Posts Tagged ‘William Gibson’

vírus

16/03/2013

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 15/03/2013

Vivo momento de descobertas em série de acontecimentos reais previamente “anunciados” em romances. Exemplo da coluna anterior: não prestaria tanta atenção no meteoro russo se não tivesse lido antes a “Trilogia do Gelo” de Vladimir Sorokin. Outras obras de ficção não são apenas proféticas. Sua leitura exerce tal influência no pensamento contemporâneo que passamos a agir, pragmaticamente, para que aquele universo paralelo se transforme em realidade. Esse é o caso de “Neuromancer”, de William Gibson, cuja primeira edição completará 30 anos em 2013. Foi lá que a palavra ciberespaço apareceu pela primeira vez. Ficamos tão encantados com sua descrição ficcional que continuamos trabalhando duro para que o mundo em que vivemos fique cada vez mais parecido – para o bem e para o mal – com tudo que o livro apresentava de mais improvável.

Claro que tive que lembrar de “Neuromancer” – onde as verdadeiras guerras acontecem dentro das redes de computadores – ao me deparar com as notícias, publicadas no final de janeiro, de que a Unidade Ciber Comando do Pentágono vai passar por uma grande expansão nos próximos anos, quintuplicando seu tamanho, segundo o Washington Post, e passando dos atuais 900 funcionários para 4.000, segundo o New York Times. Fui pego de surpresa: não tinha ideia que as forças armadas dos EUA criara um comando chamado “ciber”. Curioso e assustado, acabei encontrando a declaração de Leon Panetta, secretário da Defesa na presidência Obama, nos alertando em outubro do ano passado para a possibilidade de um “ciber Pearl Harbor”.

Seguindo links de texto apocalítico de colunista do The Guardian, fui parar em artigo de 01/06/2012 assinado por David E. Sanger, o correspondente chefe do New York Times em Washington, que considero uma das peças jornalísticas mais impressionantes do novo século. Se não fossem as credenciais realistas do seu autor e do órgão de imprensa para o qual trabalha, eu desconfiaria que se tratava na verdade da mais delirante criação da ficção científica. Porém, o texto somente revelava pela primeira vez fatos acontecidos há vários anos.

Tudo é nebuloso. O governo Obama, com reforço israelense, teria dado continuidade a projeto secreto anterior – denominado “Jogos olímpicos” – de criação de cibervírus poderoso capaz de sabotar o programa nuclear iraniano. Provavelmente um espião conseguiu entrar em Natanz com um pen-drive contendo o vírus que foi passado para a rede de computadores interna – portanto desconectada da internet – dessa usina de refinamento de urânio. Centenas de suas centrifugadoras começaram deixaram de funcionar, mas os técnicos iranianos não desconfiaram de cibersabotagem e sim pensavam que os problema eram gerados por seus próprios erros.

O que aparentemente não estava nos planos americanos (mas há suspeita de que algum hacker militar deixou essa possibilidade aberta de propósito): um laptop de engenheiro pode ter se conectado à rede interna da usina, foi infectado e depois – sem querer – transmitiu o vírus, chamado de Stuxnet, para a internet, contaminando vários sistemas, inclusive bancários. As empresas de antivírus nunca tinham visto nada parecido. Começaram a circular rumores de que deveria haver governos poderosos por trás da nova ameaça. Mas só o artigo de David E. Sanger confirmou o que ninguém tinha coragem de afirmar publicamente.

Resultado, como declarou um ex-chefe da CIA: ficou claro que “alguém cruzou o Rubicão“. Entramos em nova fase, com consequências imprevisíveis, da história das guerras e da estratégia militar, uma realidade bem próxima com aquela de “Neuromancer”. Quando o Irã e a China descobriram o que os EUA e Israel tinham feito, logo criaram seus próprios e secretos cibercomandos. Dezenas de vírus novos e cada vez mais imperceptíveis, como o Flame, podem estar prontos para escapar de uma base militar escondida em algum recanto isolado do planeta. O pior: não existe tratado regulamentando o uso dessas novas ciber-armas, como aquele que cuida da não proliferação do nuclear. E lembrando: o Stuxnet fui utilizado em tempo de paz, onde não havia guerra oficial declarada.

Mesmo países que não pretendem atacar ninguém com vírus eletrônico vão precisar aprender a se defender, detectando ameaças em seu ciberspaço (e hoje tudo, de redes elétricas a hospitais, depende do ciberspaço para funcionar). Detesto voltar a falar de educação neste contexto guerreiro, mas precisamos ser realistas (está tudo cibermisturado): uma nação sem boa cultura de programação digital está condenada a ser vítima fácil de ciber-ataques, mesmo “amadores”. Voltarei a falar do lado Jedi da força educativa na coluna da semana que vem.

cyber/steampunk

08/01/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 08-10-2010

William Gibson acaba de lançar “Zero history”, o terceiro livro de sua terceira triologia. Parece número cabalístico. Três vezes três dão nove romances de – na falta de rótulo mais abrangente – ficção científica. É tudo que lançou até agora, fora contos, ensaios e colaborações com outros autores. Para quem publica desde o final dos anos 70, não são muitas páginas. Mas formam uma obra e tanto, com influência decisiva no modo como pensamos o mundo hoje, cada vez mais assustadoramente semelhante ao que Gibson cria. Você pode não ter lido nada do que ele escreveu, mas certamente terá convivido – até bem intimamente – com alguma de suas idéias, espalhadas muito além do campo artístico. Por exemplo: o ciberespaço, palavra inventada em seu conto “Burning chrome” (1982), era ambiente central de “Neuromancer” (1984), primeiro livro de sua primeira triologia, e só se transformou em realidade banal planetária no início dos anos 90.

No século XXI, Gibson deixou de lado o futuro e passou a escrever sobre o presente. É bem o nosso presente, não há nenhuma tecnologia que não exista hoje. Mesmo um pingüim biônico flutuante, encarregado de vigilância, já pode ser conhecido até em vídeos no YouTube. Numa de suas declarações mais citadas, Gibson disse: “O futuro já está aqui – só não está equilibradamente distribuído.” Realmente: muitas das coisas já presentes, que serão determinantes em nossos futuros, são apenas tendências embrionárias, que somente gente esperta pode identificar como promissoras. Por isso o personagem mais poderoso da triologia que agora se finaliza com “Zero history” é Hubertus Bigend, dono de uma agência de caça ao cool, às viralidades, aos segredos, daqueles que ainda causam pequenas marolas no underground, mas que estão na iminência de virar tsunamis consumistas ou modo de vida globalizado. Como sugere uma personagem: “Eu era uma espécie de coolhunter também, antes que isso tivesse um nome, mas agora é difícil encontrar quem não o seja.”

Em “Reconhecimento de padrões”, o primeiro volume dessa triologia pós-marqueteira (e o único até agora lançado no Brasil), Bigend quer encontrar os criadores de vídeos que geraram uma espécie de culto na internet. Para revelar o mistério, é contratada Cacey Pollard, que tem alergia radical a etiquetas e marcas, costumando inclusive a pagar ferreiros para retirar letras e desenhos dos botões de seus jeans. No segundo livro, “Spooky country”, uma ex-cantora de banda pós-punk se mete numa trama policial que envolve arte locativa (baseada em coordenadas de GPS) e contrabandos em containers de navios talvez pirateados na Somália. A mesma ex-cantora reaparece em “Zero history”, agora com a missão de revelar quem lança uma marca secreta de jeans, que justamente por ser totalmente anti-fashion – não é vendida em nenhuma loja, não tem etiqueta, não faz desfiles nem publicidade – virou o sonho de consumo de todo fashionista que realmente sabe das “coisas” ou que quer algo verdadeiramente exclusivo e fascinante.

Para saborear bem a escrita de Gibson, é preciso ter algo do espírito coolhuntista, ou ser acometido por um grau mediano de vício de informação. São muitas referências a cada parágrafo. Uns russos de ternos escuros “parecem extras daquele filme de Cronenberg”. Ou: “Ela cuidadosamente manteve a ampliação do retrato de Corbijn fora de seu campo de visão enquanto chegava ao segundo andar do Salon du Vintage.” Detalhes de lugares muito precisos também congestionam a narrativa: como o Caffé Nero, “um Starbucks de realidade-alternativa”, que fica em frente ao Vidal Sassoon, numa esquina dos Seven Dials, em Covent Garden, Londres.

O ainda raro convive com o já comum, diagnosticado com perspicácia: “Uma muito considerável parte da linguagem gestual dos lugares públicos, que antes pertencia aos cigarros, hoje pertence aos telefones.” Então todos os personagens acariciam as telas de seus iPhones o tempo inteiro. O que dá uma sensação engraçada para a leitura. Os iPhones são tão ano passado, não são? Hoje os candidatos a coolhunters usariam android? Mas no intervalo entre a escrita e a publicação do livro o android já estaria ultrapassado, e o presente retratado ganharia inevitavelmente pátina de antiguidade. O livro, de cyberpunk, viraria steampunk.

Ironia: Gibson é um dos maiores responsáveis pela popularização da onda steampunk, tendo publicado o livro “The difference engine” – uma parceria com Bruce Sterling – em 1990. Os enredos steampunks acontecem num passado alternativo, geralmente era vitoriana que já inventara computador a vapor ou tecnologia semelhante. Esse subgênero de literatura tem cada vez mais adeptos, incluindo leitores que frequentam simpósios onde muitos comparecem com fantasias de época e adereços retrofuturistas. Romeu Martins, um dos maiores conhecedores e divulgadores da produção de ficção científica brasileira, tem um bom texto no Overmundo sobre o steampunk nacional, organizado sobretudo em torno do site Conselho Steampunk. Talvez, porque o futuro e o presente já nascem datados, seja mais fácil encontrar horizontes futuristas no passado.

PS: Esta coluna é uma homenagem à editora Aleph, que publica Gibson (e Philip K. Dick, Ursula K. Le Guin etc.) no Brasil, e acaba de lançar “O fim da infância”, de Arthur C. Clarke, em edição inédita no mundo.

Cingapura e consumo

30/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 30-07-2010

Para a maioria dos turistas que pretende conhecer a Ásia, Cingapura é apenas um aeroporto, local de troca de aviões para destinos classificados como mais autênticos. Eu, com minha incurável alergia a tudo que se vende como tradicional, e acreditando piamente que não existe nada culturalmente puro no mundo, penso que consigo descobrir melhor a “verdadeira” Ásia, e o nosso futuro bric-asiático, no trajeto entre Potong Pasir e Yio Chu Kang, estações do metrô cingapuriano, do que em aldeia do Laos ou mosteiro do Butão. Apesar do país ser uma ilha minúscula, nunca esgotarei meu interesse pelas maneiras múltiplas como suas identidades vão se renovando velozmente, no encontro entre várias etnias e modernidades ocidentais-orientais. O fascínio poderia ser puramente econômico, aliado à crítica de seu modelo político: afinal como não ficar curioso com a experiência vertiginosa de uma ex-colônia britânica, com maioria da população miserável na sua independência de 1965, para a nação que mais cresceu em 2010 e ocupa o topo da lista de competitividade global, isso em regime de partido único, com pena de morte, e que até proíbe a entrada de chiclete em suas alfândegas? Mas não me interesso tanto por esses números e por essas leis e sim como as pessoas vão inventando maneiras sutis e criativas de viver suas vidas nas ruas, negociando diferenças, para muito além, ou aquém, da globalização autoritária.

Cingapura é um porto, é uma quebrada, ponto de encontro entre povos muito distintos uns dos outros. O país tem quatro idiomas oficiais, com escritas radicalmente variadas. No metrô, os anúncios são feitos em mandarim, malaiotâmil, inglês. Programas de televisão são legendados às vezes em ideogramas chineses e alfabeto indiano, ao mesmo tempo. Estive por lá na Semana Santa deste ano e pude, no espaço de poucos quarteirões, ouvir uma ladainha tâmil na Igreja de Nossa Senhora de Lourdes, ver o ensaio de uma orquestra chinesa na porta de um templo taoísta que se preparava para o Qing Ming, festival dos mortos chineses, acompanhar uma procissão – com sopros e percussão excelentes – dentro do templo de Vishnu, e ainda ver show de metal islâmico/malaio num parque. Não conheço outro lugar onde essas grandes religiões se mantenham tão vivas e próximas.

Mas há outra religião importante na cidade, com até maiores templos: o consumismo e os shopping centers. Não existe rua no mundo como Orchard Road. É tudo que a avenida das Américas quer ser quando crescer: um shopping atrás do outro, com todas as grifes mais poderosas lado a lado – inclusive a mesma grife com lojas vizinhas, como a Louis Vuitton do Ngee Ann City e do Ion Orchard – de uma vitrina você pode ver a outra. Isso para não falar da Hermès, da Gucci, da Prada, da Miu Miu, todas ao alcance da vista, mas de exploração inesgotável e crescimento espantoso. O Ion Orchard foi um dos quatro grandes shoppings inaugurados do final de 2009 para cá, agora todos com ciberparedes que à noite se transformam em novas fontes luminosas ou decoração de Natal permanentes. Não dá para não se perguntar: isso tudo é sustentável? Há clientes suficientes no mundo todo para bancar essa farra cara?

Nada contra shoppings, pelo contrário.  Gosto de comércio de rua, mas adoro shoppings, e acho cafona quem fala mal de shopping para parecer superior às massas (pronto, falei!) Porém, não posso deixar de me espantar com as proporções que o fenômeno ganhou sob o calor equatorial da Orchard Road. Claro que é uma vantagem ar condicionado, mas friozinho artificial não explica tudo. Na imensa livraria Kinokuniya – com suas infindáveis prateleiras de livros e revistas japoneses, chineses e americanos – encontrei parte da resposta para minhas indagações. O consumo é obsessão interna, bem explicada no livro A Vida não é Perfeita sem Compras, do sociólogo Chua Beng Huat, título que foi extraído de discurso do primeiro ministro Goh Chok Tong no Dia da Independência. Não pense que é puxa-saquismo oficial. O livro contém uma das mais espertas reflexões críticas sobre a cultura do consumo que já li, mostrando como a globalização ganha sentidos diferentes em diferentes países, e para diferentes grupos de sua população. Num lugar tão obviamente multicultural como Cingapura, que por longos anos incentivou cada etnia a cultivar as tradições de seus países de origem (originando então várias novas tradições inventadas), esses sentidos ganham complexidade estonteante.

Chua Beng Huat estuda desde como a roupa tradicional cheongsam se transformou em vestido de gala para mulheres chinesas, ao contrário do desaparecimento da kebaya para as malaias, até como as lojas do McDonald’s viraram pontos de encontros jovens por causa da característica do ensino público local de espalhar os alunos em diversas escolas da cidade não por local de moradia, mas por notas. Entendemos também porque a influência cultural japonesa é mínima, apesar do poderio econômico nipônico no país, ou quais são as razões do sucesso dos filmes de Taiwan.

Queria indicar esse livro para alguma editora brasileira. É parte de campanha antiga: pelo estabelecimento de links diretos entre pensamentos de vários lugares do mundo sem necessidade de mediação do primeiro mundo. É também para celebrar a maturidade da crítica em Cingapura. O país sabe: para crescer mais a economia precisa ser criativa. Não há criatividade sem crítica.