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sua história, nossa tragédia

13/07/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 12/07/2013

O MC Daleste – assassinado sábado enquanto se apresentava no palco de conjunto habitacional da Vila San Martin (periferia de Campinas, SP) – era um dos artistas mais populares do Brasil. Faça uma pesquisa no YouTube (atualmente o termômetro mais fiel da popularidade musical): contei agora 16 vídeos com mais de 2 milhões de visualizações, entre 750 mil resultados. Há de tudo, até reportagem sobre sua chegada ao aeroporto do Recife, recebido por representantes de fã-clube pernambucano. Provavelmente se não fosse outro vídeo, que documenta o instante do crime, sua morte brutal não teria sido noticiada pelos jornais. Entraria apenas para alguma estatística sombria de homicídios de garotos negros e pobres nas cidades brasileiras.

Mesmo assim não houve mensagens de pêsames da presidência ou do MinC, como ocorre habitualmente em caso de mortes de artistas populares. Se a mesma coisa tivesse acontecido com músico “de boa família” durante show realizado em bairros “nobres” não tenho dúvida: seria comoção nacional, com avalanche de tributos nos cadernos culturais. Não culpo jornalistas: a maioria não tinha a menor ideia do sucesso do MC Daleste. O funk paulistano é parte do mundo “invisível” da música mais popular hoje no país. Seu sucesso continua independente das instâncias tradicionais de consagração e divulgação que ainda vigoram na imprensa.

Só ouvi falar do MC Daleste recentemente, de forma bem pouco usual. Durante a exibição do “Esquenta!”, seus fãs organizavam mutirões no Twitter transformando hashtags pedindo a presença de seu ídolo no programa em TTs. Renato Barreiros, que é pesquisador do “Esquenta!” e meu guia para as novidades do funk de São Paulo, foi quem me deu a notícia do assassinato: “era hoje o maior ídolo da juventude de periferia de SP. Eu o conhecia bem, era um moleque bom, super alegre e que não tinha envolvimento com nada errado.”

Renato foi subprefeito da Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. Na sua gestão começou a organizar festivais de funk na cidade, percebendo bem no inicio a importância que esse ritmo teria para a cultura paulistana. Foi momento de relação virtuosa entre poder público e música periférica, que não teve continuidade em governos posteriores. No Rio, o abandono/invisibilidade do funk foi o maior incentivo para a invenção do “proibidão”. Em São Paulo, onde a polícia passou a proibir bailes, há agora essa matança em série de MCs.

As letras de MC Daleste utilizavam procedimento comum em canções da Legião Urbana. Quando meu grande amigo Renato Russo cantava “eu moro com a minha mãe, mas meu pai vem me visitar”, não falava sobre sua família. Os versos “a violência é tão fascinante, e nossas vidas são tão normais”, de “Baader-Meinhof blues”, não devem ser interpretados como apologia ao terrorismo. Também eram muito variados os “eus” dos funks de Daleste. Em “Angra dos Reis” quem fala é adolescente em busca de “ostentação”. Em “Mãe de traficante” ouvimos: “oh meu filho, não faça mais isso pelo amor de Deus / não me faça passar por onde eu não preciso / siga meu exemplo, sou trabalhadora / mas infelizmente não fiz faculdade / foi dias e noites lutando e lutando / mas tudo o que eu tenho foi com dignidade”. Sempre retratos de gente que o compositor via ao seu redor. Não concordava necessariamente com o que estava cantando.

Daleste só foi explicitamente autobiográfico em versão improvisada de funk disponível no YouTube. O resultado é um dos depoimentos mais contundentes sobre a realidade brasileira contemporânea. Enorme vontade de viver. Transcrevo a letra, para que mais gente possa “passar adiante” sua história, nossa tragédia: “quando comecei / passava a maior dificuldade / e lá em casa era fora de realidade / é revoltante eu sei / senti o gosto do veneno / até os 13 anos de idade não tinha banheiro / e lá em casa as paredes eram de madeira / lembro como se fosse agora / quando abria a geladeira, não tinha nada para comer / a barriga vazia / mas amanhã eu vou pra escola / como na merenda / sábado e domingo é difícil / mas a gente aguenta / mas a fome não é nada / em relação ao principal / nunca entendi porque não tive a família normal / minha mãe e meu pai trabalhando / e meu irmão na escola / minha irmã mais velha na faculdade / mas a vida é foda / tudo ao contrário meu destino aconteceu / mas entreguei tudo isso na mão de Deus / e hoje estou aqui, passando adiante / cantando minha história pra quem gosta de funk / muito obrigado pela atenção de todos vocês / o resto dessa história venho cantar outra vez / eu sou vencedor na porra do bagulho / sou funkeiro sim e disso me orgulho / levo no peito as cicatrizes do preconceito”.

PS: sobre “apologia” é muito importante ver/ouvir com atenção os 10 minutos deste vídeo de 2011

funk paulistano

12/01/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 11/01/2013

A história do funk carioca continua me surpreendendo. Quando fiz pesquisa nos bailes para o mestrado, defendido em 1987, não havia funk eletrônico cantado em português e produzido no Rio. Depois do lançamento do LP “Funk Brasil” (1989), não demorou cinco anos para os bailes que tocavam 100% de música importada passarem a ser animados por quase 100% de música composta na cidade. Em seguida, nosso batidão penetrou em pistas de dança mundiais, e seu tamborzão digital foi parar em hits de Beyoncé ou Black Eyed Peas. No ano passado, mesmo ainda discriminado, ganhou status de música oficial, destaque no disco do Roberto Carlos ou em todos os momentos brasileiros das cerimônias olímpicas. Porém, nenhuma surpresa foi maior que ver cenas de funk carioca nascendo em outros estados brasileiros, com até mais sucesso que o produto “original”.

Quem diria: São Paulo é hoje epicentro nacional-popular do samba e do funk carioca. No samba, temos desde o megasucesso de um Exaltasamba, transferido para as carreiras solo de Péricles e Thiaguinho, até a exaltação “de raiz” de um Samba da Vela. No funk, o que era “carioca” ganha sotaque paulistano e vira “ostentação”, gerando milhões de views no YouTube e shows lotados em todo o Brasil, mesmo sem discos ou divulgação nas rádios.

Em 2012, o “Gangnam style” brasileiro foi “Plaque de 100”, do MC Guime. Seu clipe oficial, publicado na internet há apenas seis meses, tem 19 milhões de views. Se contarmos clipes produzidos por fãs e paródias, esse número fica muito maior. Procurando agora por “Plaque de 100” no YouTube, encontrei 6.470 resultados, que incluem de animações feitas com personagens do game GTA ou do desenho “Alvin e os esquilos” até – meus favoritos – versão rasta-música-para-acampamento tocada só com violão e voz ou hilária tradução da letra para inglês (100 bucks!). Tudo prova que o MC Guime atingiu algum recanto profundo do nosso imaginário coletivo.

(Depois da coluna coreana da semana passada, minha querida Gaby Amarantos me mandou link de paródia paraense de “Gangnam style”: “Vu para Cametá”, Banda Paranoia. Compartilho aqui a diversão. E sou obrigado a fazer pausa para outra reflexão: segundo a lei do direito autoral em vigência, todos esses clipes de fãs e paródias de “Gangnam style” ou de “Plaque de 100”, entre milhões de outras práticas corriqueiras da produção-brincadeira cultural on-line, são infrações que podem ser punidas com penas as mais variadas. O legalmente correto seria pedir autorização (comprovadas por contratos) dos autores antes de publicar qualquer nova obra baseada em suas criações. Ninguém faz isso. Ainda por cima, como muita gente descobriu com a mudança de termos de uso do Instagram, quando publicamos paródias “ilegais” nas redes sociais, muitas vezes transferimos direitos – até uso comercial – dessas nossas criações bastardas para os donos do Twitter, Facebook etc. Projetos como o Creative Commons e propostas de reformas da lei são tentativas para lidar com esse desafio, propondo novo pacto legal, no qual “samplear” não seja sinônimo de “roubar”, e todos ganhem com a inevitável conjuntura digital.)

Eu deveria aqui fazer a antropologia da “ostentação”, e da Classe C. Deveria analisar a pré-história do funk carioca em São Paulo, das noites pilotadas pelo DJ Marlboro no clube Lov.E, ou dos festivais organizados pelo Renato Barreiros quando comandava a subprefeitura da Cidade Tiradentes, periferia paulistana (mostrando como o poder público pode ter relação saudável com a inovação cultural). Não vou ter espaço. Quero apenas saudar um dos aspectos desse novo intercâmbio musical Rio-São Paulo: antes parecia que o hip hop no Brasil iria ficar dividido entre a galhofa do Rio (pois funk carioca é herdeiro legítimo, via Miami Bass, do hip hop) e a seriedade paulistana, com seu rap militante. Agora as coisas aparecem bem misturadas, e a confusão pode ser saudável para as artes brasileiras em geral.

Mano Brown, na sua importante entrevista para o aniversário de um ano da revista Rap Nacional, fala em vários momentos de seu “convívio com os caras do funk”, e pergunta: “Como é que você vai embarrerar o funk? Como é que embarrera o mar?” Do outro lado, o MC Guime se juntou com Everton Muleke e a escola Império da Casa Verde e lançou “Lar doce lar (favela)”, um samba-funk pós-ostentação que tem tudo para se transformar no “Rap da felicidade” (aquele do “eu só quero ser feliz”) paulistano. Diz a letra: “minha mãe sempre dizia: tenha esperança / Hoje para o Brasil inteiro, direto de Sampa / É carnaval, então já é, vamos cair pro samba.”

bling blue

31/03/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 30/03/2012

Dama do Bling é o melhor nome de cantora já anunciado na face da Terra ou do YouTube. Na minha exaltada opinião, só é comparável a Tati Quebra-Barraco ou Poly Styrene. Mais incrível: ela é moçambicana e sua música é fenomenal. Fico – eu que tenho a pretensão de estar em dia com novidades pop lusófono – envergonhado de confessar que só ouvi sua voz pela primeira vez há poucos dias. E por caminho tortuoso, em matéria do MTV Iggy sobre a extrema vitalidade do rap na Nigéria. O texto, sem dar importância à informação, lá numa dada hora, dizia que Sasha P, primeira dama do hip hop local, havia gravado com uma tal Dama do Bling. Meu alarme de curiosidades pós-modernas tocou com vibração máxima. Epa! Que venerável dama é essa? Como pode haver alguém no mundo com esse nome vitoriano/kraftwerkiano sem que eu tenha sido avisado?

No YouTube encontrei o clipe (produzido pela Bang Entretenimento e “direcionado pelo DJ Marcell, o melhor da África Austral”) da “Dança do remexe”, de quatro anos atrás. Era prova que eu e o Brasil estamos totalmente desatualizados: poderia ter sido hit por aqui tão poderoso quanto “Dança kuduro”, de Daddy Kall e Latino. A primeira imagem é daquele tipo chamado de “money shot” pelo business de Hollywood, filmada para fazer o queixo do público cair provando orçamento farto. Um helicóptero pousa e é recebido por uma frota Mercedes-Benz. Logo aparece a Dama do Bling rebolando com figurino, cabelo e maquiagem de Nicki Minaj (não sabe quem é? foi homenageada até com uma Barbie com a cara dela), antes de Nicki Minaj fazer sucesso. Gosto até da letra: “vamos juntos fazer o chão saltar/ Dama vai, dança, requebra, não sossega/ fecha os olhos como se fosse cabra cega”.

Tive a honra de, em 1997, ter visto o primeiro show de rap realizado em Maputo, mais precisamente no Centro Cultural Franco-Moçambicano, situado na Praça da Independência, esquina com avenida Samora Machel, a meio caminho entre as avenidas Karl Marx e Vladimir Lênin (o registro da noitada histórica faz parte do documentário Além-Mar). O que mais me impressionou, ao olhar o público vestido de Wu-Wear (marca de roupa do coletivo Wu-Tang Clan) foi constatar a velocidade da “alfabetização” da juventude local na linguagem do rap dos EUA, país que era considerado vilão número 1 pelos governos comunistas que sucederam os colonizadores portugueses. Vários garotos que entrevistei ainda tinham lembrança vívida do tempo em que até o uso de jeans era crime ideológico punido com reeducação em Niassa, a Sibéria escaldante nacional.

Esse show aconteceu antes da popularização da internet (lembro que a internet comercial brasileira só apareceu em 1995). Hoje conexões por computadores e celulares tornam possível a formação de cena de hip hop continental, como provam as parcerias da Dama do Bling com a nigeriana Sasha P (música excelente, vídeo sensacional – repare nos efeitos especiais de luta) ou a queniana Yvonne. Essa música eletrônica pan-africana já está pronta para fazer sucesso no resto do planeta. O jornal The Guardian decretou que o rap afro-híbrido é “o novo som do underground britânico” ou “a cena mais quente hoje no Reino Unido”. O DJ Abrantee deu nome para a moda: afrobeats, com s para diferenciá-lo do afrobeat de Fela Kuti e outros avós dos rappers de Lagos.

Além dos elogios sempre suspeitos dos trend hunters ingleses, há sinais mais fortes de alavancagem comercial da turma da Dama do Bling. Exemplos eloquentes: Kanye West contratou o nigeriano D’Banj – autor de Oliver Twist, o hit dançante mais divertido de 2012? – para seu selo G.O.O.D. Akon assinou com Sarkodie, de Gana. Para a geração de Fela, Franco e Ladysmith Black Mambazo, esse reconhecimento mundial demorou décadas. Hoje, a internet tornou tudo praticamente instantâneo, sem precisar da grande mídia ou das grandes gravadoras para fazer a informação circular. Agora são os “grandes” que correm atrás dos “pequenos”, e cenas culturais surpreendentes nascem – muitas vezes se beneficiando daquilo que os grandes chamam de pirataria – em todos (e entre todos) os continentes.

Há cenas que praticamente só existem na internet e nas ruas/pistas de dança, sem mediação da mídia tradicional. Veja este domingo, no Esquenta!, o MC Nego Blue acompanhado pela banda do DJ Marlboro. Nego Blue me era tão desconhecido quanto a Dama do Bling. Quem me chamou a atenção para sua música foi Renato Barreiros, que trabalhou como pesquisador nesta temporada do Esquenta! e antes teve papel importante na evolução da versão paulistana do funk carioca quando fazia parte da equipe da subprefeitura da Cidade Tiradentes, extremo leste da cidade de São Paulo. Naquele período pioneiro o poder público, ao contrário do que aconteceu no Rio, soube dialogar com o novo ritmo. Renato combateu os preconceitos dos outros políticos e organizou festivais oficiais. Quem diria: o funk carioca é hoje o som da periferia paulistana, com sotaque local.

Pena: notícias recentes mostram que a polícia chega agora nos bailes já detonando bombas de efeito moral. Tal atitude pode empurrar tudo para a marginalidade. Perde-se assim enorme oportunidade de aproximação com a nova cultura jovem. Nomes como MC Nego Blue, MC Dedê e MC Boy do Charme têm clipes com vários milhões de views no YouTube e agendas lotadas de shows já em vários estados brasileiros. O poder público não aprende com seus próprios erros e acertos. Funk vai voltar a ser sempre assunto para a secretaria de segurança, desprezado pela “cultura”?