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cinco anos

25/04/2015

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 24/04/2015.

Este é o texto de despedida daqui deste meu querido cantinho no Segundo Caderno. A coluna completa cinco anos. Foram mais de 200 edições, quase sempre trocando radicalmente de temas a cada semana. Outros trabalhos exigem maior dedicação no momento. Pena que os dias não têm mais horas, para fazer tudo que precisamos fazer. Mas como minha coluna tem compromisso com o novo, chegou a hora de ceder o espaço para outros olhares, que possam nos apresentar outras perspectivas para lidar com as transformações velozes da cultura contemporânea.

Quando, no início de 2010, recebi o convite para ser autor de coluna semanal, inventei desafio secreto: nunca escreveria sobre falta de assunto. Por incrível que pareça, não foi difícil. Tenho ainda muitas ideias para próximos textos, novidades brilhantes que precisam ser mais conhecidas. Poderia ficar por aqui pelo resto da vida, com a mesma animação. Já repeti várias vezes: o Brasil e o mundo não se cansam de me surpreender. Quero fortalecer as boas surpresas, não por otimismo ingênuo, mas por resistência, lutando para o mundo não ser carregado apenas por aquilo que é ruim (ou pela “crítica fácil dos que julgam a existência à medida de suas limitações” – palavras de Paulo A. E Borges).

Outra afirmação recorrente nos meus textos: hoje nosso problema maior é a abundância e não a escassez. Abundância de coisas ruins e boas. Abundância mesmo de problemas, cada vez mais complexos, de difícil resolução. Mas abundância também de imaginação e invenção de soluções – tecnológicas, artísticas, políticas. Prefiro – “é da minha natureza”, como disse Dom Juan, o mestre de Castaneda – estudar e divulgar sugestões de soluções, talvez por tanta gente já prestar mais atenção – necessária, é claro – nos impasses, ou no que precisa ter fim. Tenho mais afinidade com aquilo que ainda é começo, possibilidade afirmativa de melhorar a vida pública e geral.

Nas artes, isso tudo me parece evidente. Não tenho tempo para acompanhar todas as boas novidades. Todo dia nascem novas tendências de música, dança, instalação, arquitetura, moda, audiovisual etc. etc., no “mainstream” e na “periferia” – e mesmo nas estratégias para fazer a curadoria disso tudo, apontando o que realmente interessa para diferentes comunidades. Antes, a ebulição cultural era filtrada por indústria cultural centralizada. Hoje há quantidade crescente de ferramentas para produção e circulação das criações. Porém, não sabemos ainda aproveitar a nova situação, evitando desperdício/dispersão.

Fui rever os primeiros textos desta coluna. Talvez, se publicados agora, ainda seriam recebidos como novidades. Na estreia, apresentei Will Wright como um dos mais “importantes, criativos e influentes” artistas contemporâneos. Expliquei o motivo para sua escolha: “fui procurar, em cadernos culturais de jornais brasileiros, algum artigo sobre sua obra e só encontrei superficialidades.” Não sei se houve artigos depois, apesar de atualmente encontrarmos mais cobertura de jogos eletrônicos como arte. A segunda coluna falava de Satoshi Kon e de outros diretores de “animes”. A terceira, sobre Fábio Cavalcante, que continua com produção firme de música eletrônica e documentação “folclórica”, ainda “escondido” no Pará. Na quarta, as estrelas eram Quentin Meillassoux e o realismo especulativo.

Só posso agradecer à equipe do Segundo Caderno por ter incentivado essa minha aventura maluca, escancaradamente distante dos assuntos populares do momento. Meu objetivo consciente era igualmente fugir do tom opinativo (mesmo gostando de opiniões em outras colunas). Meu espaço deveria servir de plataforma para divulgação de obras/nomes que eu pouco conhecia antes. Aprendi muito no caminho, também com leitores. Minha coluna da semana passada, por exemplo, teve como ponto de partida a dica de uma leitora. Minha maior alegria era receber mensagens revelando como meus textos foram úteis para trabalhos de outras pessoas. Publiquei tudo da coluna em blog, com muitos links para outras descobertas. Já estou com saudade. Acho que não resistirei e inventarei tempo para colaborações esporádicas com este jornal.

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Se não tivesse que me despedir, esta coluna seria sobre novas pontes que estão sendo construídas por artistas/pensadores entre os mundos cristãos e islâmicos (sempre no plural). Começaria citando Étienne Gilson falando de São Tomás de Aquino e Duns Scoto: para quem desenvolveu a teologia cristã medieval, os filósofos muçulmanos “não lhe são mais estrangeiros do que Kant o é para um filósofo francês ou Descartes para um filósofo alemão, ou menos ainda.” Não posso, no momento, dizer mais do que isto: #ficaadica.

 

ciberdesbunde – o início do guia

13/12/2014

Texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 12/12/2014

 

1989. Em sebo da Praça Tiradentes, encontrei revista com Sun Ra na capa. Lembro essa descoberta agora para comemorar o centenário de nascimento deste gênio da música vindo – acredito piamente – do espaço sideral. Um dos meus momentos de mais intensa alegria foi provocado por Sun Ra cantando por horas, em palco de Nova York e com acompanhamento pós-free-jazz, sobre passeios pelos anéis de Saturno. Só a descrição desse show já seria material suficiente para a coluna de hoje. Porém, preciso cumprir promessa da semana passada: iniciar guia para as origens do ciberdesbunde. Então, a lembrança da revista garimpada naquele sebo tem outra razão para aparecer por aqui. Seu título espantoso – note bem: isso aconteceu em 1989 – era “Reality hackers”. Deve ter pousado na Praça Tiradentes a bordo de um disco voador psicodélico.

Depois de folhear aquelas páginas, nunca mais fui o mesmo. O fato de mudar de maneira de ver o mundo toda semana (como esta coluna comprova) não banaliza o impacto que a “Reality hackers” teve em minha vida. O editorial ainda me deixa zonzo. Tentando traduzir o idioma californiano: “‘Reality hackers’ conspira ativamente com holográficos, vídeo-artistas, músicos, designers de software, cartunistas, místicos, Mestres Ocultos, Amantes Ocultas e musas concubinas. Nós formamos uma Casa de Mídia para bombardear a desprevenida América com canal banda larga de parasitas mentais e memes estridentes. A Casa de Mídia Reality Hackers é um vórtice de plágio e tradução simultânea, onde agentes da Fronteira em eterna expansão se encontram para crospolinizar, ascender, e transferir coisas de uma mídia para outra – uma estação de codificação e descriptografia para predação polisensorial.” Nas páginas seguintes a coisa fica mais punk, com artigos de Hakim Bey, Timothy Leary, Terence McKeena, entrevista com Brian Eno, reflexões sobre ciberterrorismo, heavy metal, paganismo high-tech e MDMA.

Tudo editado pelo casal R. U. Sirius e Queen Mu (seu crédito era “domineditrix”), que depois lançou a “Mondo 2000”, revista obrigatória para a turma que transformou a internet em cultura de massas (para além da massificação da cultura). O número de assinantes era pequeno, mas influente. Tanto que, em fevereiro de 1993, o pessoal alternativo da Mondo fez o design da capa da revista – mais mainstream impossível – “Time” sobre o movimento cyberpunk. R. U. Sirius e Queen Mu, junto com Rudy Rucker (outro ídolo desta coluna), tinham acabado de lançar um “Guia do usuário para a nova fronteira”, cheio de verbetes pitorescos como “sexo virtual”, “música do DNA”, “nomadismo” e “hipertexto”. Parece de época, e é, mas só hoje algumas promessas daquele momento se transformaram em produtos no mercado. Como a realidade virtual, vide o Oculus Rift.

A “Reality hackers” começou como fanzine chamado “High frontiers”, dedicado principalmente ao debate sobre alterações da consciência por meio de substâncias psicoativas. O encontro de R. U. Sirius e Queen Mu com o pessoal – Stewart Brand e Kevin Kelly, entre outros – que produzia o Whole Earth Catalog foi decisivo para o reconhecimento do papel cada vez mais central da tecnologia para qualquer avanço contracultural. O catálogo, que tinha como subtítulo “Acesso a ferramentas e ideias”, facilitava a venda de produtos e publicações que tornavam possível uma vida “faça você mesmo”, tanto em termos cibernéticos quanto ecológicos. Tenho a edição de 1986, que na página 351, sobre “redes de computadores”, traz a seguinte profecia: “Um dia todo mundo vai se comunicar desta maneira.” E acrescenta: “Os editores da ‘Whole Earth” ficaram tão enamorados das redes de computadores que fundamos nossa própria – a WELL (Whole Earth ‘Lectronic Link). Como em todas essas redes, você paga por minuto – no nosso caso US$3/hora mais $8/mês mais (se você não é local) $4 para ligação interurbana.” O que hoje parece caro naquela época era o mais em conta que havia. E quem pagou sabe que viveu no WELL uma experiência mítica. Foi o Woodstock do ciberdesbunde.

Em 1994, a “Time” publicou capa sobre “o estranho novo mundo da internet”. Havia até box com respostas para as perguntas: “o que é a internet?” ou “como me conecto?” Início da matéria: “A maior rede de computadores do mundo, antes um playground de cientistas, hackers e gearheads, está sendo tomada por advogados, mercadores e milhões de novos usuários. Há espaço para todos?” Vinte anos depois a questão permanece aberta. Ainda bem que o Internet Archive desenvolve o “Mondo 2000 history project” que mostra para quem chegou agora na rede o rumo que nossa vida virtual poderia ter tomado, ou ainda pode tomar.

 

ciberdesbunde

06/12/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 05/12/2014

O livro “Os inovadores” – escrito por Walter Isaacson, lançado recentemente no Brasil e já nas primeiras listas de melhores do ano mundo afora – conta a história das pessoas, começando por Ada Lovelace, que inventaram o mundo digital, no qual estamos cada vez mais submersos. Nossa situação atual parece vingança póstuma de manifesto surrealista: os chips se libertaram dos computadores e se multiplicam desarvoradamente juntos e misturados a qualquer coisa. O analógico não tem alternativa: ou se converte em bits ou desaparece. As coisas se comunicam entre si, como no país das maravilhas que, segundo relato de Alice, pode ser também aterrorizante.

Boa leitura para complementar “Os inovadores” é “What the dormouse said”, de John Markoff, salvo engano nunca lançado em português. O subtítulo explica a maluquice do título: “como a contracultura dos anos 60 moldou a indústria do computador pessoal”. Explicando melhor ainda, para quem não tem coleção de vinis hippies: “what the dormouse said” é citação de verso de “White rabbit”, hino psicodélico lançado pela banda Jefferson Airplane no álbum “Surrealistic pillow” (repare bem no surrealismo aqui outra vez). Obviamente John Markoff fez metacitação de Lewis Carroll, que – nada por acaso – era também matemático. Resumindo o que vem a seguir: escrevo esta coluna para provar, matematicamente (para isso não preciso consultar a biblioteca do Impa), que Alice está bem viva (ou deveria estar) no fundamento digital de nossa vida pós-PC, com a consciência plugada na internet de todas as coisas.

Na análise desse desbunde do real (vivemos era em que o real mesmo, no seu núcleo mais duro, se desbunda, constatação que não insinua juízo de valor) talvez falte um terceiro livro, ainda não escrito. Seria uma história de várias revistas que, com graus bem variados de sucesso comercial, difundiram para o público leigo reflexões sobre o impacto das transformações tecnológicas na cultura, na política, na sociedade e em todo o resto. O mais interessante: seu efeito não foi só formar a mente dos consumidores dos novos produtos, mas também direcionar as ideias dos inovadores, e mesmo de seus CEOs, para seguir Alice em suas aventuras.

É possível identificar momentos marcantes dessa história paralela lendo as introduções de cada capítulo de “Borg like me”, livro de Gareth Branwyn, que tem outro subtítulo que tenta explicar (ou não) seu conteúdo: “& outros contos de arte, eros e sistemas embedados” (procurei no Aurélio agora e não encontrei o verbo “embedar”, mas acho que já se tornou atitude/termo corriqueiro por aqui). Você pode não ter ouvido o nome do autor, mas certamente usa ou é influenciado por algumas das ideias divulgadas por seu trabalho na edição de revistas como “Mondo 2000”, “Wired”, “Make” ou no site/blog “bOING bOING”, ainda um dos mais influentes no circuito tecnocultural.

O livro, como coisa ou produto, já é a concretização de vários princípios centrais na ideologia desse circuito, que tem hoje sua vanguarda no movimento maker (no Brasil há a tentativa, que aprovo, de batizá-lo de movimento fazedor – tenho carinho especial pela conjugação do verbo fazer). Seu financiamento foi colaborativo (vale conferir a documentação do processo de “crowdfunding”, muito bem feito, mas muito trabalhoso, cheio de lições para quem pensar em se aventurar por opção de produção semelhante). Uma nova editora independente, a Sparks of Fire, foi criada para o lançamento, mostrando como já vivemos em outra realidade (desbundada?) editorial.

Estou insistindo no repetição do uso da palavra desbunde, contra todos os sinais – espionagem e ódio pesados, por exemplo – que indicam o predomínio do lado negro da força em nossa vida cibernética contemporânea. Em entrevista para o podcast “Expanding mind”, Gareth Branwyn usou expressão que me deu calafrios por fazer tanto sentido: “matrix faça-você-mesmo”. É uma provocação: usamos a estratégia punk, ou cyberpunk, do “do-it-yourself” para construir – coletivamente, descentralizadamente – nossa própria prisão-rede-social? Tantas oportunidades tecnolibertárias (muitas delas visíveis pela primeira vez nas publicações editadas por Gareth Branwyn) perdidas? Em que momento perdemos Alice de vista?

Por isso a importância de reler os artigos “de época” reunidos em “Borg like me”, não para cultivar a nostalgia por aquela zona autônoma temporária criada por Gareth Branwyn e seus mentores/parceiros malucos-beleza em algum momento mágico da virada das décadas 1980/1990. A leitura apenas recarrega nossas baterias para enfrentar os problemas de hoje. Na próxima coluna vou tentar escrever um guia para essas fontes de energia ciberdesbundadas.

somos todos erroristas

31/05/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 30/05/2013

Na coluna da sexta-feira passada fiz comentários sobre o sucesso retumbante e surpreendente do livro “O capital no século XXI”, de Thomas Piketty. Nunca, na história do planeta, um economista passou tão velozmente de culto universitário para celebridade pop. Mesmo assim, eu não estava preparado para encontrar no topo esquerdo da primeira página deste jornal, em sua edição de sábado, a seguinte manchete em tom quase policial: “Piketty acusado de erro”. O “New York Times”, o “Le Monde”, o “Frankfurter Allgemaine Zeitung”, o “Pravda” e quase todos periódicos importantes do mundo também deram destaque para a descoberta, pelo “Financial Times”, de contas e fórmulas incorretas em nosso novo “Capital”. O debate acadêmico virou paixão de massa como um lançamento da Beyoncé?

Parece que o que está em jogo é a salvação do capitalismo, cotadinho. As acusações do “Financial Times” serviriam para provar que – ufa! – não estamos condenados a crescente desigualdade, pois – se analisadas corretamente – as estatísticas não revelam uma concentração de renda crescente na mão do 1%. Pelo que consigo entender, Piketty não é Marx, nem prega o desaparecimento da burguesia. Sua proposta, com taxações maiores sobre grandes riquezas, tenta salvar do capitalismo de seus básicos instintos concentradores e, a cada vez mais curto prazo, suicidas. Toda economia precisaria de distribuição de renda para crescer e inovar. Porém (a polêmica do “Financial Times” deixa perceber), o problema principal se esconde além das contas, e se aproxima do misticismo: está todo mundo em busca de um “espírito” que faça as pessoas acreditarem que o capitalismo seja realmente capaz de produzir bem público.

Por isso, também na coluna passada, recomendei a leitura de “O novo espírito do capitalismo”, calhamaço de Luc Boltanski e Ève Chiapello que analisa as justificativas que o capitalismo criou para motivar/mobilizar multidões (operários, administradores de empresa, donos de bancos etc.) a colaborar com seu sistema de acumulação baseado em lucro (antes considerado pecado) e trabalho assalariado. Claro, o assunto ficou pop, mas no mundo pop quase ninguém tem tempo para livros de quase mil páginas. Vou ser bonzinho: tenho recomendação mais prática para quem não quiser fazer feio nos debates de bares dos 99% e restaurantes dos 1%, entre observações sobre a Copa ou sobre o desfile de Raf Simons e Sterling Ruby. Leia qualquer coisa do autor para quem Boltanski e Chiapello dedicaram seu “O novo espírito”: Albert O. Hirschman. São obras sempre curtinhas e deliciosas.

Não vou chatear ninguém resumindo aqui “As paixões e os interesses”, que em menos de 120 páginas revela como a cobiça, e consequentemente o “ganhar dinheiro”, foi sendo considerada a “menos pior” das paixões, uma paixão “calma”, que contribui para a paz coletiva (e entre as nações). Prefiro seduzir leitores com passagens mais pitorescas. Hirschman se orgulha de ser um autossubversivo, sempre alegre ao questionar os fundamentos de suas próprias ideias. Ele poderia fazer coro para o novo rap da chilena Ana Tijoux: “Somos todos erroristas”. Isto é, erramos sem parar, e muitas vezes errando é que encontramos as saídas inovadoras ou os caminhos, múltiplos, de fuga para frente.

A polêmica do “Financial Times” tornou explícito mais um Fla-Flu ideológico: agora temos também os extremistas pró e contra Piketty. Todos poderiam lucrar (hehehehe) se lessem com atenção, e coração aberto (sei que peço o impossível), o artigo “Opiniões peremptórias e democracia”, publicado no Brasil dentro da coletânea “Auto-subversão” (a edição ainda tem grafia anterior ao Acordo Ortográfico). Diante de um ambiente no qual há indiscutível “superprodução de opiniões” (e Hirschman escrevia em 1989, antes da WWW), uma pergunta nunca quer calar: seriam os indivíduos “capazes de valorizar tanto o fato de ter opinião quanto o de ter mente aberta, a combinar o júbilo por ganhar uma discussão com os prazeres de serem bons ouvintes e de ter a ‘índole persuadível’ de Jane Austen?”

Para Hirschman, os caminhos das mudanças de opinião são sempre imprevisíveis. Muitas vezes o bem comum é consequência da insistência em avaliação errada. Achamos que não há riscos, embarcamos numa canoa furada. Quando percebemos o erro já estamos em alto mar. Temos que tapar o furo em pleno movimento tempestuoso. Já gastamos tempo ou dinheiro demais para voltar atrás – e provavelmente nunca seguiríamos em frente se não estivéssemos com a corda no pescoço. Resumo: frequentemente, se não fosse o empurrão do erro, não faríamos nada e ficaríamos empacados no mesmo lugar ruim.

Mais uma citação, “com o devido respeito a Francis Fukuyama”: “o curso da história parece rumar com todo o vigor em direção contrária à visão que se tem do curso da história!” “Financial Times”, Thomas Piketty e suas turmas: todos precisam aprender com os erros dos outros.

PS: Citação importante, tambem do artigo “Opiniões peremptórias e democracia”, que não entrou na versão publicada no jornal por falta de espaço: “Contribuições recentes à teoria da democracia ressaltaram o papel da deliberação no processo democrático: para uma democracia funcionar bem e perdurar, é essencial, afirmou-se, que as opiniões não sejam formadas plenamente antes do processo de deliberação. Os participantes do processo – o público em geral e seus representantes – devem manter um grau de abertura ou de caráter experimental em suas opiniões e estar dispostos a modificá-las em consequência de argumentos que serão apresentados pelas partes oponentes e, mais simplesmente, à luz de novas informações que podem surgir no decorrer de debates públicos. Sem um processo político que manifeste pelo menos alguma aspiração a esse quadro reconhecidamente um tanto idílico, a democracia perde sua legitimidade e fica, assim, ameaçada.”

capitais

24/05/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 23/05/2014

Todas as pessoas que costumam ler jornais, no mundo inteiro, já devem estar cansadas de ouvir falar no sucesso de “O capital no século XXI”, livro de Thomas Piketty. Ao que tudo indica, nunca houve vendas semelhantes na história das editoras acadêmicas, ou das publicações de ciências sociais. De políticos a diretores de bancos privados, uma multidão escreve artigos com sua opinião sobre a leitura. Repentinamente, desigualdade é o assunto do momento mesmo entre conservadores. E vemos um intelectual francês dominar rodas de conversa que antes só admitiam pensamentos difundidos originalmente em inglês.

Acontecimento inesperado? Ao ver o nome de Piketty na vigésima sétima posição de sua lista 2014 de “pensadores top” no planeta (quase sempre professores de universidades dos EUA ou da Inglaterra – mesmo quando têm origens em outros países, como Mangabeira Unger, Amartya Sen ou Ha-Joon Chang), a revista “Prospect” sentiu necessidade de observar: “é também uma lembrança de quão velozmente as modas intelectuais podem mudar.” Curioso: Piketty e seu colaborador Emmanuel Saez já estavam juntos na posição 62 da lista de 2013. Sinal de que o sucesso atual tem raízes mais antigas, e – apesar de suas proporções – não deve ter sido surpresa absoluta para analistas atentos do “hit parade” das ideias. A “Prospect”, em seus comentários sobre os vencedores do ano passado, apontava a influência de Piketty e Saez na campanha Obama, e linkava matéria de 2012 no New York Times que já tratava a dupla como o novo “cool” em termos intelectuais.

Então: todo século tem o seu “Kapital”, divulgado com formas renovadas de ciência mimética? Sempre é interessante observar os caminhos pelos quais esse tipo de sucesso meteórico é produzido (aqui não precisa haver nenhuma intencionalidade), ou como obras semelhantes não conseguem alcançar a mesma visibilidade. Quando percebi que Piketty tinha ocupado bem mais que 1% das páginas mais sérias dos jornais, pensei logo que todo século precisa ter também seu “A ética protestante e o espírito do capitalismo”. Estamos com sorte: já podemos comprar “O novo espírito do capitalismo”, livro de Luc Boltanski e Ève Chiapello.  Porém, e apesar de no seu lançamento de 1999 ter sido saudado como clássico, esse outro calhamaço não conseguiu nem 1% da empolgação conquistada pelo novo “Capital”. Procurei agora resenhas nos jornais brasileiros (o lançamento por aqui aconteceu, pela Martins Fontes, em 2009) e encontrei apenas notas curtas – quase nada se comparadas com a densidade de suas 800 páginas.

Seria “O novo espírito do capitalismo” francês demais? Talvez. Não está baseado numa pesquisa quantitativa que apresenta tantos dados novos como “O capital no século XXI”. Mas o assunto é bem “anglo”, com a leitura inovadora, no âmbito das ciências sociais mais politicamente engajadas, da bibliografia de administração ensinada nas principais “business schools” que seguem o modelo de Harvard, com milhares de MBAs que formam “empreendedores” planeta afora. Boltanski, antropólogo que já tinha feito sucesso escrevendo sobre justificações jurídicas, e Chiapello, professora de administração que estudara a relação de artistas com seus “marchands”, mostram como o capitalismo soube absorver as críticas pós-Maio 1968 (incluindo seus reflexos hippies no Vale do Silício) e agora recomenda organizações em redes descentralizadas, valorizando mobilidade e repudiando hierarquias tradicionais, para lidar com todos seus impasses.

Claro, os tempos mudaram. No primeiro parágrafo do “Novo espírito”, encontramos a “coexistência” de “um capitalismo em plena expansão” com “a degradação da situação econômica e social de um número crescente de pessoas”. Em Piketty – apenas 14 anos depois, e pós-crise de 2008 – não temos mais a expansão, ou temos o entendimento de que mesmo em tempos expansivos o capitalismo pode degradar os ganhos dos 99%. É um mundo muito mais sombrio, onde os fracassos cultuados nos manuais de administradores em rede se transformam num macrofracasso civilizacional. Parece que vozes como a de Kenneth Rogoff – ex-economista chefe do FMI que teve artigo publicado neste jornal lembrando “que, nas últimas décadas, bilhões de pessoas no mundo em desenvolvimento, particularmente na Ásia, escaparam de níveis de pobreza desesperadores” – não podem ser ouvidas sem desconfiança. Não há clima para nenhum otimismo no debate de ideias atual? Qual será a próxima bibliografia para business schools que deixaram de acreditar que as redes funcionam?

Nada está claro. Vale a pena ler Piketty junto com Boltanski/Chiapello, ao mesmo tempo. Livros enormes, eu sei. Nossos problemas atuais não são menores.