texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 23/03/2012
Já conclui a série sobre direitos autorais. Mas faltou dizer: houve um tempo em que o Brasil era vanguarda no debate sobre o futuro da cultura digital. O próprio Richard Stallman, que pode ser chamado de pai do software livre, reconheceu – na revista Wired – que nenhum outro país do mundo tinha governo mais comprometido com a democracia dos códigos cibernéticos. Cheguei a ver Stallman e Sarney abrindo o seminário “O software livre e o desenvolvimento do Brasil”, promovido pelo Congresso Nacional em 2003, início do governo Lula. Note bem: o software livre era visto como ferramenta de desenvolvimento, de produção de riquezas para a economia brasileira. Gilberto Gil, como ministro, também estava na mesa, e fez discurso conectando liberdade digital com enriquecimento artístico: era o momento em que o Brasil, seguindo também as lições dos movimentos antropofágicos e tropicalistas, poderia se transformar em laboratório capaz de propor soluções para a crise dos velhos modelos de negócios da indústria cultural mundial. Na plateia, eu imaginava estar vivendo dentro da letra dos Novos Baianos: “chegou a hora desta gente bronzeada mostrar seu valor”. Confesso aqui mais uma vez meu sebastianismo: sempre esperei que o Brasil tivesse missão central para cumprir no planeta. Nunca me contentei com a retaguarda.
Quase dez anos depois, constato que tudo ficou para o “país do futuro”. Claro, somos a tal sexta potência econômica, e continuamos dominando toda nova rede social virtual, mas parece que seguimos uma trilha de desenvolvimento pouco original, que esbarrará naqueles mesmos impasses que o mundo dito desenvolvido enfrenta agora. Quanto à experimentação com os códigos abertos da produção cultural, andamos para trás, para o passado. Deu medinho oficial do novo, bateu aquele apego à merreca conhecida, que ainda satisfaz a uma minoria. Para que gastar energias com propostas experimentais? É obvio: o barco está afundando, mas tem gente finge não ver a água entrando por todos os lados, pois dá muito trabalho organizar a operação de salvamento coletivo. Gente que prefere naufragar “dignamente”, ignorando a tempestade lá fora, ou a mudança radical da maré.
Que fazer para retomar a ousadia, para sair do culto da mixaria, para cumprir nossa missão? É preciso recomeçar conectando muita atividade dispersa. Que o marasmo oficial não nos engane: o Brasil continua produzindo muitos pensamentos e ações originais, mesmo sem a repercussão internacional da década passada. Citei aqui, semanas atrás, o livro “O domínio público no direito autoral brasileiro”, de Sérgio Branco. Houve problema engraçado no seu lançamento. A editora Lumen Juris foi corajosa aceitando lançá-lo como obra já em domínio público. Mas o licenciamento tradicional é tão automático que a primeira impressão do livro saiu com aquele aviso policialesco, que nos trata como suspeitos, contido em quase todos os produtos culturais: “É proibida a reprodução total ou parcial […] A violação dos direitos autorais constitui crime” etc. (Uma vez comprei um DVD e fui obrigado a ver três anúncios antipirataria – sem passar por eles eu não chegaria ao filme. Deve fazer sentido: quem compra o DVD não-pirata precisa também ser punido.) Mas agora o problema está resolvido e a obra finalmente chegou às livrarias. É leitura essencial para voltarmos ao debate levado a sério.
No capítulo final, Sérgio Branco levanta um aspecto preocupante do atual movimento de “privatização” do domínio público, que precisa ser levado em consideração por qualquer política cultural. Muitos acervos públicos passaram a fazer cada vez mais exigências, inclusive o pagamento de taxas, para o acesso a obras que estão em domínio público. Isso acontece, por exemplo, com a proibição de fotografar quadros que estão em museus (a explicação de que flashes danificam as pinturas não é suficiente para justificar esse tipo de regra, e em muitos casos já se tornou tecnicamente obsoleta). Mesmo quando pagamos por reproduções fotográficas das obras, temos que assinar contratos nos comprometendo a não usar aquelas fotografias comercialmente, ou mesmo cedê-las para terceiros. Há aqui tentativa sorrateira de restringir a ideia de domínio público apenas para utilizações não comerciais, o que é errado. O domínio público também se justifica tornando possível que qualquer pessoa possa ganhar dinheiro com aquilo que passou a ser da Humanidade. Foi assim que a Disney se enriqueceu (e também enriqueceu nossos imaginários) usando obras dos irmãos Grimm sem precisar pagar nada pelo uso totalmente comercial.
Tente hoje solicitar autorização em arquivos públicos do Rio para reproduzir uma foto de Augusto Malta, já em domínio público, num documentário sobre história da cidade. Muitos deles vão cobrar taxas diferentes (não importa se a diferença é grande ou pequena; é o princípio que está em jogo) se a utilização da foto tiver ou não finalidade comercial. Claro que essas instituições precisam de dinheiro para o trabalho de conservação. Mas esse é outro problema, exigindo outras soluções que nada têm a ver com direito autoral. Para manter o acervo ninguém precisa mudar a função do domínio público, que não prevê discriminação entre vários tipos de uso da obra. O domínio público é nosso, ninguém tasca: existe para incentivar novas criações – e criadores que possam viver de suas criações.