Archive for the ‘anime’ Category

Cosplay in Rio

28/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 18/02/2011

Pedro Carvalho tem 22 anos. Ainda se formará em produção cultural, mas já pode – há muito tempo – ser considerado um dos mais importantes produtores culturais do Rio. Tudo começou quando tinha 13 anos, no quarto, com incentivo de sua mãe. Pedro não era um menino popular. O pessoal da escola já o rotulava como nerd: tinha paixão apenas por animes, os desenhos animados japoneses. Na época, banda larga era raridade, o YouTube não existia – para ver seus animes preferidos tinha que importar VHSs do bairro da Liberdade, São Paulo. Então levava os poucos amigos para ver as novidades em casa. O boca a boca trouxe mais gente. Não cabia mais no quarto. A garotada ocupou a sala. Não cabia mais na sala, a mãe alugou um salão. O “evento” ficou tão grande que deixou de apresentar apenas animes, virou ponto de encontro de fãs de cultura pop japonesa em geral (cosplay, mangá, games etc.) e tomou conta de quadras e teatros da UERJ, para onde volta neste domingo, ainda maior, não mais como Anime Center (nome com o qual o evento aconteceu até agora), mas como Cosplay in Rio.

Fui pela primeira vez a um evento produzido pelo Pedro em 2006. No dia seguinte, publiquei no Overmundo texto ainda espantado com o que encontrei por lá. Não tinha a menor ideia de que havia tantos fãs de pop nipônico no Rio e que seus encontros eram tão empolgantes. Escrevi que aquilo parecia uma “micareta de ETs” (para mim, isso é grande elogio) e até inventei uma teoria pop-antropológia sobre a pagação de mico com necessidade básica do ser humano. Virei frequentador assíduo dos eventos do Anime Center, que logo depois passaram a acontecer nas dependências do Clube Hebraica, Laranjeiras (pena que acabou o buffet de comida judaica que havia por lá: era um contraste fascinante e bem brasileiro…) Estranhava não haver nenhum patrocinador, e de tudo aquilo ser produzido na marra, quase sem nenhuma divulgação na mídia, pois eram sempre milhares de adolescentes – de todas as classes sociais, cores de pele (é íncrivel a quantidade de garotos negros vestidos de personagens japoneses) e zonas da cidade. Já fiz curadoria de vários eventos com grana, assessoria de imprensa e páginas e páginas de anúncios nos jornais: sei como é difícil reunir aquela quantidade de gente mesmo com shows de bandas bombadas nas rádios. Os eventos do Pedro, onde o público é a maior atração, aconteciam quase na “invisibilidade”, mas nos davam lições de como, quando algo é vital, o sucesso é inevitável. Ainda bem que agora o Cosplay in Rio tem patrocinador e lei de incentivo. Foi enorme batalha para chegar até aqui.

E que batalha divertida. O pop japonês desembarca ao Brasil e sofre mutações antropofágicas. Vide as apresentações do Anime Daiko, grupos de tocadores de taikos (tambores japoneses) de Londrina, que se apresentará na UERJ novamente este domingo. Os dançarinos – muitos fantasiados – fazem rodas em torno dos taikos, cantando letras das trilhas sonoras dos animes (em japonês, é claro), desenvolvendo coreografias estilo macarena ou rebolation, num ritual pós-moderno (se isso não for pós-modernidade, o que mais será?) que não existe em nenhum outro canto do mundo. Esses eventos – outros produtores culturais como Pedro realizam encontros similares em quase todas as grandes cidades brasileiras, com destaque especial para Fortaleza – também desenvolveram uma forma peculiar de comunicação interna, que só existe (até onde eu consegui descobrir) no Brasil: plaquinhas onde são escritas mensagens que funcionam como pop-ups, ou balões de fala de quadrinhos, em 3D, numa conversa descentralizada muitas vezes hilária.

Num Anime Center de 2008, tive oportunidade de ouvir a palestra e depois conversar com Keisuke Iwata, diretor da TV Tokyo que produziu, entre muitos outros sucessos, nada menos que Pokemon, Yu-Gih-Oh e Naruto. Qualquer pessoa que tenha tido contato com crianças dos anos 90 para cá pode comprovar a influência que esse cara exerce, não só no Brasil. Pena que não havia nenhum executivo da indústria cultural carioca na palestra, pois Iwata explicou com detalhes como funciona o modelo de negócios do novo pop japonês, com sua estratégia globalizada. Perguntei para ele sobre direitos autorais, se não o incomodava ver tantos garotos vestidos com suas personagens, sem autorização. Iwata me respondeu que a TV Tokyo tratava aquele tipo de evento, mesmo com ingressos pagos, como “festas de colégio”. Em outras palavras: no lugar de processar adolescentes, aceitava e incentivava a divulgação gratuita.

Os produtores de mangás-animes-games sabem que hoje os fãs não querem mais ser apenas espectadores passivos. Precisam interagir com aquilo que consomem, mergulhando nos universos ficcionais, dos quais passam também a ser produtores. Produzem o teatro do cosplay. Remixam cenas de seus desenhos preferidos em anime music videos. Muitos grandes estudios de mangá surgiram com garotos que apenas criavam novas histórias, sem autorização, misturando personagens de autores diferentes. É o império do cortar-e-colar. No Cosplay in Rio você poderá ver isso acontecendo ao vivo. Vá fantasiado, afinal já é quase carnaval.

Outra dica para o fim de semana: o festival Não-Onda, “uma pequena mostra do que há de improvável, impróprio e irredutível no underground de BH”. Também recomendo enfaticamente.

presente/futuro indicativo

23/02/2011

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 14/01/2011

O Estado brasileiro, sem muito marketing, anda fazendo experiências interessantes no campo “aberto” que ficou conhecido como “Gov 2.0“. Temos desde iniciativas pioneiras, como a adoção das urnas eletrônicas, a serviços e dados públicos disponíveis online, além de consultas para elaboração de novas leis. Um exemplo concluído com sucesso foi o projeto do Marco Civil da Internet, facilitado pelo Ministério da Justiça. Seguindo, esse modelo, o mesmo ministério mantém aberto, até o dia 28 de janeiro, o debate sobre Classificação Indicativa. Todo mundo interessado na educação de nossos adolescentes e crianças deveria participar.

Um dos problemas do Gov 2.0, mesmo para entusiastas como eu, é arrumar tempo para participar. Essa vai ser uma das angústias da nova democracia eletrônica. Tudo será cada vez mais transparente e colaborativo. Mas como escolher em que colaborar, diante de tanta demanda e da farta documentação para ler antes de colaborar direito/direto? Vamos ter que fazer mais esse aprendizado.

A classificação indicativa, por exemplo, é um debate que me interessa muito, mas no meio de todas minhas atividades, chegava lá no site e era tanta coisa para estudar que, não querendo ser leviano diante de questão que levo tão a sério, sempre adiava minha participação. Fui lendo aos poucos, mas ainda não consigo participar. A leitura me deixou com dúvidas muito básicas, de pano de fundo, que atrapalhariam a conversa mais pragmática que está acontecendo no debate online.

Correndo o risco do texto ficar ainda mais (já que inevitavelmente vou parecer leviano) contraditório: minhas dúvidas têm origem em observações bem pragmáticas, frutos do convívio diário com adolescentes e crianças. Muitas vezes, como educador, entro em pânico e não tenho a menor idéia do que fazer: precisaria de outros tipos de classificações indicativas para me guiar. Tento impor regras domésticas de utilização de mídia. Mas vejo que de nada adiantam regras isoladas. A garotada de hoje, independentemente da classe social (meu trabalho me faz andar muito em favelas de todo o Brasil, vejo isso acontecer em todos os lugares), deixou de ser espectadora de mídias e passou a produzir conteúdos que podem ser vistos por gente de qualquer lugar do planeta.

Cada vez mais crianças publicam fotos e vídeos no Orkut, ou brigam com os colegas via Formspring. Pensando em criar regras comuns entre os vários amigos dos meus sobrinhos, fui dar uma palestra no seu colégio. Comecei a falar, para uma turma do quinto ano, como se estivesse no palco de peça infantil boba. Uma menina de 10 anos me interrompeu e perguntou na bucha: “é possível mesmo rastrear IPs?” Ela estava preocupada com uma acusação de que teria criado, com photoshop, imagens comprometedoras dos colegas para publicar em perfis “fakes”. Tive que respirar fundo e mudar de tom: estava diante de gente cibergrande.

O debate sobre a classificação indicativa ainda tenta separar produtores de espectadores, mídia física de mídia virtual. Fico com a impressão que estamos tentando legislar sobre o passado, sobre tecnologias e práticas obsoletas. (Até quando as pessoas vão usar DVDs? Até quando as pessoas vão ver TV na hora que a TV quer?) No site, há uma explicação sobre a diferença entre jogos “puramente virtuais” e jogos que precisam ser instalados “em seu aparelho”. O problema é que as novas tecnologias misturam tudo isso. Muitos jogos hoje incentivam a criação de novas etapas do próprio jogo, que podem ser distribuídas pela internet. O jogador vira co-autor. Quem vai classificar o que todos esses milhões de produtores de conteúdo publicam o tempo todo?

Outro problema que me distancia do debate que acontece por lá: o Manual da Nova Classificação Indicativa, sugerido como fonte para as reflexões, parece partir de uma visão que Umberto Eco, há muito tempo, chamava de “apocalíptica”: conteúdos violentos geram pessoas violentas. São citadas pesquisas sem indicação bibliográfica – sempre aparecem como “algumas pesquisas” ou “alguns estudos” – que comprovam essa visão. Eu posso citar “outras pesquisas” que colocam esse “consenso” em dúvida. Ver por exemplo a imensa bibliografia do livro “Brincando de matar monstros: por que as crianças precisam de fantasia, videogames e violência de faz-de-conta“, de Gerard Jones. Ou os argumentos de “Supreendente! A televisão e o videogame nos tornam mais inteligentes“, livro de Steven Johnson.

Porém, mesmo que todos esses contra-argumentos não façam sentido: a TV brasileira corta as cenas violentas de Naruto, desenho preferido pela garotada. A garotada vai para a internet, baixa e aprende japonês para legendar a versão original sem cortes e distribui para os amigos em “perigosos” sites de torrent. Eis a política bem intencionada incentivando a pirataria?

Talvez eu seja, para continuar usando a terminologia pré-histórica de Umberto Eco, “integrado” demais para entrar nesse debate. Não tenho nem sugestões para dar, a não ser uma bem óbvia e abstrata: esses problemas não vão se resolver com cortes, ou horários de exibição; a solução é educação. Educação não apenas para consumo consciente de mídia, mas para produção de mídia. Desde os primeiros anos da escola. Nessa aula, tenho certeza, as crianças vão poder ensinar muitas coisas para os professores.

Satoshi Kon

21/12/2010

texto publicado na minha coluna do Segundo Caderno do Globo em 21/05/2010, antes da morte de Kon

Satoshi Kon é um dos meus cineastas favoritos, ao lado de Tarkovski, Marker e poucos outros. Cineasta, ponto. Poderia ter dito cineasta de animação. Ou de anime, território japonês dentro da animação. Mas seria colocá-lo num gueto, cercado por olhares preconceituosos ou condescendentes. Prefiro, ao contrário, pensá-lo como grande artista das imagens em movimento, cuja obra propõe reflexão original sobre os dilemas mais centrais da cultura contemporânea.

Talvez, na campanha aqui iniciada para tirar o anime do gueto, o mais “correto” fosse dizer que Mamoru Oshii é meu cineasta favorito. Ou Hayao Miyazaki. Oshii é autor de Ghost in The Shell e queridinho da crítica internacional, tanto que teve seu Inocência selecionado em Cannes – o primeiro anime a realizar tal façanha – e depois The Sky Crawlers competiu em Veneza. Por sua vez, com prestígio mais “estabelecido” e apoio da Disney, Miyazaki ganhou até Oscar – claro, de animação… – com A Viagem de Chichiro.

Outros nomes importantes: Shinichiro Watanabe, Hideaki Anno, Katsuhiro Otomo… Só com essa pequena lista – poderiam ser incluídos vários outros nomes – percebemos uma cena artística privilegiada, que por uma dessas coincidências felizes da história reúne várias personalidades geniais, todas com visões muito particulares sobre a condição humana hoje. O fato de ser tratada, muitas vezes, como marginal, é mais um mistério fascinante da hierarquização esquisita de valores à qual estamos submetidos.

Tenho interesse especial por Satoshi Kon, talvez pela maneira cada vez mais alucinada e complexa com que ele trata um tema querido, aquele que também me leva a ler Philip K. Dick como tratado de sociologia: a confusão violenta e suculenta entre o artificial e o autêntico, que a onipresença da cibertecnologia radicaliza. Os quatro filmes de Kon são como que variações sobre esse mesmo tema.

Que Haruki Murakami me perdoe, mas a grande obra sobre o Japão pós-moderno é Perfect Blue, o primeiro filme de Kon, lançado em 1998. A nova cultura pop japonesa – que, para a juventude planetária, tem hoje importância semelhante àquela do rock anglo-saxão em décadas anteriores –  conecta várias áreas criativas: os mangás (histórias em quadrinho), os animes, os games, a música pop dos “idols” (fabricados pela indústria fonográfica), os otakus (fãs, nerds obsessivos) etc. Uma área alimenta a outra: o otaku vira desenhista de mangá, o game gera um anime e assim por diante. Kon estudou artes na universidade, trabalhou com mangá e depois como assistente de Katsuhiro Otomo, o mítico diretor de Akira. Perfect Blue é um resumo do que aprendeu nesses mundos interligados.

A primeira cena nos confunde, parece que começamos a ver o filme errado: é uma luta de Power Rangers. A “câmera” muda de enquadramento e percebemos que aquilo era uma encenação teatral de trecho de anime, sobre palco montado no teto de um edifício, em frente a uma platéia de otakus. No número seguinte surge a protagonista: uma “idol” em show de despedida como cantora, pois seu empresário tinha decidido que deveria seguir a carreira mais adulta de atriz. O resto do filme narra sua perseguição por um otaku-stalker que não admite a mudança e cria um diário falso na internet (antes dos blogs – numa cena vemos um browser Mosaic “pré-histórico”), com reviravoltas vertiginosas que expõem as entranhas da indústria pop nipônica, que também produz filmes como Perfect Blue. A autoreferência e as trocas constantes de perspectivas são marcas poderosas do cinema de Kon.

Millenium Actress (2001) aprofunda essas características, agora com uma visão transversal e ambiciosa onde a história do cinema japonês se confunde com a história do Japão e com a biografia de uma atriz no final de carreira que dá uma longa entrevista para um jornalista fã. A “verdade” individual se mistura ao drama coletivo nacional e ao drama ficcional de vários filmes de época, num jogo de ilusão e realidade. Muitos trechos dos filmes são reencenados pela dupla entrevistador-entrevistado, com a cumplicidade de um câmera.

Em Tokyo Godfathers (2003 – este filme e o seguinte, Paprika, são facilmente encontráveis no Brasil em DVD – os outros têm trailers e extras na internet), Kon volta às ruas de Tokyo, em imagens que revelam detalhes escondidos de sua vida urbana, que só um observador carinhoso percebe. Talvez a cidade nunca tenha sido tão bem filmada, logo para contar uma história destrambelhada, de uma turma de mendigos – incluindo um mendigo travesti – que encontra um bebê abandonado. É incrível que um filme como esse, tão caro e tão na contramão de tantas regras do cinema comercial (o suicídio é tema central…), tenha sido lançado e tenha feito sucesso.

Paprika, sobre uma máquina que permite que entremos em sonhos alheios, incluindo um sonho magnífico de uma “parada de tudo que existe”, é baseado em livro de Yasutaka Tsutsui, mestre da vanguarda literária japonesa (o jornal inglês The Guardian o descreve: “imagine um JG Ballard maníaco”!) Essas colaborações são comuns no anime: músicos extraordinários também fazem trilha sonora, isso para não falar nas equipes – centenas de pessoas – da computação gráfica, da dublagem, da direção de arte.

Hoje, Kon trabalha escondido na sua próxima produção, novamente sobre o sonho, The Dream Machine. Não há humanos no roteiro. Só robôs. É um “road movie” para robôs. Tomara que humanos possam ver o filme também.