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semi e menos: muito mais

30/06/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 29/06/2012

Gilberto Gil fez 70 anos na terça-feira. Já participei de algumas homenagens. Fui um dos entrevistadores em seu Depoimento para a Posteridade, no MIS, convite de Rosa Maria Araújo. Acabo também de escrever texto para exposição comemorativa, convite de Frederico Coelho. Ainda fiz pesquisa sobre o exílio londrino para um projeto de Andrucha Waddington (o festival Back2Black, com curadoria de Gil, tem início hoje em Londres – será boa ocasião para falar sobre sua relação com a cidade). Portanto andei mergulhado na biografia de meu querido mestre/amigo tropicalista, o que é sempre uma alegria. Redescobri, por exemplo, o disco “Quanta”, que contêm a canção “Pop wu wei”, uma de minhas preferidas, e que deveria escutar (junto com a leitura de “O artista inconfessável” de João Cabral) todos os dias como uma oração: “Se Deus achar que eu mereço viver sem fazer nada / Que eu faça por merecer.”

Quanta, de 1997, termina com “Objeto ainda menos identificado”, outra maravilha. É continuação/resposta/etc. de “Objeto semi-identificado”, lançada 28 anos antes, naquele disco de “Aquele abraço”. Muitas vezes tenho a impressão que já fiz todas as perguntas possíveis para Gil. Afinal não foram poucas as vezes que o entrevistei (por exemplo, no documentário “Tempo rei”, quando volta para Ituaçu pela primeira vez desde a infância). Mas no processo de “desidentificação” das duas canções Objeto (as que levam a tradição da canção a seu extremo mais radical entre as gravações de Gil), deparei-me com algo nunca dantes conversado. Cheguei até a mandar email para Gil e Caetano com perguntas sobre a relação entre tropicalismo e música erudita contemporânea. Os dois me responderam com informações pouco comentadas em outras análises de suas obras, o que me animou a iniciar nova investigação. Esta coluna traz apenas suas primeiras anotações.

O disco de 1969 foi composto quase todo na prisão ou no período entre a prisão e o exílio londrino. Portanto, é quase um milagre que tenha sido produzido e lançado. Começa com “Cérebro eletrônico” e termina com “Objeto semi-identificado”, depois de passar por “Volks-Volkswagen Blue” e “Futurível”. “Objeto semi-identificado” é consequência das conversas entre Gil e Rogério Duarte (que fez a capa do disco, uma das mais ousadas do design gráfico nacional, com poema-desenho na capa e quadrinhos “Gil versus Solaries” na contracapa) no pré-exílio, semi-prisão de Salvador. A conversa ganhou forma de texto e foi gravada, apenas com as vozes dos dois amigos. Depois, como no resto do disco, a música foi acrescentada em São Paulo. Só que no caso de “Objeto semi-identificado”, o acompanhamento posterior não foi feito por instrumentos “normais”: era uma colagem sonora extremista com forte inspiração concreta e eletroacústica.

Quem comprou o disco em 1969, ao ouvir “Objeto semi-identificado” deve ter se lembrado de “Revolution 9”, lançado naquele álbum branco dos Beatles um ano antes. Não era uma cópia, mas sim duas trajetórias diferentes, a dos Beatles e a de Gil (com suas respectivas turmas), desembocando num mesmo lugar (quântico). O namoro entre tropicalistas e as estratégias sonoras barulhentas da música contemporânea era antigo. Vinha pelo menos dos Seminários Livres de Música da UFBA, com Koellreutter a frente, que trouxe até David Tudor para tocar John Cage em Salvador.

Djalma Correa, aluno dos Seminários junto com Tom Zé, participou do show “Nós por exemplo” (que apresentou Gil, Caetano, Bethânia e Gal [ainda Maria da Graça] para o público de Salvador), assinando a sonoplastia e apresentando número musical, segundo Gil, com “osciladores valvulados e outros trecos”. Caetano lembra da ocasião: “A plateia, que gostava do que fazíamos, não reagia nem com estranheza nem com impaciência.” Assim, quando Gil e Caetano encontraram Julio Medaglia, Rogério Duprat e a turma da Música Nova paulistana (vários integrantes tiveram aulas com Stockhausen na Alemanha), ou quando ouviram Charles Ives na casa de Augusto de Campos, ou quando encontraram Stockhausen na capa de “Sgt. Pepper’s” dos Beatles (e se depararam com aquele final em loop, pós “A day in life”, desse disco), já tinham réguas e compassos para entender e incorporar aquilo em suas próprias obras (E “Objeto semi-identificado” tropicalizava “Revolution 9” com seu discurso sebastianista sobre o Espírito Santo e neoconcretista sobre o desobjeto, o Deus-objeto).

Incrível como o pessoal dos anos 1960 conseguia fazer esse tipo de colagem sonora apenas com gravadores de poucos canais e overdubs. “Objeto ainda menos identificado”, de 1997, foi gravado com samplers e computadores comandados por Chico Neves, a partir de pedaços de muitos discos, inclusive da Nação Zumbi (Quanta é dedicado in memoriam para Chico Science, também outro discípulo do sampler). Gil e Rogério Duarte continuam falando os textos, mas a  composição é de Moreno Veloso e Lucas Santtana, com linguagem bem mais matemática, ou científica (afinal Moreno é físico), mas mantendo a defesa da mágica.

Agora, em 2012, o processo de desidentificação ainda é mais profundo. As conexões entre a canção e a experimentação são mais inteligíveis, onipresentes, mesmo em Lady Gaga. Gil declarou, em entrevista para a Folha de S. Paulo, que quer se desvencilhar da sua biografia. Sobrou para nós, em regime software livre. Os (des)objetos de Gil nos iluminam e contêm todas as coordenadas para seguirmos em frente, sempre para frente.

Eliane Radigue e Santo Estevão

16/07/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 08-07-2011

Eliane Radigue, que completará 80 anos em 2012, apareceu nesta coluna na semana passada, entre Brian Eno e Luc Ferrari, e como compositora pioneira de música eletrônica/concreta, além de parceira de xadrez de Marcel Duchamp. Ela merece muito mais espaço. O melhor seria realizar no Rio de Janeiro uma retrospectiva de sua obra, como a que aconteceu em Londres, entre 12 e 26 de junho. Tive a sorte de estar nas margens do rio Tâmisa num desses dias e fui ouvir a apresentação de “Jetsun Mila”, uma de suas criações mais amadas, na igreja de St. Stephen Walbrook. Adoraria poder ter a mesma experiência dentro da Igreja de São Francisco da Penitência, ali no Convento de Santo Antônio, deslumbrantemente restaurada, um dos lugares mais bonitos do mundo.

“Jetsun Mila” é composição de 1986, já da fase budista de Eliane Radigue, feita em sintetizador ARP. Inspirada na vida de Milarepa, iogue e poeta tibetano do século XI, a música tem 84 minutos. Na igreja londrina o som estava distribuído em seis alto-falantes, cuja fonte era um único laptop, comandado por assistente da compositora. Interessante notar a simplificação recente dos concertos de música eletrônica, ou eletro-acústica, ou concreta. Ainda nos anos 90 vi apresentações com muitos equipamentos no palco, sobretudo gravadores de rolo. Já neste século, estive num concerto de Pierre Henry, de quem Eliane Radigue foi assistente, que tinha início com a introdução de um CD numa máquina, gesto realizado com solenidade. A banalidade tecnológica da situação – um clique de mouse no laptop – não faz o ritual perder sua pompa. O público reage como se estivesse diante de uma orquestra e seu maestro genial.

A igreja de St. Stephen Walbrook (nosso querido Santo Estevão, que também já foi homenageado em coluna passada, quando escrevi sobre a banda St. Etienne) reforça o clima solene. Mesmo sendo o templo mais racional, limpo, exato no qual já estive presente (por isso gostaria de ouvir a mesma música em ambiente barroco carioca), as vibrações místicas são evidentes (a razão é também portal para a iluminação…) Seu arquiteto foi Christopher Wren, que ali experimentou várias idéias que depois ficariam mais grandiosas na Catedral de St. Paul. Em St. Stephen tudo tem escala reduzida, e a simetria é muito mais rigorosa, sem ornamentos excessivos. Tal limpeza incomodou gerações de fiéis que tentaram embelezar o ambiente com pinturas, madeiras e até vidros coloridos nas janelas. Só depois da reconstrução da igreja, que foi vítima dos bombardeios da Segunda Guerra, é que suas características originais reapareceram. Com uma adição fundamental/monumental, mas totalmente harmônica com os planos de Wren: um altar do escultor Henry Moore.

O altar é uma enorme pedra redonda de mármore (vindo da Itália, do mesmo local onde Michelangelo se abastecia), que pesa várias toneladas – e o peso é bem “visível”. Sua localização também mudou: não fica mais num dos lados da igreja, mas no centro, e os bancos para os fiéis, de design igualmente moderno, formam vários polígonos (palavra que tem lugar de destaque em Crystalline, nova excelente música da Bjork) em torno da obra radicalmente moderna de Moore. Deus está no centro e não em um dos cantos do edifício sagrado.

Escutamos a música de Eliane Radigue sentados nos bancos da igreja, virados para o altar central, sem padre para celebrar a cerimônia. A música vinha de nossas costas, ou dos alto-falantes colocados no outro lado da igreja. À nossa frente o bloco de mármore de Henry Moore, que apesar de branco, lembrava (na minha imaginação sempre surpreendente, até para mim mesmo) o monólito negro de 2001, de Kubrick. Contei quantos éramos no público: 62 pessoas, entre elas 17 mulheres e um homem de terno preto, camisa preta e gravata vermelha. Quase todos com os olhos fechados (o cara do meu lado não moveu um único músculo durante os 84 minutos da música). Eu me sentia meio traidor por estar olhando os outros, em vez de meditar no meu cantinho. Mas garanto que estava meditando de olhos abertos e andando, com consciência certamente alterada, tendo que encontrar meu não-lugar entre duas tradições religiosas: aquela visualmente cristã, mesmo com o contraste clássico-moderno Wren-Moore, com a outra auditivamente budista Milapera-Radigue, talvez tudo unido por uma terceira (sub)corrente, absolutamente moderna, Radigue-Moore.

O resultado psicodélico de tudo isso (peço desculpa mais uma vez pela minha imaginação destrambelhada): era como nós, o público, fossêmos aqueles hippies que nos anos 60 tentaram fazer o Pentágono levitar. O altar pesadão de mármore, que ganha beleza de seu peso, agora – sob efeito da música – parecia leve, sua concretude se esvaziava com o toque da varinha de condão sonora tibetana-eletrônica. A pedra, duplamente abençoada (pelas rezas cristãs e budistas), tornava-se milagrosamente vazia.

Brian Eno acaba de lançar um novo disco, chamada “Drums between the bells”, que pode ser escutado na íntegra no site da revista Wired. É uma colaboração de Eno com o poeta Rick Holland. A música acompanha a poesia falada por muitas vozes diferentes (e uma capa com foto de São Paulo, não a catedral, mas nossa vizinha de ponte aérea – segundo Eno “a cidade mais cidade-esca do mundo ocidental” [“the most city-ish city in the Western world”]). Quando ouvi a primeira faixa, fui transportado novamente para a igreja de St. Stephen: seu título é “Abençoe este espaço”. Só posso responder: amém.

Eno Radigue Ferrari

09/07/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 01-07-2011

Brian Eno lançou o termo “ambient music” no texto que acompanhava seu LP “Music for airports”, de 1978. Partidário de processos artísticos generativos, cuja evolução não é controlada por seus “autores”, ele gosta de dizer que apenas lançou uma semente. Virou uma floresta. “Ambient” hoje é um bioma musical, emaranhado de estilos, com muitas sonoridades e atitudes diferentes. Como a do grupo Bang on a Can, que conseguiu transcrever as faixas de “Music for airports” para instrumentos clássicos (e não tanto), possibilitando sua execução ao vivo. A versão DVD desse trabalho – incorporando as imagens que Frank Scheffer fez no aeroporto de Amsterdam para projetar durante o concerto – foi lançada recentemente no Brasil dentro do catálogo estranhíssimo (que inclui Justin Bieber e Julio Iglesias) da Music Brokers.

Scheffer fez documentários sobre Cage e Boulez. O DVD de “Music for airports” inclui também o filme “In the ocean”, sobre a trajetória do Bang on a Can, que nasceu tentando unir o experimentalismo mais pop e americano da downtown com a erudição mais pomposa e européia da uptown de Nova York. Por exemplo: Julia Wolfe, integrante desse grupo, é compositora de “Lick”, a melhor tradução de James Brown para o palco do Lincoln Center. Incrível, no filme, ver Steve Reich falando dessa música, batendo uma mão na outra quase como se fosse Sid Vicious. Ele, para mim, foi a surpresa do filme. Nunca tinha visto Reich falando. Cheguei a estar na platéia de um de seus concertos – no Lincoln Center… – mas nada ali indicava que tinha tanta energia corporal ao falar sobre música. Imaginava um monge budista. Ou pessoa mais tímida, como Eno.

Segundo o encarte do “Music for airports” original, a ambient music tem como objetivo produzir calma e um espaço para pensar. A palavra espaço é importante. Podemos mergulhar dentro dos sons. Eno queria fazer música para local bem determinado, com características acústicas singulares. Aquela composição foi criada para tocar em aeroportos mesmo, “acomodando todos os barulhos que um aeroporto produz”, podendo ser interrompida pelos anúncios dos voos, trabalhando em frequências diferentes daquelas usadas pelas falas das pessoas etc. Interessante ver isso transportado para outro edifício, a sala de concerto, diante de uma platéia que não fala enquanto os músicos tocam: ambiente que nos mostra uma outra beleza da ambient. Um texto de 1996 sobre “Music for airports” (publicado neste livro), Eno revela o outro lado da calma, e dos aeroportos: a música buscava “ter alguma coisa a ver com onde você está e para quê está ali – voar, flutuar e, secretamente, flertar com a morte”. Eno pensava: “Quero fazer um tipo de música que prepare você para morrer – que não fique toda luminosa e alegre fingindo que você não está apreensivo, mas que faça você dizer para si mesmo, ‘realmente, não é lá grande coisa se eu morrer’.”

Lendo essas palavras pensei em “Kyema, estados intermediários”, provavelmente uma das mais belas músicas já criadas, dedicada por sua compositora, Eliane Radigue, para o filho, Yves Arman, que havia acabado de morrer em acidente de automóvel. (O pai de Yves era Arman, artista fundamental, da turma de Yves Klein e parceiro, com Eliane, de Marcel e Teeny Duchamp em partidas de xadrez.) Radigue trabalhou com dois Pierres, o Schaeffer e o Henry, os inventores da música concreta. Aprendeu com eles a criar espaços sonoros dentro dos quais os ouvintes podem passear (isso é comum em concertos de música contemporânea: caixas de som são posicionadas em lugares diversos, dando tridimensionalidade para a emissão sonora). Mas seguiu caminho único, bem diferente dos abertos por seus mestres. Henry saiu de um de seus concertos reclamando: “Você foi minha melhor assistente, e olha o que acabou fazendo.” Um crítico de jornal no ínicio dos anos 70 tentou descrever o que ela fazia: “Nada acontece, e mesmo o nada é muito para descrever aquilo.”

Não é que não aconteça nada. Mas na música de Radigue, tudo acontece e muda muito devagar. E esse é um de seus encantos, que nos abre um espaço onde podemos aprender a ser unos com o som. Experiência mística? Não foi por acaso que Radigue quase deixou a música para se dedicar aos estudos e práticas do budismo tibetano. Os estados intermediários de “Kyema” são aqueles seis que constituem o “contínuo existencial” do ser, segundo o “O Livro Tibetano dos Mortos”, onde o som está no íntimo de tudo. Vale a pena comparar a música de Radigue com aquela que Pierre Henry fez para “O Livro dos Mortos” do Egito Antigo, cheia de fúria e dinâmica bombástica. São dois modos inteiramente diferentes de encarar a vida e a morte.

Há horas em que só a fanfarra de Henry pode nos acalmar. Mas tenho preferência cada vez mais estável por música que não fica toda exibida procurando minha atenção, ou que – como bem diz Eno – “pode acomodar muitos níveis de atenção” (inclusive o total esquecimento do está tocando). Tente fazer o teste ao viajar por terra: coloque Presque Rien n. 1 (isso mesmo, a tradução é “quase nada n.1”, e é compostas com sons ambientes do amanhecer numa aldeia de pescadores ex-iugoslava) de Luc Ferrari para tocar no som do automóvel. O mais legal é quando a música dos alto-falantes, de um mundo já passado (da ex-Iugoslávia), se confunde com os sons da estrada, um mundo bem presente, por onde estamos trafegando. O mundo inteiro vira música, morte-vida, estranha e calma música.