texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 25/07/2014
Diagnóstico simples: perdi a sintonia com a nação. Não tenho a menor paciência para escrever sobre os assuntos do momento, aqueles debatidos por todo mundo nas redes sociais. Detesto o tom histérico que domina a tsunami opinativa, com linchamentos coletivos esquecidos na semana seguinte. Mais importante: tenho maior interesse por outros assuntos, que – apesar de vitais – não são tratados com a devida atenção. A missão desta coluna é assumidamente um tanto solitária: divulgar novidades conhecidas por pouca gente. Torcer para que possam inspirar outras inovações. Sem pressa. Sem esperar que se transformem em trending topics.
Por isso relutei em escrever sobre a Copa. Nunca acompanhei nenhuma Copa. Sempre fui considerado ET por causa disso, mas consegui driblar a pressão social avassaladora para mudar de comportamento (o que não me faz melhor ou pior do que ninguém). Gosto do clima de festa de multidão, assim como de réveillon e carnaval, mas assistir a jogo do início ao fim para mim é tortura. Por isso, antes do início da Copa, até publiquei por aqui texto que encarava a ausência de ruas enfeitadas como indício, pessoal e socialmente libertador, de diversidade cultural, ou desenvolvimento econômico nacional. Claro que – é minha tese – a paixão por futebol sobreviverá, mas sem precisar ser imposta para toda população. O país não seria mais uma vila, comandado por sentimento homogêneo.
Porém. quando os jogos começaram, fiquei com vergonha de abordar outros temas nesta coluna. Assumi meu erro de avaliação precipitada: imperava clima de ordem unida emocional, com a nação presa na estreita montanha russa de alegrias e tristezas coletivas. Com o final da Copa (e escrevendo novamente fora de época), assumo o erro do erro (repito: viva o erro!): tudo aquilo já parece ter acontecido num passado distante. O país na realidade se revelou mais diversificado do que aparentava. A derrota de 7×1 não vai virar, espero, uma final de 1950 (esse mané “trauma” já deu o que tinha pra dar). Pode ser esquecida rapidamente como a polêmica que encantou o Facebook da semana passada?
Talvez, afinal, eu não tenha perdido a sintonia com o Brasil. Pois não existe mais “o” Brasil, ou “um” povo brasileiro, interessado nas mesmas coisas ao mesmo tempo (por exemplo: na época da Copa houve outros megaeventos país afora, como o São João de Campina Grande e Caruaru, ou o Festival de Parintins, isso só para citar os mais óbvios). A grande mídia e as grandes marcas (que sustentam o mercado de mídia com publicidade) parecem não ter se dado conta dessa grande transformação ou não sabem lidar com um mundo cada vez mais complexo, com múltiplos interesses simultâneos. Por isso precisam bombar artificialmente uns poucos acontecimentos para atrair à força a atenção daquilo que antigamente se chamava grande público. E o investimento é tão grande que vira profecia autorealizável: impossível não criar manchetes ou comoções populares, incluindo recordes de mensagens nas redes sociais. Mas cola menos e menos: um jogo do Brasil sua para dar 40 pontos de audiência na TV aberta.
Se essas minhas insinuações fazem algum sentido, o tal “choque de realidade” que o Brasil vive depois do final da Copa deve ser interpretado também de maneira pouco habitual. A realidade é bem mais rica, com surpreendentes micropossibilidades plurais, do que a promessa de alegria uniforme gerada pela “ilusão” de um evento de massa, reproduzido em todos os “canais”. Nada contra ilusões. Canto com Marisa Monte, “verdade, uma ilusão”. Ou sigo Nietzsche no seu sermão contra a prevalência que Sócrates dá à verdade em detrimento da ilusão. Apenas me entedia a ilusão única, hegemônica. Ilusões sempre há de pintar por aí. Elas levam o mundo adiante, em muitos caminhos conflitantes diferentes.
Um tema sempre recorrente nesta coluna: precisamos desenvolver novas estratégias para lidar com um mundo que agora tem abundantes recursos de comunicação e produção cultural. Isso não é otimismo tolo. Já que falei de Nietzsche, vale a pena repetir estas suas perguntas, que ganham nova pertinência para nosso cibermomento: “Existe, porventura, um pessimismo da força? Uma inclinação intelectual para o duro, o mal, o problemático da existência, proveniente de saúde transbordante, de plenitude de existência? Há, por ventura, um sofrimento em virtude de superabundância?” Se há necessidade de pessimismo, que pelo menos seja um pessimismo transformador, que tire proveito da – e incentive a – diversidade trágica (e festiva) da vida.
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Tentando fugir da Copa, escrevi aqui sobre Capicua, rapper portuguesa. Boa surpresa: ela se apresenta no Rio na próxima semana, no Terra do Rap, festival que vai produzir até uma mix tape ao vivo, misturando de verdade Angola, Brasil e Portugal.