Já na primeira audição, no início de 2019, não tive nenhuma dúvida: O futuro não demora é um dos melhores discos da música brasileira. Quando digo “melhores” estou falando bem sério: está ali na turma de Acabou Chorare, Minas ou Sem Suingue. No topo da criatividade nacional/mundial. Passado este tempo todo desde o lançamento, minha convicção só se fortaleceu. Tente escutar esse disco agora, na quarentena – é uma injeção de alegria/energia que até nos torna bem mais dispostos para enfrentar o pânico. Ideal para trilha sonora de uma “existential dance party” ou atividade semelhante para recolocar nossos corpos/mentes no seu devido lugar (não do velho normal, mas do outro normal possível que vamos ter que inventar num futuro que não demora). Por isso tudo, pela sua exuberante consistência estética inovadora, ao mesmo tempo prestando homenagem e dando continuidade ao espírito de inovação de antes/agora (“Zulu Nation, Nação Zumbi, Ilê Aiyê, Rumpilezz”, entre muitos outros mestres, incluindo os mestres da guitarrada), fiquei meio perplexo de não perceber que o disco tenha recebido o reconhecimento e os elogios todos que merece. Talvez até tenha, mas tudo hoje é tão disperso (não há mais uma única instância crítica de reconhecimento de obras-primas), que impede – para o bem e para o mal – a arrumação dos acontecimentos culturais dignos de nota numa “linha evolutiva” (“gosto quando evolui”, quando flui) que possa nortear a produção artística “como um todo”, para seguir em frente, fugir para frente. Talvez Da lama ao caos tenha sido o último álbum a formar esse tipo de consenso, ou ter essa reverberação mais profunda, ampla e duradoura (mesmo sendo um trabalho que anuncia bem a ciberfragmentação futura), inclusive tornando possível a existência de um BaianaSystem. Curiosamente, e parte do problema (ou da solução, quem vai saber), isso não tem nada a ver com sucesso ou popularidade: BaianaSystem é banda que arrasta multidões, com culto dançante e fiel quase religioso.
Talvez minha cabeça seja muito antiga, e funcione com método ultrapassado: por isso esta minha necessidade de gritar (talvez para nínguém): O futuro não demora é um obra-prima. Todo mundo (o que é “todo mundo” hoje?) deveria se beneficiar da audição de suas canções. O álbum (e é bem um álbum mesmo) vai de Água para Fogo, elementos que linkam as faixas, as pessoas, todas as coisas do mundo. É aquilo: já aconteceu com você e comigo, e vai acontecer mais, mesmo com isolamentos e distanciamentos sociais (que impedem o BaianaSystem de realizar uma de suas melhores mágicas: a produção pop-up de multidões guerreiras pacíficas, algo como a filosofia dos Filhos de Gandhy baixando e dominando o bloco pipoca, sem parar de pipocar – a serenidade em tempo de tempestade que BNegão identifica em Salve), pois no ponto futuro – certamente – “o doce e o sal vão se misturar”. E todas as sonoridades se misturam num ijexá com swingueira e samba de lata e afrosinfônica brega funk e hip hop sempre iluminados pela baiana do Roberto Barreto (talvez o mais elegante guitarrista do Brasil hoje?). Um sonho realizado de Moraes Moreira. Assim pintou Moçambique: tudo é limpeza/beleza.
O futuro não demora não é apenas uma obra-prima, é uma obra em progresso. Já deu em versões estendidas de Água e Fogo. Já deu no remix Topkillaz para Saci (com vídeo que resume muito do que quero dizer aqui em passos de dança). Deu nas faixas paralelas Cabeça de papel (que também ganhou remix do Tropkillaz) e Miçanga (assim pintou Moçambique, via trilha de filme português). E agora entorta deliciosamente mais uma vez nossas cabeças e nossos quadris com Futuro dub, todas as faixas “adubadas” por Buguinha. Sobre dub, já fiz minha exaltada declaração de amor em texto antigo:
“Jamaica, para mim, sempre foi país amado e respeitado por, antes de ser a terra do reggae ou de Bob Marley, ser a terra do dub. Muita gente pode não ter noção do que estou falando. O dub foi a maneira que os produtores musicais e os engenheiros de som jamaicanos inventaram, desde meados dos anos 60, para fazer música e pensar a música. As canções deixaram de ser encaradas de maneira linear. Os sons passaram a ser montados não-linearmente, antecipando a maneira de editar textos/ barulhos/imagens (o cortar-e-colar ou “cut-and-paste”) que se tornou dominante a partir da personalização dos computadores. As técnicas do dub, desenvolvidas por gênios -para mim tão geniais quanto Ludwig Wittgenstein ou Roman Jakobson, mas não quero impor meus critérios de julgamento para ninguém- como King Tubby ou Lee “Scratch” Perry, estão hoje na base da totalidade da produção musical de todo o mundo. Sem dub não haveria hip hop, tecno, drum’n’bass ou mesmo o mais recente sucesso de Britney Spears ou Zeca Pagodinho. […] O dub não é um estilo musical: é mais um procedimento filosófico. O dub não é uma forma, mas sim um “modo de agenciamento de formas”.”
Penso tudo isso novamente, igualzinho, ao escutar um Futuro dub que, abrindo espaços arquitetônicos e/ou filosóficos entre diferentes sons, revela ainda mais a força e a contundência de O futuro não demora. Milagres acontecem: por exemplo: a faixa Navio já era devidamente adubada em O futuro não demora a partir de uma mixagem genial do mestre Adrian Sherwood. Buguinha, ousado, conseguiu ser ainda mais radical: o samba-reggae voltou para Kingston e se afrociberdelificou – uma delícia, para mim poderia haver uma versão estendida eterna deste dub, eu nunca me cansaria de escutar e dançar. Neguinho do Samba deve estar orgulhoso da reinvenção de sua invenção. E que maravilha a festa candomblé em Certopelocertoh ou as guitarras pegando fogo em Fogo. Esse disco faz bem para o mundo todo. Continua bem a saga da avant-garde na Bahia. Como diz Fogo: o futuro não demora, já aconteceu. E vai continuar acontecendo.
PS: Quando Roberto Barreto me enviou o link para baixar O futuro não demora, ele me mandou também por email cópia deste texto pré-BaianaSystem publicado no Overmundo. Em retribuição passei para ele este texto que escrevi na volta de um daqueles carnavais mais inovadores de Salvador (eu estava lá também nos carnavais de Fricote, de Faraó e de Eu sou negão) – alguém deveria lançar a gravação deste desfile do AraKetu, diferente de tudo que o bloco fez antes e depois: