Archive for the ‘França’ Category

saudade

28/06/2020

Quem lê este blog há muito tempo sabe que sou fã de Benjamin Biolay. Mesmo assim, não tive tempo ainda para escutar o disco que lançou na sexta-feira. Ouvi apenas a faixa de encerramento, curioso com seu título Interlagos (Saudade). Estava receoso, o álbum se chama Grand Prix. Nunca tive paixão por Fórmula 1. Então me aproximei com distanciamento sociocultural cuidadoso, mascarado. Mas logo a canção me conquistou, principalmente quando entra a voz de Bambi (que herança, ser filha e neta de gente tão brilhante) no refrão que fala em saudade, usando a palavra da língua portuguesa, e cantando que chora um Oceano Índico. Isso já seria o suficiente para me deixar totalmente satisfeito. Porém, há mais beleza: quase no final da letra surge o verso para São Paulo: “nesta cidade maior e menos suja que minha vida”. Que nossas vidas. Nesta Sampa francesa em quarentena.

identidades

19/05/2018

Sonhos foram terrenos férteis para o pensamento alegre de Clément Rosset. Houve aquele de uma noite de maio, que deu no livro sobre o desejo. Houve, antes, outro sonho importante, na manhã de 28 de janeiro de 1998. Nele, o próprio Clément Rosset falava para um círculo de conhecidos sobre a diferença entre seu eu oficial, dos documentos, e seu eu “real mas misterioso” – pregando portanto a existência de uma diferença entre a identidade social, falsa, e a identidade pessoal, verdadeira. O espanto de aparecer em seu próprio sonho pregando uma ideia que sempre repudiou foi motivo para, quando acordado, escrever um de seus livros que mais gosto, “Longe de mim“. São apenas 80 páginas, que defendem com clareza e firmeza a alegria de não existir identidade pessoal nenhuma, mas sim – e somente – processos de produção de identidades sempre sociais, muitos e mutantes para cada pessoa, a partir das relações com outras pessoas ou grupos de pessoas.

Nada, então, de unidade. Somos, como disse Montaigne, feitos de “peças remendadas”. O efeito de conjunto é uma ilusão, produto da vontade – verdadeira – de ilusão, desse tipo de ilusão fundamental, em sua tentativa desesperada de criar fundamentos sólidos onde não é possível existir solidez alguma. Tudo ganha a aparência de um filme de terror bem delicado: “A identidade pessoal é algo como uma pessoa fantasma que assombra minha pessoa real, frequentemente próxima mas jamais tangível nem atingível […] Meu fantasma o mais familiar sem dúvida, mas enfim meu fantasma; e um fantasma nunca é mais que um fantasma mesmo se ele o visita sempre e decide algumas vezes a tomar seu lugar”. Quem parece ter personalidade firme, previsível, tem um fantasma dominante, forte ou domesticado, sempre disponível, nos mais variados ambientes, circunstâncias e companhias. Gente talvez confiável, mas sem graça.

Pois identidade de gente normal, de carne e osso, é resultado de apropriação, remix, cut and paste de vários traços psicológicos, memes vindos de fora para colonizar seus (nossos) cérebros. Até virar algo “original”:  “Copie, e se assim copiando você permanecer você mesmo, é que você tem algo a dizer, esse é o conselho que dava Ravel para seus raros alunos. A fórmula parece poder ser tomada em sentido mais amplo e se aplica à psicologia em geral: copie, e se copiando você permanecer você mesmo, é que você conseguiu forjar uma personalidade, algo como a roupagem (pelo menos aparente) de um eu.”

Em determinadas situações é vantajoso ter essa fantasia ou fantasma de personalidade. Porém, nem sempre. Na conferência mexicana “Quem sou eu?”, que veio a fazer parte do livro “Tropiques“, Clément Rosset terminava falando da astúcia de Ulisses, que escapou do ciclope Polifemo dizendo: “eu sou ninguém”. Parece truque, enganação. Não é, apenas: “a trapaça é ao mesmo tempo um triunfo da verdade; pois Ulisses, como todos nós, não é outro, no seu foro íntimo, que ninguém.”

Toda a filosofia de Clément Rosset pode ser considerada um guia para todos nós enfrentarmos esse tipo de verdade radical. Sem empulhação, ou trapaça de outro nível. Com alegria de seguir a verdade. Preciso citar aqui o epitáfio de Martinus von Biberach, que aparece no final de “Longe de mim” (e que apareceu antes em “A força maior“):

Eu venho não sei de onde,

Eu sou não sei quem,

Eu morro não sei quando,

Eu vou não sei para onde,

Eu me espanto de ser tão alegre.

*****

Pulo, espantado e alegre, e sem saber de nada, de Clément Rosset para François Jullien, especialista francês no pensamento chinês, ou especialista no pensamento europeu a partir do pensamento chinês. Eu nunca, em meu foro íntimo, acreditei em identidade pessoal, nunca quis possuir uma, assim como nunca acreditei também em identidade cultural. Por isso fiquei alegre quando encontrei o livro, também de cerca de 80 páginas, “Não há identidade cultural” de François Jullien. Leva as verdades radicais de “Longe de mim” para outro ambiente, talvez mais ressonante diante de debates políticos de agora. Com propostas bem engenhosas para mudar o rumo da conversa…

Vamos ao que interessa. Primeiro, um resumo de todo o resto: “no lugar da diferença invocada, eu proponho abordar as diversas culturas em termos de afastamento; no lugar da identidade, em termos de recursos ou de fecundidade.” Se a diferença trabalha com distinção, classificação, criando mundos fixos, isolados, fechados uns para os outros, com fronteiras nítidas entre si, e regime de produção de sentido autossuficiente, o afastamento incentiva a exploração daquilo que ficou distante, a prospecção do território desconhecido, criando tensão entre o que está separado – é portanto uma figura mais aventureira, que não fica na defensiva. O “entre” que aparece no afastamento é ativo, convidativo. Na diferença identitária, cada um se vira para o seu lado, não se interessa pelo que ficou de fora. Tudo que está fora é uma ameaça. No afastamento, o distante está sempre visível, e atrai a atenção geral.

Difícil a posição afastada, claro. François Jullien lembra: não sabemos pensar o “entre”, aquilo que não é isso nem aquilo, o que não tem “em-si”, o que não tem essência. Os gregos pensaram o “ser” (fica mais bonito ou divertido em francês – a diferença entre “être” e “entre”), tinham horror ao indeterminado (aqui François Jullien simplifica o pensamento grego?) Talvez valha a pena o esforço. Sair do ser, ir para território desconhecido, arriscado. Estamos cercados pelas armadilhas do ser, cada vez mais assombrados por seus problemas bélicos. Como o Ulisses de Clément Rosset: seria outro triunfo da verdade: afinal, cultura vive em constante mudança e transformação: se não muda, se não tem ambiguidade, contradição, morre, desaparece sem deixar saudade.

Cultura é complexa, heterogênea. A simplificação – e a homogeneização forçada – é arma inútil para qualquer batalha, mesmo a mais bem intencionada. É preciso aceitar o desafio da complexidade. François Jullien: “como caracterizar a cultura francesa, fixando sua identidade? Sob a figura de La Fontaine ou de Rimbaud? Sob a figura de René Descartes ou de André Breton? A cultura francesa não é nem uma coisa nem outra, mas ela está, certamente, no afastamento entre as duas: na tensão das duas ou digamos no entre que se abre entre elas. É esse entre aberto entre elas – desmesurado, vertiginoso – que faz a riqueza da cultura francesa, ou diremos seu recurso.” Ou ainda, mais claro e importante: “o que faz a Europa, é que ela é ao mesmo tempo cristã e laica (e mais). É que ela se desenvolve no afastamento entre os dois: no grande afastamento da razão e da religião, da fé e do Iluminismo. No entre os dois, “entre” que não é compromisso, simples intermediário, mas coloca os dois em tensão, fortalecendo um e outro. Daí vem que a exigência de fé é afiada pelo afastamento com a exigência da razão (isso mesmo numa mesma mente: Pascal): daí vem a riqueza e o recurso que faz a Europa ou melhor que “faz Europa”. Diante do qual toda definição de cultura européia, toda abordagem identitária da Europa, não é apenas terrivelmente redutora ou preguiçosa. Mas ela também fragiliza, decepciona e desmobiliza.”

Afastamento não combina com pertencimento, divisão entre o que é meu e seu. Os recursos são criados muitas vezes em um ambiente específico (penso na maioria dos estilos musicais, quase sempre nascidos em cidades bem determinadas, ou mesmo em determinados bairros dessas cidades), mas depois se tornam disponíveis para todos (a house de Chicago nos EUA vai gerar o gqom de Durban na África do Sul e assim por diante). Sim, há necessidade de politicas culturais espertas: “defender os recursos, é prioritariamente ativá-los, mais que compreender esse “defender” apenas no modo amedrontado ou defensivo.” Os recursos param de existir, desaparecem, se não são ativados, promovidos, colocados em circulação.

Tudo tendo em vista a construção de um “comum”: “uma inteligência mútua pode emergir nesse entre tornado ativo.” Não se trata de relativismo fácil, de ignorar relações de poder (que torna todo afastamento ainda mais tenso). É sim a aventura de criação de estratégias ágeis, alertas (contra a inércia): “Nem misturando (confundindo) o diverso das culturas e das formas de inteligência, nem, o que dá no mesmo, o reduzindo a uma versão mais consensual e declarada mais “tolerante”: uma forma cultural é significativa por aquilo que ela produz de afastamento e de singular e, por conseguinte, de inventivo.”

Sendo assim, só resta uma saída: constante invenção.

noites de maio

16/05/2018

Continuando a celebrar o pensamento alegre de Clément Rosset: há 10 anos ele publicou um livrinho de menos de 40 páginas chamado “A noite de maio“. Tudo começou com um sonho tido numa noite de maio de 2007, no qual chegava em Nice de avião, vindo de Paris, e ia direto para a casa de Agnès Varda (várias interrogações aparecem no texto, ao lado desse nome – não fica claro se Clément Rosset a conhecia na “vida real”). Lá descobre que terá que fazer uma palestra sobre o desejo. Sua primeira reação foi entrar em pânico, pois não tinha nada preparado para falar. Outra pessoa o acalma sugerindo um roteiro: seria preciso dizer que o desejo é algo muito complexo, citando Proust, passando por Deleuze e terminando com Balzac. Ao acordar, Clément Rosset começou imediatamente a escrever o texto do livro baseado nas instruções que recebeu no sonho.

Óbvio, o início é a madeleine de Proust, detonadora de um prazer “extraordinário” e “delicioso”. Mas “sem noção de causa”, pois não estava relacionado com um único acontecimento, ou objeto, mas sim com uma experiência múltipla, uma pluralidade de emoções experimentadas em Combray. Nenhuma alegria é solitária, sempre vem acompanhada. Nunca podemos descobrir o que sozinho nos deixou alegre. Há em cada momento alegre uma aprovação geral da existência. Pois, afirma Clément Rosset, como uma onça de Guimarães Rosa: “Se eu estou feliz é porque tudo vai bem e porque tudo é bom; se estou feliz mas ao redor desta felicidade certas coisas não estão indo bem, é porque eu não estou.” Gosto dessa radicalidade, dificílima, que vai contra tudo o que parece em voga hoje, quando perdemos mundos a cada dia.

Indo adiante, com coragem: alegria e desejo são “termos complementares”, que estabelecem entre si uma “quase-identidade” – o que se diz de um se pode também dizer do outro. Então uma pessoa alegre é uma pessoa que deseja, e “no limite deseja tudo”. Uma pessoa deprimida chega a não desejar nada. Ou deseja uma coisa só, como ideia fixa, que pode desaparecer a qualquer momento. Boa lição: “o objeto desejável só é desejado quando acompanhado da perspectiva, mesmo fugaz, de uma multidão de outros objetos desejáveis”. E ainda: “ele é móvel, sem conseguir parar em lugar nenhum, como o mercúrio.” O desejo é necessariamente plural.

Esses são elementos importantes para uma também (ou talvez ainda mais) mercurial teoria da identidade, ou da ausência/impossibilidade de identidade, proposta por Clément Rosset, onde eu quero chegar. Mas fica para um outro post, talvez em outra noite deste maio.

Clément Rosset

02/05/2018

Na capa da edição mais recente da Philosophie Magazine, há chamada para uma “homenagem excepcional de 14 páginas” para Clément Rosset. Inocente, fiquei me perguntando: o que ele fez para merecer tal honraria? Abri a revista e logo descubro chocado: morreu. No dia 27 de março. Como não soube disso antes? Acho que nenhum jornal brasileiro deu a notícia. Via Google, chego a obituários em jornais franceses, espanhóis, um argentino. A resenha de livro (já) póstumo publicada no “Le monde” tem o título perfeito: “Clément Rosset deixou o paraíso”. Sim, ele sempre reafirmava: não existe paraíso depois da vida; o paraíso é aqui: “aquilo que é mais antigo, em mim, é a alegria de viver, a alegria quase miraculosa de existir.” Claro que não é bobo alegre, pateta: “‘Alegria’ e ‘trágico’ são duas palavras para dizer a mesma coisa.” Ou: “a alegria e o sentimento do trágico são indissociáveis.” Ou ainda, mais didaticamente: “O ponto de partida de minha filosofia é a consciência do trágico da existência: tudo vai desaparecer, a morte nos envolve e nós estamos ameaçados por nossa própria inconsistência. Ou recusa-se o trágico e a morte. Por essa recusa do trágico, portanto do real, paga-se muito caro. Inversamente, a capacidade de se admitir a parte trágica do real é para mim a pedra de toque da saúde moral e da alegria.” E para evitar deturpações: “Ser realista, em política, não significa ser conservador ou reacionário. Eu penso apenas que só há o real e que é a partir dele que é preciso trabalhar, e não a partir da concepção ilusória de um mundo perfeito, se nós queremos ter a chance de produzir melhorias.”

Parece fácil, mas não é. É preciso muita força, constante exercício, para encarar o mundo (o real, sempre aleatório e irracional) como ele é, sem anteparos tranquilizantes de “duplos” e ilusões, ou sem cair na tentação do niilismo e da ausência de desejo. Ser alegre é trabalho pesado cotidiano, que precisa do acompanhamento implacável de mestres. Então, como Clément Rosset nos abandona, logo agora, quando tudo ao redor fica mais terrível, cansativo, desestimulante, quando produzir alegria exige muito mais energia e colaboração?

Percebo, no trabalho de luto, como Clément Rosset me acompanhou em todos meus afazeres, como grande mestre, mas de maneira silenciosa. Acho que nunca foi citado neste blog. Não aparece na bibliografia dos meus livros. Porém, de certa forma, tudo que pensei gira em torno de seus ensinamentos, de sua alegria contagiante (li alegre quase todos os seus livros de 1980 para cá). Fui mais fundo na pesquisa em meus escritos, espantado com essa ausência nunca antes constatada, e acabei encontrando seu nome e suas palavras na minha dissertação de mestrado. Por algum motivo, essa passagem – que defendia o direito de fazer festa por nada, sem motivo-consequência, e contra tudo – desapareceu na hora da publicação no livro “O mundo funk carioca”. Chegou a hora de reaparecer:

“a alegria é, na sua definição mesma, de essência ilógica e irracional. Se pretendesse ser séria ou coerente, a ela faltaria para sempre uma razão para ser que fosse convincente ou simplesmente assumida e enunciável. A língua corrente fala melhor disso que pensamos geralmente quando diz “louca alegria” ou declara que alguém está “louco de alegria”. Expressões semelhantes não são apenas imagens; ela exprimem a verdade mesma: só há alegria louca – todo ser humano alegre é necessariamente e a sua maneira irracional.”

verdade e pureza

11/02/2018

Minha última leitura de 2017 foi “Íon”, de Eurípedes. Conheço pouca coisa sobre tragédias gregas. Vi e li várias, para tentar ter contato mais próximo com aquele pessoal que estava formatando o sistema operacional dos cérebros ocidentais. Ou estava inventando o Ocidente (e a crítica do Ocidente). Mas não me aprofundei em nada. Então posso estar falando enorme bobagem ao identificar em “Íon” uma maneira diferente de ser trágico. Para ser mais ousado na minha ignorância: é talvez a menos trágica da tragédias (e não estou pensando na implicância de Nietzsche contra Eurípedes). Nos anfiteatros da Grécia Antiga, o mais comum era acompanhar trajetórias do ruim para o pior. Deuses e/ou o destino não tinham nenhuma pena de quem estava em cena. Vários raios costumavam cair nas mesmas personagens, sempre dilaceradas por sofrimentos – muitas vezes gratuitos – horripilantes. Em “Íon” esperamos castigos e desastres, mas tudo vai melhorando, melhorando… E o final é até feliz.

Fiquei espantado e curioso. Fui procurar sobre “Íon” na internet. Não há muita coisa. Mas encontrei link me lembrando que várias aulas do penúltimo curso de Michel Foucault no Collège de France foram justamente sobre essa peculiar tragédia. Está tudo publicado no livro “O governo de si e dos outros”. Sua leitura foi uma das minhas misturadas atividades nestas conturbadas primeiras semanas de 2018.

Sempre fiquei maravilhado com essas aulas de Foucault. Privilégio para quem podia acompanhar a evolução de seu pensamento, ali em tempo real. (Hoje seria ainda melhor: o Collège de France disponibiliza todos os seus cursos online, em vários formatos. Antes da internet, o acesso exigia viagem para Paris e a batalha para conseguir lugar numa sala apinhada [a venerável instituição francesa sempre foi adepta dos códigos abertos: qualquer pessoa pode frequentar suas salas de aula]. Muita gente documentava as falas de Foucault em gravadores cassettes, e as fitas circulavam por correio não virtual mundo afora. Tudo era bem mais trabalhoso.) Já ouvi relatos – nunca estive lá – dizendo que o estilo de apresentação era enfadonho, voz “meio metálica”. Era necessária muita atenção para acompanhar o que importava: a aventura das ideias, a paixão por descobertas de pesquisas dos dias anteriores, que nem Foucault sabia onde iam dar (no curso seguinte, e o último de sua vida, publicado em “A coragem da verdade”, encontramos: “gostaria de captar, de tentar mostrar para vocês e mostrar para mim mesmo”… Ou: “mas me deu vontade agora, um tanto excitado com o cinismo no decorrer destas últimas semanas, de propor o seguinte para vocês”… E ainda, de dar nó na garganta, por sabermos agora que ele morreria poucos meses depois desta aula: “são coisas que ainda não analisei, que seria interessante estudar em grupo, em seminário, poder discutir. Não, não tenho condições atualmente – pode ser que venha a ter um dia, talvez nunca – de dar um curso na devida forma sobre esse tema da verdadeira vida”). Bom ter tudo isso transcrito com tanto cuidado e várias notas em livros, que podem ser estudados com toda a calma. (Foucault voltou ao centro do debate intelectual agora por causa da publicação do quarto volume, inacabado, de sua “História da sexualidade”. Virou número especial da “Philosophie magazine” e chamada de capa em muitas outras revistas francesas. Em “L’histoire”, há entrevista com seu editor Pierre Nora que aborda seu veto para publicações póstumas. Sobre os cursos a posição não era tão categórica, apesar de modesta: ali “haveria pistas de trabalho suscetíveis de interessar, mas isso lhe parecia muito trabalho para pouca coisa”. Ainda bem que o muito trabalho foi feito.)

A reflexão sobre “Íon” ocupa cinco aulas, um quarto do curso inteiro. Até Foucault parece surpreso com isso. Ou envergonhado: pede desculpa por falar “tão demoradamente” sobre essa tragédia. Diz ainda: “não demora a deixá-la [a peça] de lado, fiquem sossegados”. E chega a comemorar no final de uma aula: “Pronto, terminamos ‘Íon’.” (Para depois ainda voltar a “Íon” na aula seguinte…) Que ninguém se deixe enganar por esses recursos retóricos: nada aqui é chato. Não vou tentar resumir a leitura de Foucault. Vale a pena todo mundo fazer sua própria leitura dessa leitura, acompanhar a argumentação detalhista, repetitiva para ficar totalmente clara, mas de tirar o fôlego por sua engenhosidade, e pelo prazer evidente que Foucault demonstra ao seguir seu próprio raciocínio. Prazer contagiante. Mas resumo (mais uma ousadia minha, conheço quase nada de filosofia grega ou francesa etc.): a peça é lida como a batalha de Íon para conquistar cidadania plena em Atenas, para estar “na primeira fileira” dos cidadãos atenienses, aqueles que têm “o direito político de exercer em sua cidade a fala franca, que é chamado de ‘parresía'”. “Fala franca” é um “#ProntoFalei”, mas não de forma impensada ou apenas impulsiva. É uma coragem de dizer a verdade, doa a quem doer, inclusive colocando sua própria cara a tapa. E “parresía”, para muitos gregos, rima bem com democracia. Uma não pode viver sem a outra.

A argumentação é complexa. Toda essa preocupação com a verdade em Foucault surpreendeu ou desagradou vários dos seus discípulos (os caminhos de seu pensamento tomavam rumos imprevisíveis – como antes, no curso de 1978-1979, transcrito no livro “O nascimento da biopolítica”, quase que inteiramente dedicado a uma genealogia do neoliberalismo – levando Hayek, Gary Becker ou mesmo Giscard D’Estaing muito a sério -, quando o debate central no mundo intelectual ainda era sobre algo em torno do eurocomunismo… Tudo passou a fazer sentido décadas depois). Importante constatar: Foucault não passou a defender o conceito de uma verdade objetiva. Vários momentos desses e de outros cursos dos últimos anos de sua vida lembram a canção de Marisa Monte: “Verdade, uma ilusão”. Exemplos: em “Íon”, “a verdade não é dita sem trazer com ela uma dimensão, eu diria um duplo de ilusão que é ao mesmo tempo seu acompanhamento necessário, sua condição e sua sombra projetada. Não há dizer-a-verdade sem ilusões” (página 84 da edição da Martins Fontes). Ou em poucas outras palavras: “um dizer-a-verdade que, por um lado, deixa reinar sobre a verdade toda uma parte de ilusão, mas, graças a essa ilusão, instaura a ordem em que a palavra que comanda poderá ser uma palavra de verdade e de justiça, uma palavra livre, uma ‘parresía’.” (p. 136)

Claro: pairando sobre tudo está a sombra de Nietzsche (ver o delicioso “Nietzsche e a verdade”, de Roberto Machado, que ganhou edição revista em 2017, de onde retiro a seguinte afirmação: “Se a arte tem mais valor que a ciência, e é sempre utilizada por Nietzsche como paradigma de sua crítica da verdade, é porque, enquanto a ciência cria uma dicotomia de valores que situa a verdade como valor supremo e desclassifica a aparência, na arte a experiência de verdade se faz indissoluvelmente ligada à beleza, que é uma ilusão, uma mentira, uma aparência.” E palavras de Nietzsche citadas por Roberto Machado: “A verdade é feia: temos a arte a fim de que a verdade não nos mate” ou “deve-se querer até a ilusão – isso é o trágico”.) Mas não ouso entrar nesse terreno complicado, que não domino nem como principiante. Quero pular logo para o momento de “O governo de si e dos outros” que mais chamou minha atenção nessa minha leitura descuidada de verão trepidante. Para Íon ter direito a “parresía” em Antenas, ele precisava provar que era ateniense puro. E aqui aparece algo que talvez me interesse mais do que o “valor da verdade”: o “valor da pureza” e a condenação de qualquer mistura.

Foucault mostra como “desde meados do século V, desde 450-451, uma legislação própria de Atenas […] não reconhecia o direito de cidadania aos filhos nascidos de um pai ateniense, mas de mãe não ateniense.” Mesmo sendo algo recente no tempo de Eurípedes, “seguindo um procedimento habitual nessas reelaborações lendárias, valorizasse essa lei como extremamente antiga”. Então Íon acredita piamente: “o povo autóctone e glorioso de Atenas é puro de toda mistura estrangeira.” No resto desse curso, e no próximo (o de “A coragem da verdade”), mesmo quando deixa Íon em paz, e analisa os argumentos divergentes tanto de Platão (e dos neoplatônicos cristãos) como dos cínicos, Foucault parece não se dar conta (posso estar errado, não li tudo com a devida atenção…) de que a valorização da pureza unifica tudo, para além do valor da verdade (e da vida verdadeira). Talvez os dois valores estejam confundidos (ou misturados): “Primeiro valor da palavra “alethés” (verdadeiro), não apenas o que não é dissimulado, mas o que não recebe nenhuma adição e suplemento, o que não sofre nenhuma mistura com outra coisa além de si mesmo”. “Alethés” é também o reto, o anti-barroco, contra rodeios e dobras, e nesse sentido mais uma vez “se opõe à multiplicidade e à mistura.” Então, mesmo no “escândalo da verdade”, no “teatro visível da verdade” dos cínicos (ou nos corpos dos filósofos cínicos), ou na sua dramaturgia de “pobreza ativa”, encontramos essa valorização de uma “vida sem mistura, da vida pura e autossuficiente”, “da vida independente de tudo”, mesmo que isso signifique feiura ou humilhação (e, no extremo, escravidão).

Estou, desde o início, rodeando quatro páginas de “A coragem da verdade” (de 163 a 166), o momento em que Foucault fala (e avisa: “Desculpem esses sobrevoos, são anotações, é trabalho possível”) – bem adequado para o dia de hoje – em tempos de folia nas ruas (não sei se esse tema aparece em outros de seus livros e cursos – li também o “Impressões de Michel Foucault”, que Roberto Machado lançou no ano passado, com vários trechos descrevendo as viagens de Foucault pelo Brasil – ali nada deixa transparecer um interesse especial pelo lado carnavalesco da vida brasileira…). O carnaval é visto como um veículo do “escândalo da verdade” no mundo medieval e cristão estudado por Bakhtin. O que desemboca na identificação do “problema das relações entre a festa e a vida cínica (a vida no estado nu, a vida violenta, a vida que escandalosamente manifesta a verdade).” Isso para pular rapidinho para o esboço de uma teoria da arte moderna como antiplatonismo, com sua “verdade bárbara” e sua “coragem de assumir o risco de ferir”.

E isso porque, na aula, Foucault pulou trecho do manuscrito (havia sempre um manuscrito como base para todas as aulas) que poderia servir de base para outro curso, talvez sobre o niilismo, tentando dar respostas para a seguinte pergunta: “qual a vida necessária a partir do momento em que a verdade não seria necessária?” Ou: “se nada é verdadeiro, como viver?” Foucault ensaia uma pista: “o cinismo não para de lembrar o seguinte: que muito pouca verdade é indispensável para quem quer viver verdadeiramente e que muito pouca vida é necessária quando se é verdadeiramente apegado à verdade.” Mas eu, metido, acrescento outra pergunta: essa vida verdadeira, da verdade pouca, tem que ser necessariamente uma vida pura, sem mistura? Que festa ou carnaval é possível sem mistura, sem rodeios e dobras? Festa pobre e reta, anti-Joãzinho-Trinta?

Se numa outra encarnação eu nascer erudito uma das minhas tarefas será produzir essa genealogia da pureza. Teria que citar aquele início das “Metamorfoses” de Ovídio onde imperam “as sementes discordantes de coisas desconexas”. Tempos primordiais onde “num mesmo corpo o frio guerreava o quente, o úmido lutava com o seco, o mole com o duro, o peso com a ausência de peso” – ou seja: estava tudo misturado. Foi preciso que divindade ou natureza mais benigna (para Ovídio) separasse as coisas para que o mundo existisse. E esse horror ao misturado, essa valorização da pureza, foi parar na Segunda Lei da Termodinâmica, segundo a qual sistemas misturados não produzem nada de interessante, e que mesmo informação precisa separar alhos e bugalhos para ser útil.

Contra tudo isso, teria que construir altar para o Eros de Diotima (descrito por Sócrates naquele estranhíssimo “Banquete” de Platão), um dos poucos seres misturados-híbridos-mestiços com real importância na história do pensamento ocidental, filho da Pobreza e do Recurso (sim havia uma mendiga chamada Pobreza e um cara chamado Recurso, esse por sinal filho da Prudência), ao mesmo tempo mortal e imortal, sempre “entre” todas as coisas.

Ou, se a necessidade do puro for condição para nosso pensamento demasiadamente humano, teria que construir uma inteligência artificial que conseguisse pensar de outra forma, fora da ordem (pois não precisa operar a partir de nenhuma ordenação) e capaz de processar um outro tipo de informação misturada que nem conseguimos imaginar qual seria ou como seria possível…