metafísica

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 04/06/2010

Já passamos pelo fim da história e por aquilo que Lyotard – em A Condição Pós-Moderna – apelidou de “incredulidade” diante das ideologias que um dia deram sentido a nossos sonhos de revolução. Parecia, consequentemente, que não mais teríamos grandes vedetes filosóficas, que ficaríamos empacados em algum momento logo-após-1968, guiados para sempre por Deleuze, Derrida e algum discípulo de Wittgenstein. As mais recentes estrelas do pensamento não podem ser classificadas exatamente como filósofos. Bruno Latour é antropólogo, encantado por Pasteur e pela vida nos laboratórios. Slavoj Zizek é psicanalista e escreve sobre Mao ou Berlusconi. Tudo muito mundano.

Sem história e futuro, tudo indicava também que viveríamos sob o fim da metafísica, aquela parte da filosofia que estuda a essência do mundo, ou quer desvendar o Absoluto. Mas eis que surge o livro Depois da Finitude (Seuil, Paris, 2006), de Quentin Meillassoux. Suas primeiras palavras: “A teoria das qualidades primeiras e segundas parece pertencer a um passado filosófico irremediavelmente caduco: é tempo de reabilitá-la.” O sucesso do livro é crescente, levando a crer que em breve voltará a ser permitido, e cool, fazer perguntas como “De onde viemos?” ou “Por que existe alguma coisa no lugar de nada?”

Depois da Finitude quer escapar do “correlacionismo”, tradição filosófica que diz que só podemos conhecer a relação entre quem sente/pensa e a coisa sentida/pensada, e não os termos dessa relação. Tentando explicar melhor: o sabor da cenoura só aparece quando algum ser humano morde a cenoura e seu cérebro produz a sensação de gosto característica, que não havia na cenoura sozinha, pré-mordida. Seria então impossível conhecer como seria o real se não houvesse o pensamento humano. Meillassoux – estou simplificando irresponsavelmente seus argumentos, que são muito sofisticados e exigem leitura paciente mas recompensadora – pensa contra essa impossibilidade: quer encontrar uma maneira não-ingênua de chegar ao “em-si” das coisas, atingindo o próprio Real sem o Homem, ou o que era o mundo antes do aparecimento do pensamento. Por isso se autodenomina “materialista especulativo”. Porém, muitas vezes é chamado simplesmente de metafísico, não como xingamento e sim como – quem diria – sério elogio.

Meillassoux não está pensando sozinho. Em 2007, participou, em Londres, da conferência Realismo Especulativo, dialogando com outros fundadores da nova onda filosófica: Ray Brassier, Ian Hamilton Grant, Graham Harman. São todos parceiros da revista Collapse, que hoje é referência cult, com sólidas conexões no mundo inteiro, da editora australiana re.press ao filósofo iraniano (!) Reza Negarastani. A revista quer “desafiar as ortodoxias institucionais e disciplinárias e colocar em movimento novas sínteses”. Por isso cada edição traz também colaborações, sempre muito chiques, de artistas plásticos como Jake e Dinos Chapman, escritores como China Miéville (guru da New Weird Fiction), até chegar ao astrobiólogo Milan Cirkovic.

O mais interessante dessa movimentação filosófica é que sua difusão e grande parte de seu desenvolvimento acontecem na internet, espalhadas em dezenas de blogs, como o Heresia Especulativa. Isso contradiz a tese de que a comunicação online estaria condenada a privilegiar um pensamento rápido e rasteiro. Há espaço para tudo e mais um pouco na rede. Os posts dos heréticos especulativos não poderiam ser mais densos (densidade potencializada por muitos links!) discutindo Hegel, Badiou e transcompanhia, além de transformar em pequenos hits da rede (metafísica é pop!) textos como Dilema Espectral, de Meillassoux.

Nesse texto, bem curto, são lançadas idéias que parecem sair da ficção científica mais delirante. Tudo parte de Hume para chegar à “contingência radical das leis naturais”. Claro: existe lei da gravidade e todas aquelas outras com fórmulas que somos obrigados a decorar na escola. Elas têm se mantido estáveis, há milhares de séculos, mas essa imutabilidade até agora não é garantia de que nunca possam mudar. Em termos mais contundentes, apesar de mais opacos, ou metafísicos: a estabilidade atual não implica na sua necessidade. Como se isso não bastasse, Meillassoux tem a coragem de perguntar: se um Deus redentor não existe hoje, com uma mudança hipercaótica das leis naturais, que em tese pode acontecer a qualquer momento, Ele poderia vir a existir, trazendo paz para todos os espíritos, vivos e mortos? Incrível? Extraordinário? O Realismo Especulativo pode estar não apenas reabilitando questões metafísicas há tempos fora de moda: a filosofia pode estar voltando a ser tão profundamente divertida ou aterrorizante, com aqueles mitos de cavernas e banquetes, quanto foi para os gregos.

NOTÍCIAS DO OVERMUNDO – Belo Horizonte já tinha nos presenteado com o Sepultura. Agora, uma nova turma transforma a cidade na capital brasileira do barulho. São bandas como Retrigger, Ü e FadaRobocopTubarão (autora do clássico Receita de Pudim de Leite Condensado). Expoente da cena, o Grupo Porco de Grindcore Interpretativo acaba de lançar seu segundo disco, que tem até uma versão furiosa para Segura o Tchan. Descrição: “Visceral como um padre pedófilo, pesado como uma dobradinha e, ao mesmo tempo, suave e delicado como a primeira menstruação de uma cotia.” O resultado, juro, é formidável. Confira aqui.

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