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cartas para inventar o Brasil

25/08/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 24/08/2012

Sou antigo, do tempo em que havia cartas. Que prazer narcisista era chegar em casa e encontrar um envelope pesadão, anunciando muitas páginas de novidades ou pensamentos de gente que dedicara longas horas de seus dias (incluindo a fila do correio) apenas para ficar em contato comigo. Quem só conhece email, que é outra alegria, nunca vai ter ideia do que era uma correspondência da “vida real”, com longo intervalo entre a postagem e a resposta. A impossibilidade da instantaneidade dava graça para o jogo de palavras. Sinto muita falta daquela difícil e custosa brincadeira. Ainda bem que o mercado editorial brasileiro tem publicado muitos livros de cartas. Mato a saudade bisbilhotando correspondências alheias.

Descobri, atrasado, dois livros que se transformaram em leituras preferidas de 2012: “Em família: a correspondência de Oliveira Lima e Gilberto Freyre” e “Cartas 1924-1944 – Câmara Cascudo e Mário de Andrade”. Devorei cada uma de suas páginas com a ansiedade de quem está tomado por uma telenovela. As cartas de um livro poderiam até ser embaralhadas com as do outro: muitas vezes falavam do mesmo assunto (por exemplo, o Congresso Regionalista de 1926), e eram como que uma conversa de turma, aquela que estava inventando o Brasil, ou a ideia de cultura brasileira dominante hoje.

Era realmente um país novo. Seus intérpretes tinham que se transformar também, para entender – ou mesmo conseguir enxergar – a novidade. Cada um de seu modo, de lugares diferentes. Oliveira Lima e Gilberto Freyre, no período em que trocavam cartas (de 1918 a 1828, quando Oliveira Lima morre), tinham vidas obviamente cosmopolitas, viajando constantemente entre várias cidades do Brasil, dos EUA e da Europa. (Incríveis os recursos para que as cartas chegassem a seus destinatários: eram usados endereços de amigos, de consulados, de hoteis. Havia sempre pedidos de livros, revistas, jornais, que chegavam de navio, avião, trem, com cuidadosos cálculos para economizar no preço da postagem. Muitas vezes usavam, ao mesmo tempo, o correio aéreo para algo mais urgente, avisando que carta mais longo já tinha seguido por via marítima. E cada época com suas redes de IPs. Por exemplo: no cabeçalho de uma carta que Oliveira Lima escreve de Lisboa encontramos, em francês, os dados de seu hotel: “Tele{graphe:  PALACE LISBONNE {phone: NORTE 357071”)

Já Câmara Cascudo e Mário de Andrade viviam mais quietinhos, um baseado quase o tempo todo em Natal, o outro em São Paulo, os dois sempre reclamando da falta de dinheiro ou tempo para viajar. Mesmo assim não eram menos cosmopolitas. Estavam ligados em todas as novidades de vários cantos do mundo. Cascudo (nas cartas chamado até de Cascudete) chega a passar o endereço de Stravinsky para Mário (carinhosamente chamado de “bestão”). Lição óbvia: o mundo não precisou esperar pela internet para ficar totalmente conectado. A conexão era demorada, muito mais cara. Mas estava ali, disponível, excitante. Nada muda tanto assim sob o sol.

Nas cartas de Cascudo e Mário havia a cumplicidade de gente da mesma geração (apesar de Mário nunca perder um tom professoral, de quem sabe ser mais famoso, até mesmo para corrigir o estilo da escrita e do pensamento do amigo/compadre). Já o ainda adolescente Gilberto (na primeira carta ele tinha 18 anos – e já sabia que era inteligente demais) escrevia para o diplomata Oliveira Lima, com o respeito que um discípulo dedica para um mestre. Pela correspondência chego até a desconfiar que tenha sido seu mestre mais importante. Em carta de 1921, Gilberto se mostra “alarmado” com o problema da mistura de raças no Brasil, demonstrando compartilhar opinião dominante na época, a que condenava a mestiçagem e esperava a salvação no “imigrante branco”. Na sua resposta, Oliveira Lima resume tese que só seria publicada em “Casa grande e senzala” 12 anos depois: “Eu mesmo não sei se a solução […] que estamos inconscientemente ou antes instintivamente dando ao problema não é mais acertada do que a que deliberadamente lhe têm dado os Americanos.” Depois pergunta se o “espetáculo da fusão” não é preferível ao “da exclusão”. Questionamento ainda atual?

Esta coluna é só para recomendar a leitura de todas essas cartas deliciosas e reveladoras, com suas invenções do Brasil. Para dar água na boca, uma receita que Cascudo – em 1929, no Crash daquele tempo – passa para Mário: “Descobrimos um novo quitute. Batizei-o ‘Tapioca Tarsila’. Tem um gosto que lembra o azul e o róseo da senhora do poeta Pau Brasil. Tapioca de goma (caroço grosso), coco ralado e leite do mesmo, açúcar e canela, a forno meio quente e 10 minutos para corar em fogão fechado. Maravilhoso!”

pouca e muita

18/08/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 17/08/2012

“A realidade é pouca.” Foi assim que Ferreira Gullar, em texto recente para a Folha de S. Paulo, fez a defesa de uma arte que não imita e sim inventa a vida (descobri que ele escreveu a mesma coisa em texto mais antigo). Muitos pensadores já fizeram declarações semelhantes: lemos romances, ou vemos Game of Thrones, pois nossa vida apenas não nos basta. Queremos mais, outras aventuras que o cotidiano não pode nos oferecer. Concordo. Mas como sou contraditório, ando cultivando sentimento oposto. A realidade é muita. Impossível dar conta de tudo que minha vida, mesmo limitada, propõe. O tempo é que é pouco para fazer o muito. Acabo deletando áreas completas de interesse, para poder me dedicar a outras com o mínimo de cuidado. É um trabalho cruel. Fico sempre culpado por estar deixando escapar tantas coisas interessantes.

Por exemplo: não consegui ver nada das Olimpíadas. Para ser sincero vi apenas uma pequena cena da abertura. Procurei no YouTube o momento em que Tim Berners-Lee – um de meus maiores heróis, que inventou a web e luta para mantê-la livre e aberta – aparecia no estádio inglês. Soube disso porque, mesmo sem tempo para eventos olímpicos, não resistia e acompanhava sua repercussão na imprensa. Desse modo ansioso, li também os artigos do Veríssimo e do Ai Weiwei sobre a abertura dos Jogos de Londres. Fiquei surpreso com suas observações parecidas, apesar de tons divergentes.

Veríssimo escreveu, com distanciamento muito refinado, sem deixar claro se gostou ou não do que viu: “Os ingleses decidiram ser ingleses ao ponto de ostentação. Nada de espírito olímpico, o festejado, e bem festejado, foi o espírito nacional.” Ai Weiwei – artista que participou da criação do projeto arquitetônico do Estádio Nacional de Pequim, mas retirou sua assinatura por não concordarcom a condução dos Jogos planejada pelo Partido Comunista Chinês – foi efusivo, totalmente a favor: “Em Londres, eles fizeram da cerimônia uma festa de verdade – eles têm orgulho de si mesmos e respeitam suas origens, da Revolução Industrial aos dias de hoje.”

Esses comentários me lembraram o debate sobre identidade nacional entre historiadores e cientistas sociais. Norbert Elias, em seu magnífico “O processo civilizador”, afirmou: “as perguntas ‘O que é realmente francês? O que é realmente inglês?’ há muito deixaram de ser assunto de muito debate para os franceses e ingleses.” No Brasil, como sentimos na pele, nunca paramos de nos perguntar “O que é realmente brasileiro?”. Inseguros, criamos muitas diferentes barreiras para nos defender do que vem de fora, como se qualquer guitarra elétrica pudesse ameaçar nossas “origens”. Alguns autores já insinuaram que afirmações nacionalistas são bengalas de países fracos, que nunca estiveram no centro da cultura mundial, ditando as regras e as línguas do convívio entre os diferentes povos.

Então me peguei indagando: a opção por uma cerimônia tão claramente nacionalista pode ser interpretada – ao contrário do que diz Ai Weiwei – não como demonstração de “orgulho de si mesmo”, mas sim de cansaço ou de decadência, com a volta com tudo da pergunta “O que é realmente inglês?”, que seria não apenas britânica, mas “ocidental”? Seguindo essa linha de raciocínio pós-Brics, a decisão chinesa de fazer uma festa global é bem coerente com sua nova posição de “dono do poder” (o que já se reflete no aumento do número de cursinhos de mandarim mesmo em escolas primárias europeias).

Luís Barrucho, jornalista da BBC Brasil, me mandou um email pedindo resposta para a seguinte pergunta: “Se eu fosse responsável pela cerimônia de abertura das Olimpíadas do Rio em 2016, o que eu mostraria e como eu organizaria essa festa?” Não tive tempo (a realidade é muita…) para fazer esse curioso exercício de ficção, que me deixaria em pânico. Porém, atrasado, depois de ler Veríssimo e Weiwei, agora sei que quero uma abertura bem diferente tanto da inglesa, com seu apego ao original, quanto da chinesa, com sua promessa de globalismo autoritário. Já fizemos bem (li na imprensa) o “remix de clichês nacionais”, do malandro ao maracatu atômico, na cerimônia de encerramento da Londres 2012. Em 2016, quero festa mesmo, animada, que saia do estádio e tome conta das ruas (se tem uma coisa que o Rio sabe fazer é colocar o bloco na rua) e da web.

Uma festa para esquecermos de vez a pergunta “O que é realmente brasileiro?” No lugar de contar para o mundo a história do Brasil, devolveremos ao mundo sua própria história, sua história verdadeira, onde a identidade nacional fez o que pode para escamotear a mistura de culturas que sempre foi o motor do futuro. A mistura vencerá. Existe notícia melhor, e mais fiel ao espírito olímpico, para dar ao planeta?

15 talvez 14

11/08/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 10/08/2012

Caetano Veloso, aqui neste nosso cantinho do Segundo Caderno, escreveu: “Quinze anos é a minha idade. Talvez 14. O resto são marcos exteriores que não me dizem respeito”. Então só me resta felicitá-lo por, três dias atrás, ter permanecido com quinze anos, talvez 14. Minha coluna já comemorou os 70 anos de Peter Fry e Gilberto Gil. Como sempre diz Regina Casé: festa boa tem que ter gente de várias idades, tons de pele, orientações sexuais, religiosas etc. Então é bom, para variar, dar meus parabéns para um novinho. Fui apresentado para Caetano, no início da década de 1980, por Arto Lindsay (na base de nossa amizade está o noise). Fazendo as contas, acompanho de perto sua adolescência há quase 30 anos. Fizemos juntos algumas travessuras juvenis neste tempo que para/não-para nos 15-talvez-14 (copiando Caetano: o verbo parar conjugado na terceira pessoa do singular no presente do indicativo deveria continuar com acento diferencial talvez para sempre).

Uma boa aventura foi minha campanha para ter seu “O cinema falado” lançado em DVD. Com Carlos Nader, cuidamos dos extras, mais falantes ainda. Quem convive com Caetano em casa conhece bem um de seus dons: é excelente professor, capaz de explicar de forma clara os temas mais complexos (apesar de sua pouca idade, é menino bem sabido). Já aprendi muito em conversas que se tornaram serões. Nunca vou me esquecer da noite em que ele explicou tintim por tintim o “O que é a filosofia?”, de Deleuze e Guattari, livro que – mesmo já tendo estudado o “Anti-Édipo” e o “Mil Platôs” – eu considerava impenetrável.

A intenção, com vários extras do “Cinema falado”, era aumentar o número de seus alunos. Por exemplo: na leitura de Thomas Mann, interrompida por comentários de uma profundidade divertida, penso que conseguimos captar o espírito ao mesmo tempo caseiro e rigoroso das aulas particulares do mestre Caetano. Pena: acho que pouca gente viu o que fizemos. (Não acredite no mito que diz que todo mundo presta atenção exagerada em tudo que Caetano faz. Não dê ouvidos também a quem diz que todo mundo só fala bem dele. Desde que comecei a ler cadernos culturais, encontro muita gente que quer brilhar escrevendo contra Caetano.) Parodiando o professor que uma vez cantou “quem lê tanta notícia?”, posso ousar perguntar: quem vê tantos extras?

Talvez alguém um dia alguém os veja. É essa possibilidade que move projetos como o lançamento em DVD de “O cinema falado”, desejoso de permanência, de eternizar aquilo que pode desaparecer ou ser esquecido. Outras de nossas travessuras comuns tiveram destinos contrários: já desapareceram. Uma vez nos reunimos com Sérgio Mekler (nós apenas ajudamos Caetano a colocar suas ideias no papel) para escrever o roteiro da adaptação cinematográfica de “Ó paí ó”, a peça do Bando de Teatro do Olodum, que Caetano gostaria de dirigir em sua sempre adiada volta ao cinema como realizador (e que depois, com outro roteiro, acabou virando filme e série de TV dirigidos por Monique Gardenberg). Na nossa versão, havia até uma conversa entre Tom Zé e Jorge Amado sobre a nova política racial brasileira.

Não é só a impossibilidade, depois da morte de Jorge Amado, de filmar esta cena que me deixa nostálgico (mesmo eu sendo um defensor perpétuo da impermanência). Havia outro momento incrível no roteiro com o por do sol atravessando as janelas do Elevador Lacerda. Ali ouviríamos na trilha sonora uma canção que Caetano compôs especialmente para esse momento. Era como que uma oração para o dia que chegava ao fim, representante de todos nossos dias com sua mistura trágica de dor e alegria, monotonia e excitação. Quando, tempos depois, arquivamos o projeto do filme, pensei aliviado que pelo menos essa música seria lançada. Perguntei por ela: Caetano tinha perdido a fita cassete com a gravação e se esquecido completamente da letra e da melodia. Lembro-me apenas que o refrão terminava ou repetia a frase “que dia”. É o que resta de uma de suas mais belas canções, que ninguém jamais vai ouvir.

Mais uma de nossas aventuras sólidas que se desmancharam no ar foi o blog “Obra em progresso”, que acompanhou a criação do disco “Zii e zie”, e formou uma comunidade (ainda recebo email de Labi Barrô) com conversa de consistência poucas vezes ouvida na internet (talvez por causa de minha moderação antipática, que nem pestanejava ao apagar qualquer trollagem). Procurei mas não encontrei nem vestígio online do que produzimos por ali. Talvez esteja armazenado em algum hard drive desligado da nuvem. Mas decidi cessar as buscas. Foi bom enquanto durou. Estou mais interessado nas próximas desculpas que vou inventar para ficar ainda mais bem perto da continuação dos 15-talvez-14 anos sempre renovados de Caetano.

cinema russo

04/08/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 03/08/2012

Fui ver o Fausto de Sokurov. Não sei ainda o que penso desse filme. Não foi experiência chata (o que não seria problema; já fiz o elogio da chatice nesta coluna). A trama é até animada, com coisas chocantes o tempo todo – irresistível usar o lugar-comum: não dá tempo para o público respirar. Mas sei lá, perdi a paciência com cinema “de arte” (e Fausto quer ser arte desesperadamente, com muitas imagens “cabeças” e atores dando tudo de si…). Não acompanho a carreira dos novos diretores asiáticos, nem do cinema independente norte-americano. Vi muito Godard e Tarkovsky na minha juventude. As experimentações atuais parecem repetições fraquinhas do que já foi realizado com muito mais garra. Prefiro blockbusters, com multidões – algo que talvez não seja nem mais cinema. O “filme de arte” é como a canção segundo Chico Buarque: “Assim como a ópera, a música lírica, foi um fenômeno do século 19, talvez a canção, tal como a conhecemos, seja um fenômeno do século 20.” Passou? Vai ser mercadinho de nicho, sem repercussões maiores na cultura contemporânea?

Procurei críticas sobre Fausto na internet. Encontrei artigo da Variety com fala do produtor Andrey Sigle. Ele revela que o filme obteve financiamento “depois da intervenção pessoal do primeiro-ministro Vladimir Putin”. O que vem a seguir é mais intrigante: “O filme é um grande projeto cultural russo e para Putin isso é muito importante. […] A Rússia não é apenas uma potência militar ou uma potência do petróleo e do gás, ela tem uma imensa tradição cultural e filme pode ajudar o povo europeu a ver melhor o rosto da Rússia.”

Poderia passar a coluna inteira comentando essa fala (inclusive sua fixação com a Europa, como se o resto do mundo não existisse, ou como se parte da Rússia não fosse Europa também). Porém, isso me fez deixar de lado a particularidade do caso Sokurov/Putin para ficar intrigado com a longa relação entre poder e cinema na Rússia soviética e pós-soviética.

Entre as boas surpresas do mercado de DVDs nacionais, há dois filmes que nos ajudam a entender de forma mais complexa a história do cinema russo (deixarei um terceiro, “A cor da romã”, para futura coluna só sobre Paradjanov). Não terei espaço para comentá-los devidamente neste texto. Quero apenas chamar a atenção seus lançamentos.

O primeiro é “Elegia a Alexandre”, de Chris Marker (que morreu esta semana; fará muita falta – quem cuidará do seu gato Guillaume-en-Egypte?), um tributo ao cineasta russo Alexandre Medvedkine, lançado na Coleção VideoFilmes. Na verdade, é um filme sobre crença, verdade e mentira, arte e poder, em tempos revolucionários ou não. Medvedkine foi chefe da propaganda do Exército Vermelho. Via no cinema ferramenta de educação para as massas. Alguém resumiu sua vida: “um comunista legítimo num país de comunistas que fingem ser comunistas” (estes denunciavam aqueles por não serem comunistas verdadeiros: em “Elegia” aprendi que Vertov chorou ao ser acusado de cosmopolitismo). Em busca de imagens também legítimas, Medvedkine criou o cine-trem, estúdio pop-up que percorria a União Soviética promovendo debates: filmava-se de dia, editava-se á noite e na manhã seguinte o resultado era exibido para quem foi objeto do olhar da câmera. “Ele não era um mentiroso”. “Todos acreditavam no partido”. Até que um dia todos saíram às ruas, derrubando estátuas de mitos comunistas, numa reação que as imagens de Marker mostram ter sido de exuberante alegria (verdadeira ou falsa?).

O segundo filme só coube numa caixa de 3 DVDs. É “Notícias da antiguidade ideológica: Marx, Eisenstein, O Capital”, dirigido pelo alemão Alexander Kluge com base no projeto do russo Eisenstein de filmar “O Capital” de Marx seguindo a estrutura do “Ulisses”, do irlandês Joyce. É a Europa redevorando a ideia maluca russa (por sua vez produto da apropriação de ideia europeia), num caminho inverso ao de Sokurov filmando Goethe. O lançamento brasileiro foi iniciativa do coletivo Projeto Revoluções, que busca “recolocar os termos do político num mundo cuja sensibilidade é atravessada por imagens midiáticas”.

Conseguir passar pelos seus 492 minutos com atenção redobrada. Muitas anotações. Posso apenas citar duas. Primeiro, o sorriso da atriz (muito fofa) Sophie Rois, deslumbrada com a carga poética de trecho de Marx, que declarava os gregos como crianças normais. Segundo, o filósofo Peter Sloterdijk, falando de “O Capital” (uma fala de 46 minutos) como história teatral, onde a mercadoria está sempre disfarçada e tudo não é o que parece. O capitalismo como crença, o estado como fiador da crença, garantindo que a riqueza acumulada não vai evaporar do dia para noite.

“Todas as coisas são homens enfeitiçados.” Estranha crença para fundamentar o poder soviético, e seu cinema revolucionário. Estanho mundo o nosso, pós-Perestroika, com a Rússia tentando se aproximar da Europa, terra de Marx, com pacto com Fausto.