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LKJ

21/03/2015

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 20/03/2015

Linton Kwesi Johnson (LKJ) se apresenta hoje no festival Back2Black. É sua primeira vez em palco carioca. Portanto: noite de gala. Não se atrase no trânsito de sexta-feira na Barra. O show começa às 21 horas, antes de Planet Hemp e Damian “Jr. Gong” Marley. Prepare seu corpo (incluindo o cérebro) para ser massageado pelo dub da banda de Dennis Bovell acompanhando a voz grave e a poesia  de LKJ. Será ocasião rara para contato imediato com um dos trabalhos mais criativos das artes atuais.

Para quem gosta de credenciais: sua poesia foi premiada com o Golden PEN, honraria concedida para seleto grupo de escritores que inclui Harold Pinter e Doris Lessing. Também foi o segundo poeta vivo – e o primeiro poeta negro – a ser publicado na série Modern Classics da editora Penguin. Seus discos são igualmente considerados clássicos. Por exemplo: o site AllMusic  elege “Forces of Victory” (1979) “um dos mais importantes discos de reggae já gravados”. Na minha opinião, qualquer coletânea de grandes sucessos de LKJ deveria figurar entre os melhores disco de todos os tempos e todos os estilos. Sempre preciso reescutar “Making History” para entender as transformações do mundo. Mesmo com décadas de vida, os poemas/letras continuam urgentes, e o instrumental produzido por Dennis Bovell tem som de futuro.

Poesia e música estão plenamente integradas nas obras de LKJ, em termos estéticos e políticos (inclusive na indumentária, de extrema elegância, estilo PhD da rebelião). Tudo ali é radical, no melhor sentido. Por isso é interessante acompanhar sua entrada no “cânone”, para desconforto de muitos ocidentalistas que não suportam nem os primeiros acordes de “Inglan is a Bitch”. “Inglan” é a grafia de patuá jamaicanos para “England”. “Bitch” ainda precisa ser traduzida por palavrão ou, depois de tantos anos de funk carioca, “cachorra” dá conta do recado? Existe ousadia maior que um imigrante dando lições com tal autoridade moral para sua ex-metrópole?

A trajetória biográfica de LKJ, e de sua parceria com Dennis Bovell, reflete as sucessivas reviravoltas daquilo que foi o Império Britânico ou, generalizando, a Civilização Ocidental. Nascido na Jamaica, imigrou para a Inglaterra com 11 anos para se encontrar com a mãe que já trabalhava em Londres (Dennis Bovell nasceu em Barbados e foi para o Reino Unido com 12 anos). Morou no bairro de Brixton, caldeirão étnico, território de conflitos com frquente violência policial, inspiração para várias de suas poesias. Cursou sociologia no Goldsmith College. Teve contato intenso o braço britânico dos Panteras Negras e com o coletivo da revista “Race Today”, pioneira na análise política do racismo contemporâneo, e que publicou pela primeira vez seus poemas.

Na mesma época os jamaicanos criavam o reggae, e a nova música cruzou rapidamente o Atlãntico, emplacando vários sucessos nas paradas inglesas. Em 1970 Dennis Bovell, que também foi DJ no clube Metro, já tinha formado o grupo Matumbi, e nos anos seguintes vai inventando maneiras de produzir um dub cada vez mais pesado, sofisticado, vanguardista. Quando LKJ e Dennis Bovell começam a lançar discos juntos, nasce a “poesia dub”, levando as experiências dos DJs jamaicanos (viva U-Roy!) para outros territórios estéticos e outras militâncias políticas. O resto é História, com H maiúsculo, que continua no Rio esta noite.

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Nota familiar: uma das maiores façanhas dos Paralamas do Sucesso foi juntar as vozes de Tom Zé e LKJ na faixa “Navegar impreciso” do álbum “Severino” (1994). A letra, em português e inglês, lamenta a atitude de um Portugal seduzido pela Comunidade Econômica Europeia, na época fechando as portas para imigrantes (muitos dentistas!) brasileiros. Apesar de tudo, havia carinho (assumidamente ingênuo) na acusação. Herbert me contou que LKJ, depois de gravar sua surpreendente participação (nossa admiração por ele era imensa – era tanta nobreza artística que ele parecia inacessível), comentou que gostaria que o mundo mudasse para poder escrever algo com sentimento semelhante para a Inglaterra. Não deve ter sido exatamente isso o que ele ou Herbert disseram, mas é assim quero guardar na memória. O mundo mudou muito de lá para cá? Neste século outros “riots” tocaram fogo nas ruas londrinas, muito parecidos com os de Brixton, décadas atrás. Portugal é que vive o fim do sonho do Euro. E talvez agora tenha oportunidade de se descobrir africano. Tema para conversa com José Eduardo Agualusa e Ângelo Kalaf (os melhores “lusófonos” que há), também no Back2Black, antes do show de LKJ.

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Mais familiar ainda: parabéns para minha mãe, que hoje completa 80 anos.

samba francês

22/11/2014

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/11/2014

A tradução francesa de “O mistério do samba” acaba de ser publicada pela Riveneuve, editora parisiense. É boa maneira de comemorar os vinte anos da minha defesa da tese que deu origem a esse livro. Já havia edições em inglês, italiano e japonês, mas fiquei todo este tempo torcendo pelo lançamento na França. Afinal, em suas páginas descrevo processo de construção de identidade nacional-popular brasileira que não teria acontecido, com toda sua originalidade moderna, sem a influência de Paris.

Sorte: meu tradutor foi o antropólogo Jérôme Souty, autor de “Pierre Verger – do olhar livre ai conhecimento iniciático” (editora Terceiro Nome), obra que já analisa invenções franco-brasileiras. Quem fez nossa apresentação foi Milena Duchiade, através do telefone fixo da sua livraria, a Leonardo da Vinci, um dos mais importantes pontos de encontro de ideias do Rio de Janeiro. Sempre que aparecia por lá, ela me incentivava a batalhar pela divulgação internacional dos meus livros. Como constatava minha inabilidade nesse território, Milena tomou a iniciativa generosa de me colocar em contato com Jérôme, que por sua vez conhecia os editores da Riveneuve e o programa para traduções da Fundação Biblioteca Nacional. Para nossa surpresa, a partir dali tudo aconteceu bem rápido, como nos encontros França/Brasil descritos em “O mistério do samba”.

Escrevi pequeno “avant-propos” para a nova publicação. São apenas cinco parágrafos (um deles lamentando a impossibilidade de Gilberto Velho folhear esta versão da tese que orientou), mas consegui citar novamente lista muito parcial de convidados que provaram feijoada (e compotas de bacuri) no apartamento parisiense de Tarsila do Amaral e Oswald de Andrade em 1923: Cocteau, Léger, Brancusi, Satie e, claro, Cendrars. Quando me deparo com esses nomes, o que mais me intriga é outro mistério, paralelo ao do samba: quem cozinhava? Oswald? Tarsila? E as compotas de bacuri (logo bacuri!), hoje ainda difíceis de serem encontradas no Rio de Janeiro? Eram bagagens de viagens em navios transatlânticos?

O “avant-propos” também inclui uma brincadeira que aqui transformo em pergunta implicante: como Woody Allen não incluiu essas feijoadas em “Midnight in Paris”? Há negros no filme “Manhattan”? Em “Midnight to Paris” eles aparecem em papéis secundários e cenas rápidas. Mas tudo ali se passa como se a gênese da era das vanguardas fosse resultado de “affair” privado entre artistas dos EUA e europeus, narrativa estabelecida como oficial nas histórias do modernismo (que apenas recentemente estão sendo reescritas para incluir mais diversidade), até outro dia percebido como criação daquilo que depois apelidamos de Primeiro Mundo. Perdemos assim a noção do grau extremo de multiculturalismo nas encruzilhadas artísticas da Paris do início do século XX.

Fico curioso para saber se os artistas brasileiros ou cubanos, entre muitas outras nacionalidades, que viviam em Paris naquela época eram vistos por europeus como mais exóticos ou periféricos do que os americanos do norte. Lembrando: só mesmo depois da Segunda Guerra é que os EUA se transformaram em Império, vendendo também sua arte como fenômeno global (por exemplo, e sem juízo de valor, fazendo com que Gertrude Stein tenha ficado mais conhecida mundo afora do que Oswald de Andrade). Mas qual era o lugar do “resto do mundo” em torno dos anos 1920? Eram tempos em que a “descoberta” da estética africana por Picasso já deixava de ser um choque e virava modismo que tornou possível que movimentos intelectuais em outras partes do mundo valorizassem aspectos “negros” de suas culturais locais. Sim, o jazz fez sucesso em clubes parisienses. Mas fez mais sucesso do que a infinidade de ritmos apresentados por bandas cubanas?

O choque vanguardista de Paris foi impulso decisivo para que os modernistas brasileiros descobrissem também a riqueza do nascente samba e das tradições africanas neste nosso lado do Atlântico. Um dia pretendo comparar melhor o que aconteceu por aqui com situações muito semelhantes em países da América do Sul e do Caribe. Tenho mais informações sobre o exemplo cubano. Um livro como “Nacionalizando a negritude – afrocubanismo e revolução artística em Havana, 1920-1940”, de Robin D. Moore (University of Pittsburgh Press, ainda não lançado no Brasil), revela a importância que a estadia parisiense teve para a geração de Alejo Carpentier voltar para Cuba valorizando uma cultura negra que era ainda percebida com vergonha ou preconceito pela elite local, até então encantada pela imaginária pureza branca da alta cultura europeia. Assunto de sobra para a próxima coluna.

sua história, nossa tragédia

13/07/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 12/07/2013

O MC Daleste – assassinado sábado enquanto se apresentava no palco de conjunto habitacional da Vila San Martin (periferia de Campinas, SP) – era um dos artistas mais populares do Brasil. Faça uma pesquisa no YouTube (atualmente o termômetro mais fiel da popularidade musical): contei agora 16 vídeos com mais de 2 milhões de visualizações, entre 750 mil resultados. Há de tudo, até reportagem sobre sua chegada ao aeroporto do Recife, recebido por representantes de fã-clube pernambucano. Provavelmente se não fosse outro vídeo, que documenta o instante do crime, sua morte brutal não teria sido noticiada pelos jornais. Entraria apenas para alguma estatística sombria de homicídios de garotos negros e pobres nas cidades brasileiras.

Mesmo assim não houve mensagens de pêsames da presidência ou do MinC, como ocorre habitualmente em caso de mortes de artistas populares. Se a mesma coisa tivesse acontecido com músico “de boa família” durante show realizado em bairros “nobres” não tenho dúvida: seria comoção nacional, com avalanche de tributos nos cadernos culturais. Não culpo jornalistas: a maioria não tinha a menor ideia do sucesso do MC Daleste. O funk paulistano é parte do mundo “invisível” da música mais popular hoje no país. Seu sucesso continua independente das instâncias tradicionais de consagração e divulgação que ainda vigoram na imprensa.

Só ouvi falar do MC Daleste recentemente, de forma bem pouco usual. Durante a exibição do “Esquenta!”, seus fãs organizavam mutirões no Twitter transformando hashtags pedindo a presença de seu ídolo no programa em TTs. Renato Barreiros, que é pesquisador do “Esquenta!” e meu guia para as novidades do funk de São Paulo, foi quem me deu a notícia do assassinato: “era hoje o maior ídolo da juventude de periferia de SP. Eu o conhecia bem, era um moleque bom, super alegre e que não tinha envolvimento com nada errado.”

Renato foi subprefeito da Cidade Tiradentes, zona leste de São Paulo. Na sua gestão começou a organizar festivais de funk na cidade, percebendo bem no inicio a importância que esse ritmo teria para a cultura paulistana. Foi momento de relação virtuosa entre poder público e música periférica, que não teve continuidade em governos posteriores. No Rio, o abandono/invisibilidade do funk foi o maior incentivo para a invenção do “proibidão”. Em São Paulo, onde a polícia passou a proibir bailes, há agora essa matança em série de MCs.

As letras de MC Daleste utilizavam procedimento comum em canções da Legião Urbana. Quando meu grande amigo Renato Russo cantava “eu moro com a minha mãe, mas meu pai vem me visitar”, não falava sobre sua família. Os versos “a violência é tão fascinante, e nossas vidas são tão normais”, de “Baader-Meinhof blues”, não devem ser interpretados como apologia ao terrorismo. Também eram muito variados os “eus” dos funks de Daleste. Em “Angra dos Reis” quem fala é adolescente em busca de “ostentação”. Em “Mãe de traficante” ouvimos: “oh meu filho, não faça mais isso pelo amor de Deus / não me faça passar por onde eu não preciso / siga meu exemplo, sou trabalhadora / mas infelizmente não fiz faculdade / foi dias e noites lutando e lutando / mas tudo o que eu tenho foi com dignidade”. Sempre retratos de gente que o compositor via ao seu redor. Não concordava necessariamente com o que estava cantando.

Daleste só foi explicitamente autobiográfico em versão improvisada de funk disponível no YouTube. O resultado é um dos depoimentos mais contundentes sobre a realidade brasileira contemporânea. Enorme vontade de viver. Transcrevo a letra, para que mais gente possa “passar adiante” sua história, nossa tragédia: “quando comecei / passava a maior dificuldade / e lá em casa era fora de realidade / é revoltante eu sei / senti o gosto do veneno / até os 13 anos de idade não tinha banheiro / e lá em casa as paredes eram de madeira / lembro como se fosse agora / quando abria a geladeira, não tinha nada para comer / a barriga vazia / mas amanhã eu vou pra escola / como na merenda / sábado e domingo é difícil / mas a gente aguenta / mas a fome não é nada / em relação ao principal / nunca entendi porque não tive a família normal / minha mãe e meu pai trabalhando / e meu irmão na escola / minha irmã mais velha na faculdade / mas a vida é foda / tudo ao contrário meu destino aconteceu / mas entreguei tudo isso na mão de Deus / e hoje estou aqui, passando adiante / cantando minha história pra quem gosta de funk / muito obrigado pela atenção de todos vocês / o resto dessa história venho cantar outra vez / eu sou vencedor na porra do bagulho / sou funkeiro sim e disso me orgulho / levo no peito as cicatrizes do preconceito”.

PS: sobre “apologia” é muito importante ver/ouvir com atenção os 10 minutos deste vídeo de 2011

assunção

29/12/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 28/12/2012

Depois da coluna da semana passada, sobre declarações “birraciais” de Barack Obama, tive tempo para conferir algumas das listas de “melhores” que congestionam a internet nesta época do ano. No New York Times, entre os 100 livros notáveis de 2012, encontrei “American tapestry”, de Rachel L. Swarns. É uma investigação, a mais detalhada possível diante da precariedade documental, sobre “a história dos ancestrais negros, brancos e multirraciais de Michelle Obama“. Apesar de minha convicção de que somos todos mestiços, fiquei surpreso: percebi que sempre pensei a primeira dama dos EUA como puramente negra. Sua “condição racial” nunca era motivo para dúvida.

Lendo o artigo que deu origem ao livro, publicado também pelo New York Times em 08/10/2009, descobri que meu espanto foi compartilhado por outras pessoas. As atenções estavam voltadas para o encontro mais improvável dos pais do presidente – uma americana branca apaixonada por um estudante africano negro. A família de Michelle – há várias gerações apenas americana – seria bem mais comum, “sem interesse”. O modo dominante de se pensar raça nos EUA – como escreveu Caetano Veloso (para ler a letra completa, clique aqui, depois na capa do disco “Circuladô – Ao Vivo”, depois em “letras” e depois na segunda faixa “Americanos/Black or White”), “para os americanos, branco é branco, preto é preto (e a mulata não é a tal)” – classificaria todos seus membros como pura ou simplesmente negros. Toda ambiguidade ou complexidade estaria assim afastada de antemão.

A busca genealógica pelos ancestrais da primeira dama americana chegou até Melvinia Shields, escrava que quando tinha 6 anos foi avaliada em 475 dólares. Por volta de 15 anos, ela deu luz a um menino de pele muito clara, Dolphus, que é o tataravô de Michelle. Testes recentes revelaram que seu pai era branco. Ninguém tem certeza, mas – como sabemos baseados na experiência brasileira – estupros de escravas negras por senhores brancos eram comuns. Dolphus escolheu se identificar como negro, e parte de seus descendentes terminaram nos bairros negros (o “South Side”) de Chicago, onde Michelle foi criada. Outras pessoas com tons de pele igualmente claros podem ter escondido sua condição de filhos de ex-escravos e estão na origem de famílias depois classificadas como brancas.

Em comentário para o New York Times, Annete Gordon-Reed, professora da Escola de Direito de Harvard (e provavelmente classificada como negra), escreveu: “Certas pressuposições combinam bem com o programa racial histórico do país: colocar todo mundo no seu “lugar” racial para determinar como deve ser tratado. Que uma pessoa com a aparência da sra. Obama não seja “toda” negra desestabiliza as coisas, especialmente ao considerar as implicações. São as pessoas com aparência “toda” branca realmente brancas?” Henry Louis Gates Jr., também professor de Harvard e um dos intelectuais negros mais famosos e polêmicos, foi além nas implicações: “em desafio à convenção legal e social, uma enorme quantidade de mistura racial acontece há muito nos EUA, sobre a qual nós, como sociedade, também há muito vivemos em profunda negação.”

Se a escolha dos “americanos” for, a partir de agora, não mais negar esse fato, só me resta fazer a saudação: bem-vindos ao mundo crioulo. É bom se preparar, essa revelação não significa a conquista da paz “racial”. Novos problemas aparecem, não mais resultados da simplificação e sim da complexidade. Como outro comentador do artigo de Rachel L. Swarns, John McWhorter (“senior fellow” do Manhattan Institute), pergunta: “quem supõe que uma pessoa branca que abriga sentimentos anti-negros vai mudar sua maneira de pensar ao descobrir […] que ela provavelmente tem um pouco de “negro” por causa dessas interações no passado?” A experiência brasileira é resposta clara: identificar-se como mestiço não traz nenhuma garantia de erradicação do racismo.

Tive a sorte de, nesse meio tempo, receber do Cláudio Prado, grande animador e agente anti-caretice da nossa cultura digital, um excelente presente: seleção de textos assinados por Mário Lúcio Sousa, músico e ministro da cultura de Cabo Verde. O espaço desta coluna em 2012 está acabando. Voltarei a comentar o pensamento do Mário Lúcio em 2013 (mas adianto: ele diz que Obama é presidente crioulo; ou mais, só é presidente por ser Crioulo). Fica aqui um texto (que também me lembra a boa filosofia de vida de Dona Canô), conselho para “americanos”, que são também meus votos de feliz ano novo: “Mestiços somos todos, porque ser mestiço é uma contingência genética. Mas o Crioulo não é a mestiçagem, não olha para a cor da pele, nem dos olhos, não olha para regiões nem para religiões, é uma conduta e uma assunção. É a assunção da cultura de um novo mundo, em que o homem não é do lugar de origem, mas de onde se sente bem, pode ter várias raízes e ser o outro na diferença.”

anjo moreno

22/12/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/12/2012

No domingo passado Sandra de Sá cantou “Olhos coloridos” no “Esquenta!” (sou um dos criadores desse programa). A canção, lançada em 1982, é cada vez mais atual. Paradoxalmente, pode também ser considerada datada. Sua letra diz: “a verdade é que você tem sangue crioulo”. O coro confirma enfático: “todo brasileiro tem!” Poderia ser hino de orgulho negro. O problema é que a palavra “crioulo”, para muitos ouvidos, é hoje classificada como xingamento. Além disso, ficamos sem saber se “Olhos coloridos” (com refrão “sarará-crioulo”) elogia a negritude ou a mestiçagem, ou mesmo equipara mestiçagem a negritude. Talvez, seu interesse mais atual resida nessa ambiguidade.

Regina Casé, antes de pedir para Sandra de Sá cantar essa música, fez o elogio de Barack Obama. A conexão, bem óbvia, foi ideia minha. Lembrei dois episódios do primeiro governo Obama, também carregados de intrigantes ambiguidades, confundindo categorias raciais e trazendo novamente para o discurso político palavras que muita gente gostaria de ver eternamente silenciadas. Regina falou o essencial no “Esquenta!”, aqui vai meu complemento.

Logo na primeira conferência de imprensa, antes da posse, Obama precisou abordar “questão de suma importância”: a escolha do cachorro que suas filhas levariam para a Casa Branca. Dois aspectos principais teriam que ser levados em consideração: o animal seria hipoalergênico (pois Malia, uma de suas filhas, é alérgica) e preferencialmente viria de “abrigo”. Nesse momento da entrevista, Obama lançou, como algo desimportante, comentário muito retuitado: sua família não estaria procurando uma raça específica, e o primeiro-cão poderia até ser “um ‘mutt’ como eu”. “Mutt” quer dizer vira-lata. “Primeiro presidente negro” soa imponente historicamente. Mas “primeiro presidente vira-lata”?

“Mutt” é termo ainda moderado, apesar de poder também ser traduzido como “estúpido”. Obama foi além, caindo em território racialmente mais “incorreto”. Na primeira entrevista que um presidente dos EUA concedeu para talk show matutino (o “The View”, da rede ABC, em 2010), Barbara Walters lhe lançou a seguinte provocação: por que se chama de negro e não de birracial (já que filho de negro com branca)? A resposta começou se referindo à “crise de identidade” vivida durante a juventude: “você sabe, parte do que compreendi foi que o mundo me via como afro-americano e isso não era algo do qual eu deveria fugir. Era algo que eu deveria chegar junto e abraçar.” Inesperadamente completou o raciocínio de forma perigosa: “E a coisa interessante sobre a experiência afro-americana neste país é que nós somos um tipo de povo ‘mongrel’. Quero dizer, somos todos meio misturados.”

Pronto, falou a palavra proibida. Talvez estivesse pensando novamente em “mutt”, mas saiu “mongrel”. Os dois vocábulos querem dizer a mesma coisa: “de raças misturadas”. Mas “mutt” tem ainda conotações fofas – “mongrel” é quase palavrão. Whoopi Goldberg, também no programa como entrevistadora, logo mandou um “yeah” de aprovação. Outros negros ficaram indignados. Glen Ford, editor executivo do site Black Agenda Report (“notícias, comentários e análises da esquerda negra”), chegou a falar em crime, afirmando que “mongrel” é um epíteto racial politicamente mais carregado do que “nigger”. Ninguém ligou muito para o complemento da fala de Obama, que expressava visão nova do ser humano como essencialmente mestiço: “Agora, isso é mesmo verdadeiro para a América branca também, mas nós [afro-americanos] sabemos mais sobre isso.”

Uma correção: a visão é nova para os americanos dos EUA. Nós, aqui, no Brasil, temos uma longa tradição de pensar positivamente a mestiçagem, chegando até ao orgulho de nossa condição crioula. Obama, em sua entrevista para o programa da ABC apenas repetiu a letra de “Olhos coloridos” ou remixou tese de Gilberto Freyre. Não devemos nos enganar pensando que era mais fácil combater o preconceito antimestiço em 1933, quando “Casa Grande e Senzala” foi lançado. Naquela época o pensamento dominante condenava a mistura racial como degeneração biológica. Porém, mesmo sem essa base “científica”, a reação contra a fala “mongrel” de Obama nos revela como ainda causa espanto a afirmação de nossa mistura essencial.

No Esquenta! que vai ao ar depois de amanhã, Regina e Fernanda Montenegro lerão poemas. Para Fernanda, “Poema de Natal” de Jorge de Lima; para Regina, “Natal” de Murilo Mendes. Escolhi o Murilo Mendes da versão 1959, não o original de 1935. Houve troca significativa, talvez influência de Gilberto: o “anjo sereno” virou “anjo moreno”. É o que desejo para o mundo: tudo, mesmo um anjo, é ainda mais sereno quando se reconhece moreno, “mutt” ou “mongrel”.