texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 23/11/2012
Missy Elliot, que se apresenta amanhã no festival Back2Black, é o nome feminino mais importante na história do hip hop. Temo estar cometendo alguma injustiça com essa afirmação, mas penso que mesmo as injustiçadas partilham minha admiração por tudo que Missy fez e faz para a evolução da música negra contemporânea. Sim, pois sua influência não se restringe ao rap. Pense em qualquer das cantoras megapopulares do momento (Beyoncé, Rihanna etc.). Em todos seus sucessos escutamos a tentativa de dominar um território vocal (pós-eletrônico) desbravado ou criado por Missy.
Não espere ver no palco uma periguete gostosona, de shortinho rasgado e barriga de fora, símbolo sexual em tempos de predomínio de estética pop-vigarista que ajuda a levar o mundo para o beleléu. Missy não cultiva visual ideal para o YouTube. Mas isso nunca foi problema comercial: ela já vendeu milhões de discos como artista solo e, mesmo quando esteve “fora das medidas”, lançou linha de roupas para a Adidas.
Gosto de seus discos (que contêm algumas das melhores canções de todos os tempos para pistas de dança), mas tenho até mais interesse em seu trabalho original de composição/arranjo/produção e também sua filosofia de construção/desconstrução sonora. Sua profissão é exemplo radical daquilo que John Cage denominava “compositor (organizador de sons)” . Não é porque trabalha no mundo da canção popular, para tocar no rádio e para fazer multidões dançarem, que não pode ser considerada vanguarda, mais até do que aquilo que é obviamente classificado como vanguarda.
Missy é produto de uma cena musical desenvolvida nas high-schools de Virginia Beach, balneário sem muita importância na cultura artística norte-americana (tudo bem, Ella Fitzgerald é uma exceção). Sua turma adolescente incluía outros geniais organizadores de sons como Timbaland, o pessoal do Neptunes e do Clipse. Lembro ainda do choque que foi ter contato pela primeira vez com as criações pós-hip hop de Virgina Beach, mais especificamente uma produção/composição de Timbaland/Missy, parceria que lançou sucessos poderosos em série. Eu estava em Moçambique, nas filmagens da série televisiva Além-Mar. O motorista local colocava vários CDs para tocar dentro da van. Nada tinha me chamado muita atenção, ele gostava de um soul competente mas genérico. Até que começou uma canção de amor, com uma batida esquisitíssima. Meu pensamento entortou. Não conseguia identificar o que era aquilo, parecia cruzamento soul/drum’n’bass, mas tinha uma bossa bem nova. E a voz continuava cantando com melodia angelical, como se a revolução rítmica que a acompanhava fosse uma banalidade. O contraste era mais que perfeito. Pedi a capa do disco: “One in a million”, da Aaliyah. Composição de Timbaland e Missy. Anotei os nomes e passei a acompanhar todos os movimentos de suas carreiras.
Marca registrada do pensamento sonoro de Missy é o uso da polifonia vocal picotada abusadamente pelos recursos de ponta do registro sonoro digital, que permite estratégias de “cut and paste” cada vez mais barrocas. Há uma simbiose entre esses métodos de gravação e a cabeça de Missy, que parece já compor em colagem dadaísta. E o milagre é que isso resulta em grude e não em estranhamento (nada contra o estranhamento – como todo leitor desta coluna deve estar careca de saber: não sei o que seria do melhor de nossas vidas sem hits grudentos). Missy: nossa mestre em lição fundamental para tempos cada vez mais modernos: como ser radical/difícil sem perder a ternura/facilidade pop jamais? Contradição insolúvel? Escute “One in a million” – é radicalidade terna sublime.
A programação do Black2Black deste ano está especialmente estimulante no campo feminino: temos Gal Costa (há certamente Missy em Recanto), Santigold, Ms. Laureen Hill, Fatoumata Diawara (preciso escrever coluna sobre o Mali), Nneka, Daúde, Dona Onete. Mas há também Martinho da Vila, Siba, Emicida, Naná Vasconcelos (vamos nos preparar para comemorar os 40 anos do disco “Amazonas”? Aliás 1973 foi incrível: “Phono 73”, “Amazonas”, o disco da mosca de Walter Franco, “Araça Azul” – que troço deu no Brasil naquele tempo?). Fico especialmente curioso com relação à apresentação de Sany Pitbull com Gerson King Combo e o AfroReggae.
Se o fim do mundo for assim, queremos mais fim: este final de 2012 está generoso em matéria de festivais de música. Depois do Back2Black e do Multiplicidade ainda teremos o Novas Frequências. Que beleza poder escutar outras garotas ternamente barulhentas como Maria Minerva, Prince Rama, Julianna Barwick em Ipanema (olha que barulho mais lindo, cheio de graça). Há garotos também. Mas hoje, por aqui, é mais o dia delas.