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futuro

24/03/2012

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 23/03/2012

Já conclui a série sobre direitos autorais. Mas faltou dizer: houve um tempo em que o Brasil era vanguarda no debate sobre o futuro da cultura digital. O próprio Richard Stallman, que pode ser chamado de pai do software livre, reconheceu – na revista Wired – que nenhum outro país do mundo tinha governo mais comprometido com a democracia dos códigos cibernéticos. Cheguei a ver Stallman e Sarney abrindo o seminário “O software livre e o desenvolvimento do Brasil”, promovido pelo Congresso Nacional em 2003, início do governo Lula. Note bem: o software livre era visto como ferramenta de desenvolvimento, de produção de riquezas para a economia brasileira. Gilberto Gil, como ministro, também estava na mesa, e fez discurso conectando liberdade digital com enriquecimento artístico: era o momento em que o Brasil, seguindo também as lições dos movimentos antropofágicos e tropicalistas, poderia se transformar em laboratório capaz de propor soluções para a crise dos velhos modelos de negócios da indústria cultural mundial. Na plateia, eu imaginava estar vivendo dentro da letra dos Novos Baianos: “chegou a hora desta gente bronzeada mostrar seu valor”. Confesso aqui mais uma vez meu sebastianismo: sempre esperei que o Brasil tivesse missão central para cumprir no planeta. Nunca me contentei com a retaguarda.

Quase dez anos depois, constato que tudo ficou para o “país do futuro”. Claro, somos a tal sexta potência econômica, e continuamos dominando toda nova rede social virtual, mas parece que seguimos uma trilha de desenvolvimento pouco original, que esbarrará naqueles mesmos impasses que o mundo dito desenvolvido enfrenta agora. Quanto à experimentação com os códigos abertos da produção cultural, andamos para trás, para o passado. Deu medinho oficial do novo, bateu aquele apego à merreca conhecida, que ainda satisfaz a uma minoria. Para que gastar energias com propostas experimentais? É obvio: o barco está afundando, mas tem gente finge não ver a água entrando por todos os lados, pois dá muito trabalho organizar a operação de salvamento coletivo. Gente que prefere naufragar “dignamente”, ignorando a tempestade lá fora, ou a mudança radical da maré.

Que fazer para retomar a ousadia, para sair do culto da mixaria, para cumprir nossa missão? É preciso recomeçar conectando muita atividade dispersa. Que o marasmo oficial não nos engane: o Brasil continua produzindo muitos pensamentos e ações originais, mesmo sem a repercussão internacional da década passada. Citei aqui, semanas atrás, o livro “O domínio público no direito autoral brasileiro”, de Sérgio Branco. Houve problema engraçado no seu lançamento. A editora Lumen Juris foi corajosa aceitando lançá-lo como obra já em domínio público. Mas o licenciamento tradicional é tão automático que a primeira impressão do livro saiu com aquele aviso policialesco, que nos trata como suspeitos, contido em quase todos os produtos culturais: “É proibida a reprodução total ou parcial […] A violação dos direitos autorais constitui crime” etc. (Uma vez comprei um DVD e fui obrigado a ver três anúncios antipirataria – sem passar por eles eu não chegaria ao filme. Deve fazer sentido: quem compra o DVD não-pirata precisa também ser punido.) Mas agora o problema está resolvido e a obra finalmente chegou às livrarias. É leitura essencial para voltarmos ao debate levado a sério.

No capítulo final, Sérgio Branco levanta um aspecto preocupante do atual movimento de “privatização” do domínio público, que precisa ser levado em consideração por qualquer política cultural. Muitos acervos públicos passaram a fazer cada vez mais exigências, inclusive o pagamento de taxas, para o acesso a obras que estão em domínio público. Isso acontece, por exemplo, com a proibição de fotografar quadros que estão em museus (a explicação de que flashes danificam as pinturas não é suficiente para justificar esse tipo de regra, e em muitos casos já se tornou tecnicamente obsoleta). Mesmo quando pagamos por reproduções fotográficas das obras, temos que assinar contratos nos comprometendo a não usar aquelas fotografias comercialmente, ou mesmo cedê-las para terceiros. Há aqui tentativa sorrateira de restringir a ideia de domínio público apenas para utilizações não comerciais, o que é errado. O domínio público também se justifica tornando possível que qualquer pessoa possa ganhar dinheiro com aquilo que passou a ser da Humanidade. Foi assim que a Disney se enriqueceu (e também enriqueceu nossos imaginários) usando obras dos irmãos Grimm sem precisar pagar nada pelo uso totalmente comercial.

Tente hoje solicitar autorização em arquivos públicos do Rio para reproduzir uma foto de Augusto Malta, já em domínio público, num documentário sobre história da cidade. Muitos deles vão cobrar taxas diferentes (não importa se a diferença é grande ou pequena; é o princípio que está em jogo) se a utilização da foto tiver ou não finalidade comercial. Claro que essas instituições precisam de dinheiro para o trabalho de conservação. Mas esse é outro problema, exigindo outras soluções que nada têm a ver com direito autoral. Para manter o acervo ninguém precisa mudar a função do domínio público, que não prevê discriminação entre vários tipos de uso da obra. O domínio público é nosso, ninguém tasca: existe para incentivar novas criações – e criadores que possam viver de suas criações.

Gov 2.0

23/02/2011

texto publicado em minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/01/2011

Na coluna da semana passada, apenas para introduzir o debate sobre classificação indicativa, falei de Gov 2.0. O assunto merece mais atenção do que aquele parágrafo introdutório. Tudo bem, o Segundo Caderno não é lugar para falar de política sem ligação clara com o mundo da cultura. Porém, não tenho nem dúvida: por trás do Gov 2.0 está acontecendo uma das transformações culturais mais interessantes deste novo século, que redefine o lugar da política em nossas vidas. O fato de ter o onipresente 2.0 na sigla é apenas mais uma evidência de suas conexões para além do Estado, para além da política convencional.

Hoje tudo é 2.0. Há medicina 2.0, educação 2.0, marketing 2.0 etc. Isso tem a ver com a utilização da internet em todos esses ambientes, mas não é só a tecnologia que importa, ou o que mais importa. A mudança principal acontece no relacionamento entre as pessoas, sendo praticamente irrelevante se estão em contato para fazer publicidade, política ou tratamento médico. Cada uma dessas áreas, mesmo com a resistência de antigos detentores do poder, tem agora que se abrir para a colaboração de todos. Não são mais caminhos de mão única, do centro para a periferia dos vários saberes e práticas. São redes, de muitos para muitos, sem distinção precisa entre quem fala e quem escuta, quem produz o “conteúdo” e quem o consome, quem manda e quem obedece.

2.0, em muitos contextos, é quase sinônimo de aberto, seguindo o modelo informático do “código aberto” (ou “open source”, em inglês, que por sua vez é quase sinônimo de “free software“, mas não há espaço aqui para abordar as sutis – e não tão sutis assim – diferenças políticas nas quais essas denominações se fundamentam). Gov 2.0 pode ser traduzido por governo aberto, ou “open government”. Tem gente que diz que hoje a abertura da internet está ameaçada (ou “a web está morta“) por causa de fatores tão díspares quanto o modelo de negócios do iPad, as “apps” de celulares, a reação anti-ou-pró-wikileaks, ou o cada vez mais poderoso combate reacionário contra a “neutralidade da rede“. Talvez tenham razão, se olharmos só para a rede. Mas se considerarmos a maneira como os princípios “libertários” da abertura da rede se “infiltraram” no mundo “off-line” (será que ainda dá para separar on-line de off-line?), o panorama é mais favorável a ambições democráticas. Um dos elementos dessa “expansão” aberta é bem visível: os pensamentos de muitos governos estão cada vez mais parecidos com os dos hackers.

As experiências do governo brasileiro felizmente não são únicas. Há países em que a “abertura” do modo de se governar acontece de forma mais planejada e consistente. A Casa Branca, por exemplo, criou a Open Government Initiative, que tem como lema “transparência, participação, colaboração”. São palavras do presidente Obama: “A abertura vai fortalecer nossa democracia e promover eficiência e eficácia no governo.” Já os australianos criaram um termo mais viril: não fizeram uma iniciativa e sim uma Government 2.0 Taskforce, que busca “promover transparência, inovação e agregar valor à informação governamental.”

Acompanho com mais atenção as experiência do governo do Reino Unido, até porque muitas delas são lideradas por Tim Berners-Lee, o inventor da web 1.0, que já promete a 3.0 (ou web semântica, em que os dados poderão “conversar” entre si, produzindo novos usos para as informações, sem interferência humana). Na “Spending challenge“, a Secretaria do Tesouro de Sua Majestade organizou uma elaborada consulta para que todos os cidadãos pudessem sugerir cortes de orçamento. Em “YouFreedom“, os súditos da Rainha podiam dizer que leis queriam ver abolidas.

Na semana passada, o site O’Reilly Radar (capitaneado por Tim O’Reilly, o inventor do termo “web 2.0” e o organizador do Gov 2.0 Summit que aconteceu em Washington em 2011) publicou uma lista de organizações de “inovação cívica” cujos trabalhos devem ser acompanhados de perto em 2011. Só ideias extremamente bacanas. Como a da organização “Code for America“, que tem como objetivo criar aplicações que ajudarão o governo a oferecer melhores serviços para os cidadãos. Ou a “Civic Commons“, que inventa sistemas para que prefeituras possam compartilhar softwares, não precisando pagar para criar programas que já foram desenvolvidos em outras cidades, ou mesmo em outras secretarias da mesma cidade.

Claro que nada disso significa a conquista da utopia. O motor da democracia é a crise, e maiores liberdades são conquistadas em meio a crises constantes. Como diz o historiador Pierre Rosanvallon, do Collège de France, em debate recente promovido pela revista “Le nouvel observateur“: o ideal democrático se sustenta sobre eternas contradições: entre a representação e o “movimento direto”; entre votar em quem pensa como pensamos e votar nos governantes mais eficientes; entre o “povo” e o “indivíduo”; entre a eleição como momento do “yes we can” e a pós-eleição como império das dificuldades para se fazer o que podemos…

Rosavallon alerta: “formas de progresso democrático podem também mascarar tentações de regressão.” É preciso que todas essas ferramentas de governo colaborativo não se aliem a populismos que querem promover a descrença total em processos eleitorais.  O Gov 2.0 vai precisar sempre de um bom Gov 1.0.

continuidade

23/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 07/01/2011

Ano novo. Governo novo. Descobriremos aos poucos o que há de continuidade e ruptura com o governo anterior. A maioria dos brasileiros votou pela continuidade de várias políticas públicas. Porém, são outras pessoas no poder. Divergências sempre vão existir, e é absolutamente saudável que existam. Por exemplo: em suas primeiras entrevistas, a nova ministra da cultura, Ana de Hollanda (muito bom ver uma mulher com sua história no comando do MinC), sugeriu a necessidade de revisão de projetos da gestão Gil/Juca. Ficam já claras diferenças no modo como encara a questão dos direitos autorais e sua adequação para a cultura digital. Vamos ver como a polêmica será conduzida daqui para frente e como o novo MinC dialogará com outras áreas do governo, que certamente manterão o tradicional apoio do PT ao software livre, fundamento imprescindível (justamente por sua maneira inovadora de lidar com os direitos autorais, sem nunca propor sua abolição) de vários projetos de inclusão digital de importância decisiva para a nova administração. A presidente Dilma declarou, em campanha: “quero ser presidente da inclusão social, mas também quero ser presidente da inclusão digital”.

Minha posição sobre o assunto é conhecida. Escrevi vários textos sobre direitos autorais, inclusive uma edição anterior desta coluna (09/07/2010), da qual cito o seguinte trecho: “Em artigo publicado há poucas semanas no Observer, John Naughton – professor da Open University britânica – afirma: ‘nossas leis de copyright estão agora tão risivelmente fora de contato com a realidade que estão caindo em descrédito. Ela precisam urgentemente serem reformadas para se tornarem relevantes para as circunstâncias digitais. O problema é que nenhum de nossos legisladores parece compreender isso, então isso não vai acontecer tão cedo.’ Temos oportunidade e legisladores [no Brasil] para fazer isso acontecer em breve. Por que não aproveitar? Por que se preocupar com intrigas pequenas, quando é possível fazer algo grande? Ou continuo esperando demais do Brasil?” Há, no próprio MinC, um excelente acúmulo de reflexão sobre o tema dos direitos autorais, levando em consideração a complexidade do problema e vários pontos de vistas conflitantes. Isso não pode ser esquecido agora, em busca de uma solução mais rápida e simples.

Pois não há soluções simples. O desafio digital é muito novo. Todos os dias aparecem utilizações surpreendentes da internet. Maneiras inéditas para se fazer cultura são inventadas e logo se transformam em motores da criatividade popular. Há poucas semanas (24/12/2010), aqui mesmo no Segundo Caderno, meu ídolo Leandro Sapucahy anunciava um novo projeto: “Muitos fãs pegam minhas músicas, juntam imagens, montam clipes e põem no YouTube. ‘Polícia e bandido’, por exemplo, tem dez clipes. Por causa dos meus dois primeiros discos, recebi muita música com temática parecida, porque achavam que ia gravar outro assim. Só que eu já estava em outro momento. Farei então um site. Selecionei 12 canções, vou recortar, pegar um minuto e meio de cada, escolher um grupo de garotos e cada um vai fazer um clipe e botar na rede. As músicas ficarão inéditas em disco.” Não sei se está claro para todo mundo, mas, para a Lei do Direito Autoral que temos agora, fãs não podem – sem autorização – pegar músicas dos outros para fazer clipes. Leandro Sapucahy poderia processar quem fez os clipes, ou o próprio YouTube por exibir esses clipes sem sua autorização. Mas o uso não-autorizado lhe deu ideia para um excelente projeto. Essa prática de fãs fazendo clipes é hoje tão comum, e tantos artistas a incentivam (pois os clipes viram divulgação para seus trabalhos), que a sociedade como um todo tolera o “desvio da lei”, contribuindo assim para o descrédito da legislação como um todo. Não existe democracia com lei desacreditada. Por isso a necessidade de uma revisão da lei, possibilitando (se as partes assim desejarem) a legalização do que hoje já é parte integrante e central da cadeia criativa contemporânea.

No site pessoal da agora ministra Ana de Hollanda há uma página para vídeos. O que encontramos por lá é material “do” YouTube, com recursos de “embedding” (quando “pedaços” de um site aparecem “dentro” de outros – prática também não prevista na Lei do Direito Autoral atual). A legislação atual é nebulosa. Não deixa claro o que podemos ou não publicar online, em que sites e em que circunstâncias.  Os vídeos são publicados com a melhor das intenções, para homenagear ídolos e divulgar seus trabalhos. Muitos artistas acabam aceitando que as coisas hoje aconteçam assim, sem apoio de uma lei clara. Por isso estamos todos (fãs, artistas etc.) desprotegidos, agindo no lusco-fusco de um arcabouço legal caduco. Precisamos de nova lei para nos proteger, também não criminalizando o que não consideramos crime, e encontrando maneiras ágeis de autorizar práticas comuns, sem atravancar os novos processos criativos já adotados pela maioria, e que podem ser de interesse de muitos artistas.

Claro: nada disso é contra os direitos de ninguém. Um autor vai ser sempre detentor dos direitos sobre suas criações. Ninguém pode “abrir mão” de seus direitos. Um autor, justamente por ser detentor direitos de suas obras, poderá, se quiser, autorizar previamente alguns usos dessas obras, facilitando por exemplo a criação dos clipes que fortaleceram os sambas e a carreira de Leandro Sapucahy.