/transmitindo dos portos mapeados por Goli Guerreiro. Dentro da “terceira diáspora”, com sua base na informática, não consegui parar de pensar, ao navegar alegre pelos livros e pelo blog, no pioneirismo baiano em termos de filosofia tecnocultural, com a formação de turma que inventou uma CiberBahia paralela, incluindo André Lemos, Marcos Palácios (lembro seus estudos sobre MOOs, os avós do Second Life, lá no início dos anos 90, até antes da web), Cláudio Manoel, Gilberto Monte, Messias Bandeira, André T, André Stangl e tanta gente boa mais.

Acho que é deformação de personalidade: gosto de ver gente diferente, com muitos tons de pele, em contato, colaborando para implodir guetos e identidades fixas. Sou discípulo de Édouard Glissant, um dos heróis do livro “Culturas negras no mundo atlântico”. Outro dia li mais uma de suas entrevistas sensacionais, desta vez publicada numa revista do Le Monde sobre o “Outre-Mèr” francês. Contra a fixidez identitária, ele propõe sempre a “identidade-relação”: devemos construir nossa personalidade na encruzilhada de nós mesmo com os outros. Essa é a receita para estarmos atentos ao incompreensível e à poesia que não é nossa. Glissant declara que só crê “nos pensamentos incertos de sua potência” – pensamentos do “tremor”, pensamentos mestiços, nunca fechados no seu mundo, por mais “atlântico” que seja. A mestiçagem das artes, e mesmo das línguas, produz o inesperado – não a uniformização, mas a difusão de novos sentidos, “maneiras de se transformar de modo contínuo, sem se perder”.

Claro, afirmar a negritude baiana, e reforçar suas conexões com o mais vibrante da terceira diáspora, é passo fundamental. Mas nunca ficar no mesmo circuito. Lembro sempre daquela música excelente da Sarajane: “abre a rodinha”. Chegamos ao limite do processo descrito por Agnes Mariano, no livro “A invenção da baianidade” (Editora Annablume). Ser baiano adquiriu outros sentidos. É preciso conectar, também e cada vez mais, a trama dos tambores da terceira diáspora com outros núcleos importantes de inovação cultural que não se situam dentro dos limites, mesmo fractais (como quer Paul Gilroy), do mundo negro. Só assim poderemos inventar novas maneiras de sermos dignos daquilo que Glissant, com Patrick Chamoiseau, chamou, em carta aberta para Barack Obama, da “intratável beleza do mundo” – todo o mundo.