Posts Tagged ‘Leandro Sapucahy’

continuidade

23/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 07/01/2011

Ano novo. Governo novo. Descobriremos aos poucos o que há de continuidade e ruptura com o governo anterior. A maioria dos brasileiros votou pela continuidade de várias políticas públicas. Porém, são outras pessoas no poder. Divergências sempre vão existir, e é absolutamente saudável que existam. Por exemplo: em suas primeiras entrevistas, a nova ministra da cultura, Ana de Hollanda (muito bom ver uma mulher com sua história no comando do MinC), sugeriu a necessidade de revisão de projetos da gestão Gil/Juca. Ficam já claras diferenças no modo como encara a questão dos direitos autorais e sua adequação para a cultura digital. Vamos ver como a polêmica será conduzida daqui para frente e como o novo MinC dialogará com outras áreas do governo, que certamente manterão o tradicional apoio do PT ao software livre, fundamento imprescindível (justamente por sua maneira inovadora de lidar com os direitos autorais, sem nunca propor sua abolição) de vários projetos de inclusão digital de importância decisiva para a nova administração. A presidente Dilma declarou, em campanha: “quero ser presidente da inclusão social, mas também quero ser presidente da inclusão digital”.

Minha posição sobre o assunto é conhecida. Escrevi vários textos sobre direitos autorais, inclusive uma edição anterior desta coluna (09/07/2010), da qual cito o seguinte trecho: “Em artigo publicado há poucas semanas no Observer, John Naughton – professor da Open University britânica – afirma: ‘nossas leis de copyright estão agora tão risivelmente fora de contato com a realidade que estão caindo em descrédito. Ela precisam urgentemente serem reformadas para se tornarem relevantes para as circunstâncias digitais. O problema é que nenhum de nossos legisladores parece compreender isso, então isso não vai acontecer tão cedo.’ Temos oportunidade e legisladores [no Brasil] para fazer isso acontecer em breve. Por que não aproveitar? Por que se preocupar com intrigas pequenas, quando é possível fazer algo grande? Ou continuo esperando demais do Brasil?” Há, no próprio MinC, um excelente acúmulo de reflexão sobre o tema dos direitos autorais, levando em consideração a complexidade do problema e vários pontos de vistas conflitantes. Isso não pode ser esquecido agora, em busca de uma solução mais rápida e simples.

Pois não há soluções simples. O desafio digital é muito novo. Todos os dias aparecem utilizações surpreendentes da internet. Maneiras inéditas para se fazer cultura são inventadas e logo se transformam em motores da criatividade popular. Há poucas semanas (24/12/2010), aqui mesmo no Segundo Caderno, meu ídolo Leandro Sapucahy anunciava um novo projeto: “Muitos fãs pegam minhas músicas, juntam imagens, montam clipes e põem no YouTube. ‘Polícia e bandido’, por exemplo, tem dez clipes. Por causa dos meus dois primeiros discos, recebi muita música com temática parecida, porque achavam que ia gravar outro assim. Só que eu já estava em outro momento. Farei então um site. Selecionei 12 canções, vou recortar, pegar um minuto e meio de cada, escolher um grupo de garotos e cada um vai fazer um clipe e botar na rede. As músicas ficarão inéditas em disco.” Não sei se está claro para todo mundo, mas, para a Lei do Direito Autoral que temos agora, fãs não podem – sem autorização – pegar músicas dos outros para fazer clipes. Leandro Sapucahy poderia processar quem fez os clipes, ou o próprio YouTube por exibir esses clipes sem sua autorização. Mas o uso não-autorizado lhe deu ideia para um excelente projeto. Essa prática de fãs fazendo clipes é hoje tão comum, e tantos artistas a incentivam (pois os clipes viram divulgação para seus trabalhos), que a sociedade como um todo tolera o “desvio da lei”, contribuindo assim para o descrédito da legislação como um todo. Não existe democracia com lei desacreditada. Por isso a necessidade de uma revisão da lei, possibilitando (se as partes assim desejarem) a legalização do que hoje já é parte integrante e central da cadeia criativa contemporânea.

No site pessoal da agora ministra Ana de Hollanda há uma página para vídeos. O que encontramos por lá é material “do” YouTube, com recursos de “embedding” (quando “pedaços” de um site aparecem “dentro” de outros – prática também não prevista na Lei do Direito Autoral atual). A legislação atual é nebulosa. Não deixa claro o que podemos ou não publicar online, em que sites e em que circunstâncias.  Os vídeos são publicados com a melhor das intenções, para homenagear ídolos e divulgar seus trabalhos. Muitos artistas acabam aceitando que as coisas hoje aconteçam assim, sem apoio de uma lei clara. Por isso estamos todos (fãs, artistas etc.) desprotegidos, agindo no lusco-fusco de um arcabouço legal caduco. Precisamos de nova lei para nos proteger, também não criminalizando o que não consideramos crime, e encontrando maneiras ágeis de autorizar práticas comuns, sem atravancar os novos processos criativos já adotados pela maioria, e que podem ser de interesse de muitos artistas.

Claro: nada disso é contra os direitos de ninguém. Um autor vai ser sempre detentor dos direitos sobre suas criações. Ninguém pode “abrir mão” de seus direitos. Um autor, justamente por ser detentor direitos de suas obras, poderá, se quiser, autorizar previamente alguns usos dessas obras, facilitando por exemplo a criação dos clipes que fortaleceram os sambas e a carreira de Leandro Sapucahy.

tolerância

27/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 02/07/2010

 

Outra Ceia, do grupo Pura Tentação, é atualmente uma das músicas mais tocadas nas rádios populares e nas ruas do Rio de Janeiro. O sucesso é interessante por três motivos principais. Primeiro: ainda não foi lançado em disco. Aliás, o Pura Tentação nunca gravou um disco, nem teve grandes hits anteriores – é praticamente um grupo estreante. Segundo: é uma reza para Oxalá e sua corrente de orixás, num tempo de crescimento de algumas (não todas, é claro) igrejas neopentecostais que combatem manifestações da religiosidade afrobrasileira como prática do Mal. Terceiro: revela a permanência da centralidade/vitalidade do samba, especialmente do pagode pop detestado pela crítica, para o consumo cultural da população carioca, de todas as faixas etárias e zonas urbanas, mesmo em tempos de tantas outras ofertas e modas, nacionais ou internacionais.

A melodia de Outra Ceia conquista facilmente o ouvinte. Nos comentários para o clipe improvisado – apenas uma edição de fotografias – que foi enviado pelo grupo para o YouTube, muita gente diz que ficou arrepiada quando escutou sua letra no rádio. A comentarista Batatinha537, que frequenta igreja evangélica (“mas não sou batizada”) se rende: “tenho que admitir que essa música é linda demais!” Trunfo123, responsável pela publicação do “vídeo”, responde: “esse é o verdadeiro espírito da música, ou seja, independente da religião, ela toca todos os corações”. O samba narra o sonho bom com Oxalá, “em plena sexta-feira”, de uma pessoa que está cansada de carregar sua cruz e pede perdão por tudo que errou. Oxalá se comove, resolve cuidar do devoto, reunindo outros orixás para ajudá-lo: Iemanjá, Oxum e Oxumaré lavam seu coração; Iansã sopra seu vento com amor; Xangô faz justiça; Ogum ganha batalhas com sua espada; Oxossi cuida da ceia; Ossaim dá banho de ervas. No momento de maior empolgação, com o dobro de animação na percussão, Omolu cuida da saúde. É história com final feliz.

Marquinho PQD, um dos compositores de Outra Ceia, é ainda um dos responsáveis por Ogum, sucesso de Zeca Pagodinho, outra reza afrobrasileira que recentemente conquistou as rádios Brasil afora. No acompanhamento musical dessas duas músicas que celebram a força dos orixás, uma flauta torna a mensagem mais doce, tranquila, porém ao mesmo tempo segura, convicta, como se dissesse: não estamos aqui para briga, mas quem quiser entrar no (ou ficar ao lado do) nosso terreiro, tem que nos respeitar, tem que conviver conosco, pois somos alicerce desta nação. E a aceitação na mídia – sem espanto e contra todos os episódios violentos – parece confirmar ou pregar (ou pelo menos eu quero que seja assim) que esta é a vontade majoritária popular, também entre evangélicos: a tolerância entre contrastantes visões de mundo e além-mundo. E isso gera situações benéficas para todos: ninguém pode dizer, por exemplo, que o gospel não tenha vez no país do samba, até porque já temos samba-gospel (e futebol evangélico) de ótima qualidade.

O samba se garante, conquista novos adeptos o tempo todo. A rede do samba é poderosa, engrenando parcerias e links de vários tipos, uns fortalecendo os outros. Vide Marquinho PQD. Sua história não começou com Outra Ceia ou Ogum. Sua lista de sucessos tem início nos anos 80, naquele ambiente extremamente fértil que girava em torno dos pagodes do Cacique de Ramos, bloco que por sinal vai completar 50 anos em janeiro de 2011. Marquinho foi gravado pelo Fundo de Quintal. Fez várias composições com Arlindo Cruz, o rei do Rio que recolocou Madureira na boca da cidade. Arlindo é parceiro de Leandro Sapucahy, e também de Marcelo D2. O Fundo de Quintal prepara parceria Via Dutra com Leandro Lehart, que por sua vez acaba de colocar no estúdio toda uma bateria, formada pelos melhores músicos das escolas de samba paulistanas (escute, vale a pena), para tocar Carlinhos Brown. Quer mais? Há todas as novas raízes da Lapa. E a guitarra de Rômulo Froes. E os 25 anos de carreira do Exaltasamba. Tudo junto, misturado, e de nobreza inabalável.

Mesmo os lugares aparentemente mais anti-samba do mundo não resistem. Como o shopping Downtown, hoje palco de pagode querido da garotada da Barra, toda quarta-feira. E o funk, que muita gente decretou que teria nascido para acabar com a verdadeira música do Rio, cada vez mais se revela como herdeiro aplicado do samba, provavelmente seu melhor herdeiro. Tanto que hoje estão na moda festas como RevelaFunk ou ExaltaFunk. Os passos de dança também se misturam e um dia talvez fiquem tão parecidos que vai ser impossível diferenciar quem dança uma coisa ou outra.

Tudo bem, alguém pode dizer que sertanejo é mais popular aqui, forró acolá. Mas o samba é o máximo denominador comum, em constante renovação, de todo o país. É ruim aparecer outro ritmo para ocupar esse seu lugar. Há quase um século, o Rio transformou o Brasil no país do samba, e nada parece conseguir mudar essa nossa bendita condição. Orgulhosamente, convictamente, insistentemente: não marchamos, e mesmo orando, sambamos.